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Música

Vamos ao Serralves em Festa com: Capicua

E é já no próximo fim-de-semana, gente.

Conheci a Ana na casa-estúdio do Pedro Augusto, aka Ghuna X, no Porto, onde Capicua foi gravado. Estava 20 minutos atrasada para a entrevista, por isso telefonei-lhe para ver o que se passava, mas ela já estava “mêmo, mêmo, mêmo a estacionar”. A Ana, ou Capi, ou Capicua, estudou Sociologia e fez um doutoramento em Geografia Humana, ao mesmo tempo que gravou o disco (cena hercúlea), mas é mais conhecida como MC (antes foi writer). Foi a primeira rapper que eu conheci de cabelo molhado do banho.

VICE: Há quanto tempo é que isto começou?
Ana: Comecei a ouvir rap p’raí com 15 anos — agora vou fazer 30 — por isso, já vai fazer metade da minha vida [risos]. Comecei a ir às festas do Comix, que, na altura, era onde havia festas de hip hop no Porto, mas o meu primeiro contacto com a cultura [do hip hop] até nem foi através da música, foi através do graff. Eu fazia graffiti, e comecei a parar com pessoal que também fazia. Parávamos todos nas festas do Comix, então acabei por entrar na cena da música. Foi um processo progressivo. Comecei a ouvir as bandas de hip hop que havia no Porto, Dealema, Mind da Gap, MatoZoo, e, claro, as bandas americanas que passavam nas festas, Wu-Tang, Onyx, House of Pain — aqueles clássicos dos anos 90. E isso marcou a minha adolescência, foi nesse contexto que conheci grande parte dos amigos que tenho até hoje. Foram anos importantes para a minha formação enquanto pessoa. Foi aí que nasceu o meu interesse pelo hip hop. E quando é que surgiu o teu interesse por fazer rap?
Foi p’raí em 2000 ou 2001, quando fiz as minhas primeiras experiências com a M7 — que é a minha companheira de palco desde sempre — em casa do Mundo dos Dealema, era ele que orientava uns beats para o pessoal daqui do Porto, para as bandas que estavam a começar. Então, cravámos-lhe uns beats para fazer umas experiências e fomos gravar ao mítico 2.º Piso. Mas estávamos muito verdes ainda. Como assim?
A Marta [aka M7] era muito tímida — quase não conseguia projectar a voz de tão tímida que era. Ela escrevia a letra e depois não conseguia cantar. E eu não tinha nenhuma noção de tempo, não conseguia encaixar as minhas frases num tempo de 4/4, porque eram demasiado selvagens. Até foi uma experiência interessante, mas não resultou em nada palpável. Só p’raí em 2004/2005 é que — depois de um período em que não fizemos grande coisa —, por razões diferentes, voltámos a ter vontade de fazer rap a sério, e criámos uma banda. Eu, a Marta, o D-One — que é o nosso produtor e DJ — e a Maria — uma amiga nossa que cantava soul e funk — fizemos uma banda chamada Syzygy. Foi uma banda que durou algum tempo, mas que ninguém conseguia dizer nem escrever. Por isso até era engraçado, porque em cada concerto que nós íamos o nosso nome no flyer estava escrito de maneira diferente [risos]. Entretanto, em 2006, pusemos o nosso EP para download gratuito na net. Essa foi a nossa primeira edição. Depois, em 2007, editei outro EP com o D-One e o Auge — que é um MC do Porto —, num projecto chamado Mau Feitio. Isso sempre com edições independentes, certo?
