O triunfo do surfe com raça

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VICE Sports

O triunfo do surfe com raça

Adriano de Souza, o Mineirinho, é a cara do novo país do surfe.

Foto: Divulgação

Você já deve saber que, pelo segundo ano consecutivo, o Brasil é campeão mundial no surfe e, a partir do ano que vem, terá um número inédito de representantes na elite: serão 10 atletas, um terço do total, número maior do que as nações até então dominantes, como EUA e Austrália.

Os gringos acusaram a queda. Ontem, com a vitória de Adriano de Souza em Pipeline, no Havaí, a Stab Magazine, uma das principais publicações australianas sobre o tema, definiu o atleta como "Eu, Robô", numa alusão pejorativa ao seu estilo "duro" na prancha. O melindre rolou porque De Souza, o nosso Mineirinho, afogou os sonhos do favorito ao título, o australiano tricampeão Mick Fanning. O estilo do brasileiro de 28 anos pode não ser de alta plasticidade, mas carrega o que é necessário para um campeão: a performance de jogador dedicado, fisicamente impecável, de manobras pesadas, marcador, estrategista, que sabe usar a pressão a seu favor e entrar na mente do adversário como um samurai.

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Mineiro – que ganhou o apelido por ser "come quieto" – é determinado. Sua vitória carimba a temporada de hegemonia brasileira e da revisão do estereótipo "loirinho gringo cabeludo" que os surfistas carregaram por muitos anos. Hoje o surfe é esporte de caras como Adriano, de traços miscigenados e origem modesta, seja no Havaí ou na Indonésia.

O país do futebol precisa se acostumar. Hoje a terra brasilis é terreno do surfe por causa de uma geração de ouro que cresceu no boom do consumo da classe C e do dólar um pra um. Ir para o Havaí, a Meca do surfe, era uma missão quase impossível nos anos 1980 e 1990. Nos anos 2000, o sonho passou a ser viável. É mais representativo do que parece.

Os gringos já mudaram seu ponto de vista e, agora, é o próprio Brasil que revê seus conceitos. O surfe era visto como uma atividade de recreação ligada a "vagabundos maconheiros" e filhinhos de papai que, com dinheiro e vida ganha, optavam, no Rio dos anos 1960 e 70, por viver no desbunde praiano e viajar para ilhas paradisíacas em busca das melhores ondas do mundo. De Souza é a antítese de tudo isso. Ele é um surfista que não nasceu em berço esplêndido e foi um guerreiro desde seus primeiros passos no esporte.

O filho de Jonas e Luzimar, donos de um pequeno bar no Jardim Primavera, sempre foi alvo de críticas relacionadas ao seu estilo. Não só dos gringos, mas também de brasileiros que cravaram, no último semestre, que essa era a última chance que Mineiro teria para conquistar um título mundial após 10 anos na elite. Se isso é verdade ou não, só o tempo dirá. Mineiro continuará sendo alvo dos críticos e terá, como sempre teve durante sua vida, que provar em dobro sua capacidade para ser respeitado.

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Adriano de Souza é o tipo de cara que, ainda que passional, não se abala fácil. As críticas passam reto, entram por um ouvido e saem pelo outro. Nascido no Jardim Primavera, na periferia do Guarujá, litoral paulista, o surfista sempre teve objetivo muito claro na cabeça: queria ser o melhor surfista do mundo. Ganhou uma prancha do irmão, Ângelo, e se destacou na escolinha do Pirata, no Canto do Maluf, a 40 minutos de caminhada de sua casa. Aos 11 anos, conquistou um pequeno salário de um patrocinador local e partiu, aos 14, de ônibus, para o Rio de Janeiro a fim de disputar sua primeira etapa como profissional. Em águas cariocas foi campeão – o mais novo, até hoje, a ganhar uma etapa profissional no Brasil – e faturou R$ 8 mil e uma moto. Ao vencer o campeonato, garantiu uma vaga para o circuito nacional e abandonou a escola no segundo colegial. "Era largar os estudos ou continuar como amador", me contou certa vez na praia do Campeche (SC), onde vive hoje em dia. Veio então a primeira viagem internacional, para África do Sul, e depois para Virginia, nos EUA, para disputar o festival NSSA nas categorias Mirim, Junior, Pro Junior e Pro. Ele foi campeão na Mirim e na Junior, ficou em 3 o na Pro Junior, e foi vice na Pro. Saiu da Virginia com um contrato com a marca Oakley debaixo do braço. Aos 15 anos, quando foi disputar o Mundial Pro Junior com surfistas de até 21 anos, foi campeão novamente – o mais novo até hoje na categoria – e se classificou para a segunda divisão do surfe mundial, o WQS. No segundo ano de disputa, aos 17, carimbou o passaporte para a elite do esporte, onde está até hoje.

