FYI.

This story is over 5 years old.

cenas

Fui dar um abraço ao Pedro Paixão

O meu escritor favorito da adolescência.

O Pedro Paixão é o típico escritor que marca a nossa adolescência. Nos seus livros, amor e solidão são os temas recorrentes. Ambos ferem, ambos libertam. E essa é uma longa história, tão grande quanto os mais de 20 livros que escreveu. Vive isolado do mundo, inadaptado, porque, como escreve em Saudades de Nova Iorque: "Quem não está confuso corre o risco de estar enganado, pior, de se estar a enganar." Visitei-o na sua casa, no Estoril. Tinha a sala cheia de livros, abertos e anotados. Encontrei-o visivelmente acelerado e indisponível porque está a meio de num novo livro.

Publicidade

VICE: Pedro, vou pôr a gravar, ok?

Pedro Paixão: Fica gravado, não fica?

Fica, fica. Mas como tenho dois gravadores, vou usar o outro.

Era isso de que me estava a lembrar. Se tens dois, põe dois. Para não acontecer o que já me aconteceu a mim, sete horas a gravar uma pessoa e depois não tinha nada [risos].

Ah, isso também já me aconteceu. Diz-me, escreves todos os dias? 

Sim, pá. Uma das razões principais [para escrever diariamente] é não estar a escrever histórias. Todos os livros que escrevi de ficção eram escritos muito rapidamente, num curto espaço de tempo. Depois ficava sem escrever muito tempo, depois voltava outra vez. Julgo [que isso acontecia] por serem histórias. É curioso, aqui a delineação do horário é, facilmente, perceptível. Não preciso de inspiração. Já antigamente, não precisava. A única coisa que fazia era escrever histórias, escrever-me, o que vivi ou que vi viver.

Que livro estás a escrever agora?

Agora, quando estou a escrever um texto teórico que não é história nenhuma são divagações. Vai desde a Bíblia hebraica até ao nacional-socialismo, ao Holocausto, passando pelo império romano ou pela Igreja Católica… É uma coisa vastíssima. Portanto, é um trabalho diferente. Tenho um primeiro rascunho de 900 páginas e nem sei o que hei-de fazer com tantas [risos]. Até mete medo.

Então, agora é o de sempre. Rever, cortar, rever, escrever…

Pois… Quer dizer, não são 900, são 600 ou 700. É uma coisa brutal.

Publicidade

Mas sempre me pareceu que os teus livros são todos sobre um tema comum: o amor, que marca e conduz, de alguma forma, todas as histórias.

O que une todos os livros, acho eu, é o facto de não serem histórias inventadas, criadas, arranjadas. Não, não. É simplesmente aquilo que vivi. Aquilo que fui. Numa tentativa megalómana e impossível de que isso tudo não seja perdido pelo tempo. Mas, obviamente, que é perdido pelo tempo. É uma ilusão de me salvar. Não a mim pessoalmente, o que vivi. E isso inclui as pessoas que viveram comigo.

A escrita é uma tentativa de manter esse amor?

Não é só o amor. Há muitas outras coisas. Mas talvez seja o mais importante por ser o que mais liga as pessoas, não é? Presumivelmente…

Os teus textos têm muito de autobiográfico…

Nunca falei de autobiográfico.

Ok, pode ser uma conclusão minha. Aliás, José Saramago chegou a dizer: “O autor está em todo o lado.”

Nem que seja porque foi ele que escreveu, com as mãozinhas dele. Que eu saiba o José Saramago, nunca fez nada. São estilos e interesses completamente diferentes. Ele não se escreve a ele. Não se mostra, acho eu. Eu não faço senão isso [risos]. O que faço é escrever-me. Percebes?

O que quiseste mostrar aos leitores?

Nunca fiz nada pelos leitores.

Não?

Não. Eu não penso por eles. Nunca, nunca. Nunca penso e nunca pensei. Nunca pensei escrever livros. Nunca pensei publicar livros. Não sou como aquelas pessoas que desde pequeninas que querem ser escritoras.

Publicidade

Pegando nisso, como começaste então a escrever? Nunca houve um livro pensado, então.