Sim, sempre edições independentes disponibilizadas gratuitamente na net. Há vários anos que no hip hop existe um circuito completamente à margem das grandes editoras, e mesmo das mais pequenas — como a Matarroa, a Footmovin, que ainda existe, a Horizontal ou a Loop. A grande parte dos músicos acaba por fazer edições de autor ou partilhar o seu trabalho na net gratuitamente, porque cada vez mais faz sentido que assim seja. Nós sempre fizemos isso. Mesmo no meu terceiro trabalho, que foi o meu primeiro a solo, que se chama Capicua Goes Preemo, uma mixtape com beats do DJ Premier — o mítico produtor de hip hop americano — também foi disponibilizada para download gratuito no site da Horizontal, a editora do Valete entretanto extinta. Esse foi o trabalho que promoveu o meu nome fora do circuito local. Com os projectos anteriores — Syzygy e Mau Feitio — não tinha conseguido sair da cena do hip hop do Porto. Com Capicua Goes Preemo conseguiste sair da casca.
Sim, foi uma surpresa. Com essa mixtape, tive 10 mil downloads nas primeiras duas semanas. Foi uma brutalidade. A Horizontal tinha um fórum muito activo, era dos sites de hip hop mais visitados a nível nacional — o pessoal interagia imenso, havia muita participação. Então, acabou por permitir que a minha mixtape tivesse uma grande projecção. Foi mesmo muito bom para mim, porque consegui ir para lá das fronteiras do Porto. A partir daí, surgiram muitos convites para participar em compilações e mixtapes de produtores e DJ’s nacionais, como o Nelassassin, na mixtape Mike Phelps, o DJ Cruzfader, na De Volta ao Serviço, na mixtape Incendiários, na mixtape 2.º Piso 15 Anos do Mundo, sei lá, na compilação do Kacetado, a Marcha — do Kacetado como produtor, que é Skunk. Participei em montes de projectos no espaço de um ano. E todo esse processo fez com que, inevitavelmente, tivesses vontade de produzir um disco.
Sim, fiquei com vontade de fazer algo mais a sério, porque a mixtape é uma coisa mais descomprometida, mais despreocupada, no sentido em que pegas num beat e fazes umas barras por cima, gravas e ‘tá a andar. Se não houver refrão, não há refrão. Nem sequer há pistas para misturar os beats. Não dá para estar preocupada com o som ou com a mistura. Acabam por ser questões que não se colocam neste contexto, é uma coisa para amantes de rap puro e duro, uma coisa imediata que dá um gozo do caraças. É o rap pelo rap, ‘tás a ver. Não tens as preocupações musicais, conceptuais e de coerência que tens num disco — não há nada disso, é mesmo aquele prazer imediato. Mas essa experiência permitiu-me testar um registo mais do rap competitivo, da cena da egotrip, de punchline, de jogar com o impacto — eu precisava de trabalhar esse lado que, naturalmente, não era uma coisa que estava preparada para fazer. As mixtapes são um excelente exercício para treinar isso. Acho que aproveitaste bem essa fase.
Aquilo que tenho mais tendência para escrever, intuitivamente, são temas mais metafóricos e líricos, sem grande impacto, percebes. Aquele registo mais cómico de egotrip, ‘tás a ver, que trabalha o impacto da rima, é muito directo, muito cru, muito desbocado, e eu não tinha muita aptidão para fazê-lo bem. Então, quis trabalhar esse lado, porque senti que era um handicap — o rap vive muito desse impacto, dessa ginga, desse espírito competitivo — e se não conseguisse ultrapassar isso não era uma MC completa. Concordo. A cena é conseguires fundir os dois lados num só — juntar o lado lírico e emocional com esse mais desbocado, competitivo e cómico.
Pois, só quando me senti confortável com os dois registos é que tive vontade de fazer um disco. É preciso ter essa versatilidade — um disco tem de ter vários temperos. Com o disco também quis explorar coisas que nunca tinha explorado, como temas autobiográficos — fiz um disco centrado em mim, ‘tás a ver — para reduzir a distância entre a Ana e a Capicua. Nós temos a persona, o heterónimo, o nome de código que representa essa nossa personagem, que dependendo dos MC’s é mais próxima ou mais distante da pessoa. No meu caso, andava sempre muito distante, porque nunca tinha encontrado o espaço ou o contexto para me expor dessa forma. Foi isso que quis explorar no disco. Como é que a malta te chama?
