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teatro

Gil Vicente, a ressurreição

Há qualquer coisa de fundamentalmente errado em tudo isto.

A biografia do pai do teatro português tem dúvidas em apontar o seu local de nascimento, deixando a luta aberta entre Barcelos, Guimarães ou Lisboa. Mas, no berço, ninguém tem dúvidas de que Gil Vicente era o ourives nascido em Guimarães em meados do século XV, assumindo com toda a paixão e orgulho essa reivindicação. Gil Vicente foi um dramaturgo importantíssimo na história do teatro português, um mordaz e severo crítico dos costumes que popularizou entre nós uma máxima de Molière: ridendo castigat mores. Eu não percebo muito de latim, mas a ideia é que a rir se denunciam os vícios. Vem isto tudo a propósito da peça que esteve em cena na Caixa Negra da Fábrica ASA na sexta e sábado passados. Com encenação de João Pedro Vaz e produção do Teatro Oficina, Capital & Cultura, a peça parte do lema “há qualquer coisa de fundamentalmente errado em tudo isto!” e da vontade política de “abordar, interpelar e violentar um tema que há muito me incomoda: o das organizações culturais parecerem, muitas vezes, trabalhar mais para a sua auto-preservação, do que para cumprirem a sua missão original.” Hmm, boa. Em tempo de começar a preparar a lavagem dos cestos, esta peça quer pôr as pessoas a reflectir sobre as relações actuais entre a cultura e o poder político, a cultura e o poder económico e a cultura e o reconhecimento social. Na primeira metade da peça, num ritmo frenético e intenso, a atenção recai sobre “os membros típicos de uma organização cultural nossa contemporânea em pleno trabalho, com os seus vários cargos, discursos, funções e ideias feitas”. Na segunda metade, claramente prejudicada pelo intervalo, a atenção recai sobre os “fruidores” (como Umberto Eco prefere designá-los) de várias manifestações artísticas e culturais. Dividida em vários monólogos, uns mais bem conseguidos que outros, esta parte desequilibra o ritmo acelerado da primeira parte. Na minha opinião, neste retrato dos processos culturais e artísticos faltou a abordagem de um vértice essencial: os artistas. Lembrei-me, automaticamente, de um texto recente que assentaria no registo desta peça. Voltando a Gil Vicente, esta peça respeita várias das características que reconhecemos ao mestre dramaturgo: acutilância no olhar, tom tragicómico qb, situações alegóricas muito expressivas, discurso satírico e mordaz, que aguça a atenção e o riso, personagens tipificadas e bem representativas de grupos ou classes sociais (conceito marxista cada vez mais obsoleto). Uma peça sobre esta CEC 2012, mas que serviria de carapuça a muitos modelos organizacionais por esse país fora. Fotografia por Strangelfreak