Não, não. Isso nunca aconteceu. Desde muito novo escrevia uma histórias, uns textos, que lia aos meus amigos. E a uma certa altura, a minha melhor amiga disse que eu devia publicar o que escrevia. Respondi-lhe que não, que aquilo não valia nada. Então ela, por iniciativa própria, escolheu uma série de textos, ordenou-os e enviou-os para uma editora que era a Cotovia. Depois de dois ou três meses, para minha enorme surpresa, ligou-me o editor, um homem extraordinário, a dizer que queriam publicar o meu livro. Disse-lhe: “O senhor não faça isso, olhe que vai perder muito dinheiro.” A resposta dele foi: “Desculpe, mas eu é que sou o editor, eu é que sei, mas prepare-se que aqui as críticas são maldosas e tal.” Depois aconteceu aquela coisa inesperada…

Isso foi com o A Noiva Judia, certo?

Sim. Aquilo teve um sucesso colossal. Um grande sucesso. Foi considerado muito inovador. E era. Um livro daquele tipo nunca tinha sido escrito em Portugal. Eram short stories, muito muito pequeninas. Nunca tinha sido feito.

E isso aconteceu porquê?

Porque há partes em que todos somos muito semelhantes. E por isso reconhecemo-nos. E acho que, no meu caso, falo de coisas que as pessoas em geral não falam. Mas coisas que as pessoas têm lá dentro. Como se fossem camadas inferiores. É algo que não está explícito, mas as pessoas lêem isso explicitamente e reconhecem-se. Acho que é isso, deve ser qualquer coisa assim.

Publicidade

Voltando às short stories. Sempre que fugiste aos pequenos contos, recordo-me do Rosa Vermelha em Quarto Escuro, parecia que remavas contra a maré. Nota-se que a tua escrita é muito concentrada. É mais fácil para ti desenvolveres esta escrita mais imediata?

Uma pessoa não escreve o que quer. Uma pessoa não escolhe. Escreve o que pode. Por escrever umas coisas em prosa, não vou conseguir escrever um poema e muito menos uma canção.

Nunca escreves poemas?

Só quando era muito novinho. Maus. Uma pessoa escreve o que pode e aquilo que exige que escreva. “Agora vou escrever sobre isto…” Não, não. Metaforicamente, há qualquer coisa que tenho de escrever, que quer que eu escreva, mesmo contra a minha vontade. E então eu escrevo. Não sou eu que escrevo o livro. O livro quer ser escrito e usa-me. Usa as minhas mãos e a cabeça, e a paciência e a saúde [risos].

Muitas vezes passas a imagem de alguém inadaptado e isso reflecte-se nos teus livros. Talvez por isso os leitores acompanhem os livros da forma como o fazem.

Concordo. Sou radicalmente inadaptado, porque tenho uma consciência aguda de não estar em casa, nunca. Poderia, de certa maneira, dizer o que Jesus disse: “Não sou deste mundo.” Como nenhum de nós é. Estamos de passagem. Tudo é estranho. Alguns têm um sentimento mais agudo, outros não. Outros só percebem isso em períodos de crise ou perante a morte.

Desde cedo?

Vivo com isso desde muito cedo. Vivo com esta estranheza de estar aqui. Para que é que eu estou aqui? Morreu, na semana passada, um amigo meu que tinha 23 anos. O que é que aconteceu, raios me partam? Percebes? Vivo muito espantado e, por isso, desadaptado. Desadaptado às regras e às normas do mundo. E não só estou desadaptado, como tento fugir delas o mais que posso. A maneira mais radical de fugir do mundo é escrever o mundo. As torres das amoreiras são um horror absoluto. Mas uma pessoa estando lá dentro não as vê. É a mesma coisa, eu saio do mundo para o escrever. Para falar de alguma coisa, tenho de sair dela, tenho de ter distância.

Publicidade

Já te ouvi dizer em várias entrevistas que não és um escritor. Neste momento, és um escritor? Isso é, sequer, importante?

Por um lado, diria que se não sou agora, nunca serei porque a única coisa que faço é escrever. Mas o que acontece é que cada vez mais, e muito rapidamente, ser escritor é um termo diluído. É como ser autor em geral. Como a arte. Está tudo a diluir-se. Uma pessoa já não sabe o que é [risos]. Já não há pintores. Há artistas plásticos. Já não há músicos, não há música. Acabou a música.

Acabou a música?    

Acabou. A música a sério, quer dizer, há música para dançar. Mas não vai haver outro Brahms, um Mahler, um Mozart. A música clássica acabou. É o sinal mais evidente de que é o período final da nossa civilização, porque já não há música.

Bem…

Mas estou a falar de música. Ouve, também gosto de jazz, adoro. Há uma diferença. Enorme. Mas acabou. Os violinos já não tocam. E acho que isso tem a ver com Auschwitz. A Europa suicidou-se. Acabou.