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Entre os tops do mundo, Mineiro jamais deixou de lado o perfil de surfista osso duro de roer. Os americanos e australianos não engoliam fácil aquele brasileiro turrão que, entre outros feitos, conseguiu ser um dos grandes desafiantes de Kelly Slater, o maior campeão e melhor jogador da história do surfe. Foi Top 10 do mundo por 6 anos seguidos, passou meses na ponta do ranking nos últimos 3 anos e, mesmo assim, viu a Oakley dar um salário maior para um atleta de menor expressão – um australiano com maior apelo comercial e menos resultados. O menino do Guarujá então largou a empresa após 10 anos de parceria e quase ficou sem patrocínio na temporada de 2013, até a Pena, marca de surfwear do nordeste, assinar com o atleta por um ano. Foi o único da elite a ser patrocinado por uma marca brasileira.

"Conheço o Adriano desde que ele era amador", conta Raimundo Pena, 53 anos, dono da Pena. "Assisti a uma bateria que ele perdeu. Era um garotinho. Vi a reação dele, ficou muito invocado, me passou uma coisa de que ele estava de fato muito atordoado com aquilo. Isso me marcou. Aí o pessoal falava: 'o garoto aí não gosta de perder, não'. Para mim, era o primeiro sinal de que ali estava um campeão, um cara com a faca nos dentes."

Mineiro pavimentou a estrada para o movimento "Brazilian Storm", liderado por Gabriel Medina, que transformou o cenário do surfe no Brasil ano passado, quando trouxe o então inédito título mundial para o país. De Souza é o "paizão" dessa geração e sua vitória no Havaí significa o ponto alto de uma história de raça e paixão.

Hoje, mesmo vencedor, ele segue com um patrocinador nacional de menos expressão do que a de seus adversários, a HD. Mesmo com uma década na elite da modalidade, seus ganhos de patrocínio hoje são inferiores ao de atletas com menos quilometragem e resultados no tour, como o havaiano John John Florence ou mesmo o brasileiro Gabriel Medina (que hoje já tem um cacife muito alto devido ao título conquistado em 2014). O motivo é que o brasileiro de estilo robótico não é tão vendável. Ele não faz o gênero que publicitários adoram. E talvez essa autenticidade seja sua mais nobre característica – e a que está transformando o cenário do esporte no mundo. Ele sabe quem é, de onde veio e o que quer.

Podemos dizer, para acalmar os ânimos vaidosos dos australianos, que De Souza pode não ter a mesma classe de caras como Joel Parkinson e Mick Fanning, mas que representa uma escola nova, um país em crescente expansão no surfe. Assim como os alemães eram tirados de duros e revolucionaram o futebol nos últimos anos, temos um exemplo de que, também nas ondas, a força mental conta muito. Mineiro saiu da água carregado por Jamie O'Brien, um dos maiores nomes do surfe havaiano na atualidade. É assim a tradição no surfe: o vencedor é carregado da água ao palanque sem pisar na areia. E quem carrega o surfista é sempre alguém que tem um verdadeiro motivo para aquilo. Ser levado nos ombros por O'Brien, um dos mais casca-grossa do local, tem um significado que supera qualquer contestação: Adriano de Souza é o novo rei do Havaí, o novo rei do surfe. Com os olhos cheios de lágrimas, o brasileiro recebeu sua coroa de flores e pode mostrar para tudo e todos que ele está lá, que chegou, que viajou da prancha de R$ 30 na favela guarujaense até as ondas mais incríveis do planeta Terra. O nome de Adriano de Souza agora está carimbado no panteão dos grandes mestres da história. A cara do novo surfe.

Fernando Gueiros está no Twitter como @fgueiros