O meus amigos tratam-me por Ana, o pessoal do rap trata-me por Capi [risos]. O hip hop também é fixe por isso, há essa cena de nunca saber como chamar o pessoal, na maior parte das vezes nem se sabe o nome próprio da malta. E mesmo quando sabes, muitas vezes não tens à vontade suficiente para saber como tratar a pessoa, se pelo heterónimo ou pelo nome que os pais lhe deram.
Sim, isso é verdade, e muito engraçado. Durante a nossa adolescência, a gente habitua-se a chamar o pessoal pelo seu nome de writer ou de MC, e depois passam anos que tu tens um amigo e nem sabes qual é o nome dele. Tipo, na altura em que não havia telemóveis querias telefonar para a casa de alguém e ficavas: “Mas como é que ele se chama, mesmo?”. Não ias perguntar pelo Caos, ou pelo Espião, ou pelo Maze, à mãe deles, ´tás ver… Precisas de saber o nome deles [risos]. Isso é mesmo muito engraçado, porque passaram-se anos sem saber os nomes verdadeiros. És de que zona do Porto?
Vivi muitos anos em Leça, mas nunca parei lá. O meu grupo de amigos sempre foi das zonas de Cedofeita, Carvalhido ou Boavista. Estudei no Carolina Michaelis, e a minha crew de graffiti era pessoal dessa área. Parei muitos anos nas escadas do Carolina. Por isso, tenho de te responder que sou do centro do Porto, porque foi nesse espaço que cresci. Também parei muitos anos nas escadas do Carolina, mas num período mais punk. O hip hop, nessa altura, ainda não tinha muita expressão em Portugal. Mas hoje está, obviamente, bem enraizado, prova disso são as vozes do rap feminino que vão aparecendo na praça.
O single “Maria Capaz”, nesse sentido, funciona precisamente como um statement. Primeiro, porque representa a atitude que é necessária para fazer um disco — a coragem, a determinação, a garra — e segundo, porque queria brincar com a cena de ser uma mulher a fazer rap, que por acaso é a coisa que mais perguntam nas entrevistas. Há aquela ideia de que se és mulher e fazes rap é porque és uma maria-rapaz. Eu discordo plenamente, tens é de ser Maria Capaz — que é muito diferente. Acredita. Falando agora dos teus medos, tens um tema chamado “Medo do Medo”. Acho que é um conceito mesmo muito fixe para explorar.
É a minha música favorita no disco todo. Se me dissessem que só podia escolher uma música do disco, era a “Medo do Medo” que escolheria. Mas, resumindo, sim, tenho muito medo de ter medo. É algo que nos prende, que nos diminui enquanto indivíduos. Aquilo que é cultivado pelos políticos, pelos média, pelos médicos, pelos professores, pelos nossos pais, por nós próprios, é, de facto, algo terrorífico. Vivemos num clima de terror. Temos medo de tudo. Temos medo porque não podemos largar o emprego que temos porque não há outro à nossa espera. Tudo é motivo para instaurar o medo nas pessoas e controlá-las através disso. É uma forma eficaz de entorpecer e paralisar as pessoas. Sim, é verdade. O medo é algo que temos de combater, mas não podemos aniquilá-lo.
Claro! A cena é que o medo não contribui absolutamente nada para a minha liberdade criativa. Mas, também é verdade que à medida que vou crescendo o medo que existe em mim cresce proporcionalmente. Tenho muito mais medo hoje do que quando era criança, mas isso não quer dizer que quero alimentar o medo que tenho, antes pelo contrário. De forma geral, acho que existe uma campanha que alimenta o medo a nível mundial. É uma forma estratégica de controlar as massas. Vamos falar de outra coisa, mas que de certa forma ainda tem que ver com medo. Sentes-te aceite na comunidade do hip hop?