Mas ainda existem bons compositores. Mesmo ontem mostrei-te a Gubaidulina…

Aquilo é uma repetição do século XVII ou XVIII [risos].

Ok. Significa que não tens nenhuma esperança no que aí vem?

Não, não tenho esperança. Nem sequer sei o objecto da esperança. Esperança como? De quê?

Das novas gerações. 

A minha maioria tristeza foi ter deixado ao meu filho um mundo pior do que aquele que vivi. Não acredito que estejamos a atravessar uma crise como já atravessámos muitas vezes. Não. Nós estamos no período final da nossa civilização. Todas as civilizações começaram, tiveram momentos de coma e depois decaíram. Isto é a falência geral. A falência em termos políticos, culturais, sociais, religiosos, económicos.

Publicidade

Podemos fazer alguma coisa?

Não sei. Salvar a nossa alma, se pudermos. É desesperante, pá. Todos os dias penso nisto. Conheces alguém que saiba o que havemos de fazer? É uma situação única. É o fim, mas o fim pode demorar a acabar. O Império Romano demorou a acabar, foram séculos.

Já houve outros períodos em que os povos não sabiam o que fazer e a solução surgiu mais tarde. Isso pode acontecer.

Pode acontecer.

Voltando aos livros, apesar do sucesso de que falámos antes, nunca foste premiado. Tens alguma mágoa por isso?

Sou um bocadinho patriota. Tenho pena que as instituições não me reconheçam. Mas, por outro lado, é um motivo de orgulho. O mais natural, se me dessem um prémio, seria recusar o prémio.

Porquê?

Por não reconhecer a instituição que mo quer dar.

Achas que o sector cultural está corrompido?

Claro que está! Como os outros. São todos os sectores, entre os quais o cultural. Sabes, dantes ainda tinha aquela coisa de saber o que falavam de mim. Há anos e anos que não faço uma busca no Google com o meu nome. Tenho noção de que vendo menos livros do que vendia antigamente. De resto, não sei. Vivo muito isolado. Não me dou com ninguém, não tenho vida social. Não tenho amigos. Isto porque tenho 57 anos. Quando era mais novo não era assim. E depois, tenho a sensação de que tenho pouco tempo para viver e é verdade. Por isso, quero ocupar todo o tempo de uma maneira, não só útil para mim como também para os mais próximos que de alguma maneira possa agradar. E mais nada.

Publicidade

Não estava a par da quebra de vendas. A que se deve isso?

Então, mas há alguma comparação? Não há livrarias. As pessoas fazem imensas coisas e não precisam de ler. Quem é que tem tempo para ler um romance no nosso tempo? Quem é que tem tempo? Quem é que lê um romance do Dostoiévski ou do Tólstoi? Quem é que tem tempo para ler o Proust? Raras pessoas o fazem. São raras. A leitura deixou de ser uma prática comum. As pessoas fazem outras coisas. Fazem o Facebook, entretêm-se muito com elas.

E no futuro? Como será o livro que estás a preparar?

Estou a tentar transformar este primeiro rascunho numa versão que as pessoas possam ler.

Podemos chamar-lhe um livro de crónicas?

O título chama-se Desvio de Memória e é uma tentativa de apresentação da nossa civilização, que lhe podemos chamar ocidental, cristã ou europeia. O objectivo é mostrar como um acontecimento do século XX como o Holocausto ou Auschwitz representa um buraco negro da nossa história onde toda ela termina e acaba e se transforma, depois de passar pelos fornos, em fumo. Esse é que é o tema e o trabalho deste livro. Ou seja, é compreender o Holocausto não como um acontecimento gravíssimo da nossa história, mas “o” acontecimento final da nossa história. E provar isso. O que não é nada fácil, nada.

Então não vamos esperar mais ficção. 

Já te disse. Durante estes dois anos não escrevo histórias. Uma coisa é escrever história, outra coisa é escrever um livro teórico, digamos assim. Não se pode fazer as duas coisas ao mesmo tempo. São actividades completamente diferentes. A cabeça está virada para um sítio completamente diferente. Passo os dias mergulhado em enciclopédias. Nem me apetece escrever histórias. Se calhar, já nem tenho histórias para contar.

Pedro, obrigado. 

Já? Queres tirar a fotografia?

Claro.

Mas olha que a fotografia vai ser tirada como quero! Senta ali, se faz favor. Anda lá, que tenho de ir trabalhar! É com a cara tapada!
Já está?

Já.

‘Bora. Dá cá um abraço.