Sim. O hip hop é uma cultura profundamente meritocrática e que reconhece o talento, a qualidade e o empenho do trabalho das pessoas — há aquela máxima do hip hop, "real reconhece real" —, e isso vale em todas as circunstâncias, quer sejas do Porto ou de Lisboa, quer sejas mulher ou homem, quer sejas branco ou preto. Mesmo que as pessoas não te liguem a dizer que gostaram do teu disco, tu sentes que foste aceite. Há uma ideia de que somos muito conflituosos e hostis uns com os outros, mas isso não corresponde à realidade. O hip hop, desde a sua origem, serviu para canalizar a agressividade, para ocupar o tempo livre de jovens que viviam nos guetos e nos subúrbios, para desenvolver as suas capacidades de forma construtiva, pintando na rua, fazendo música, dançando, etc. Penso que esse espírito ainda hoje prevalece. As relações entre os MCs e as crews são cordeais. Acho que as pessoas levam os beefs demasiado à letra.
Há, de facto, um espírito competitivo inerente ao hip hop que é uma cena positiva, porque é esse estímulo para a auto-superação permanente, para elevar a fasquia, para superar o outro, que faz com que a cultura evolua. As letras podem ser agressivas, mas não passa disso — nas battles, por exemplo, o pessoal insulta-se mas nunca se toca, faz parte da cena. O hip hop foi sempre uma cultura marginalizada, desprestigiada e, às vezes, até ridicularizada pelos média, e se não fosse essa vontade de competir, não haveria nenhum outro incentivo. A energia do hip hop deve-se a essa dinâmica. Quais são as tuas referências no hip hop nacional?
A minha referência principal é Dealema. Mais do que por uma razão estética ou musical, mais do que por ser uma inspiração para o tipo de rap que faço, mas sobretudo enquanto exemplo. Pela atitude, pela integridade, pela coerência, e pela dívida e gratidão que tenho para com eles, principalmente para com o Mundo, que foi o membro mais activo da banda naquilo que foi um trabalho de formação de um público de hip hop do Porto — uma verdadeira escola de rap. Não só oferecia beats às pessoas para fazerem rap, como organizava as festas e manteve uma vitalidade naquilo que era a agenda de concertos no Porto. Eles foram a minha escola. Os Dealema — e os Mind da Gap, claro — mostraram-nos como é possível fazer rap com o nosso calão, com o nosso sotaque, cultivando a nossa identidade local, apropriando-nos da cultura hip hop, mas fazendo-o à nossa maneira. Isso é uma matéria-prima brutal para fazer música e para escrever. Estamos no estúdio do Pedro Augusto [aka Ghuna X], ele está aqui connosco e ainda não disse uma palavra. Foi ele que gravou o teu disco. Fala-nos da vossa relação.
Agora faço eu uma pergunta ao Pedro Augusto. Quantos cabelos brancos ganhaste a gravar o disco da Capicua?
Pedro Augusto: Eu? Foda-se, alguns…
Ana: [Risos] Ele é muito rabugento. As pessoas não sabem, mas ele é mesmo muito rabugento. Depois há uma cena muito engraçada: ele não sendo tripeiro de nascença, ganhou a nossa rezinguice de tal forma, que agora é mesmo tripeiro. É tripeiro. Rosna como um tripeiro com 60 anos, e tem um role de palavrões que é impressionante para um gajo de Leiria — é uma coisa que está acima da média. E durante estes longos meses em que estivemos a trabalhar nesta sala, ele ganhou muitos cabelos brancos, de facto. Na altura em que aceitou gravar o disco, ele não sabia no que se estava a meter. Mas, no final, ficou contente com o resultado. Capi, queres mandar um shout out aí para a malta?
[Risos] Quero dizer a toda a gente que ainda não ouviu o disco para ir a optimusdiscos.com, o download do álbum é gratuito. Se não gostarem eu devolvo o dinheiro, está prometido. E todos aqueles que quiserem ver um concerto de Capicua, apareçam no próximo domingo, dia 3 de Junho, às 15h no Serralves em Festa, no Ténis. Levem os sobrinhos e a cesta do piquenique e fazemos lá um convívio.