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Entretenimento

Este gajo está há 15 anos no chat do mIRC

Nós, que conhecemos e amámos o mIRC nos seus dias de esplendor, sabemos que se trata de uma experiência intensa.
Ilustração de Marta Altieri

Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.

Pensavam que estava morto? Pois, mas ainda está aí e para as curvas. O IRC (Internet Relay Chat), protocolo pioneiro da comunicação, que alcançou o seu apogeu entre 2000 e 2005, conserva ainda alguns adeptos nostálgicos, que, depois de uma década de retrocesso, defendem com unhas e dentes as suas virtudes. No entanto, o futuro é incerto para a plataforma, dado o êxito das redes sociais e a diminuição constante de utilizadores.

Nós, que conhecemos e amámos o mIRC nos seus dias de esplendor, sabemos que se trata de uma experiência intensa, relacionada com a ruptura do isolamento e a sensação de liberdade que te dá o anonimato. Existe um utilizador, especialista no mIRC, que, 15 anos depois, continua a utilizá-lo. É um verdadeiro fã. Dedica-lhe tempo e carinho. Quis averiguar como o faz, porque é que o faz e o que tem visto por lá ao longo deste tempo. Ele, claro, aproveitou todas as oportunidades para elogiar o canal onde é operador. Se quiserem descobrir a verdade na primeira pessoa, já sabem, /join filosofia.

VICE: Quando é que costumas conectar-te?
IRC Lover: Quando ligo a Internet. Dedico pelo menos uma ou duas horas por dia ao mIRC. Tenho tempo para ler, passear e ainda tenho tempo para o mIRC. É ócio. Ócio construtivo, para mim. Já tiveste períodos muito intensos?
Se estou entretido dedico-lhe três ou quatro horas, dependendo do tempo que tenha livre e do tempo que faça lá fora. Uma vez, quando andava meio down, passei lá seis horas, nem tinha vontade de sair de casa. Mas posso perfeitamente aborrecer-me rapidamente e sair depois de meia hora. Estás satisfeito com o que viveste durante estes 15 anos?
Sim, estou convencido de que foi uma experiência positiva, a nível de desenvolvimento de linguagem e pensamento, mas, ao mesmo tempo, frívola e divertida. Então quer dizer que tem sido um tempo bem aproveitado?
Sim, muito. Quando é que entraste no chat pela primeira vez e o que é que te pareceu?
Foi por volta do ano 2000, tinha 40 anos. Adorei. Costumo falar sobre coisas estranhas e com termos pouco habituais. Ali encontrei pessoas como eu. Era muito emocionante, sem dúvida. Achas que é mais difícil encontrar pessoas assim noutro tipo de ambiente?
Acho que sim e dá muito mais trabalho. As pessoas estavam no chat porque tinham coisas para dizer e isso interessava-me. A experiência do mIRC é mais interessante que a do Mundo real?
Não. Respeito a discussão de temas técnicos sobre os quais normalmente ninguém fala, mas se pudesse debatê-los na vida real seria muito mais interessante. Achas que terias audiência na vida real?
Sim, claro, com 20 ou 30 anos há que tentar fazê-lo na vida real. Enquanto se pode. Entre os 20 e os 30 fiz as minhas coisas. Depois chegaram as responsabilidades. O que esperavas do mIRC, quando começaste?
No princípio queria encontrar um foco de agitação política. Atraíam-me a cultura e os temas políticos, mas tive a sorte de entrar no canal #filosofia. O nível intelectual era - e é - bastante alto. Além disso, estava associado a um site e a um fórum, onde se podiam expôr por escrito pensamentos mais articulados e longos. A sinergia entre estes elementos era quase magia. Cumpriu-se a expectativa que tinhas em mente?
Diria que sim. Por exemplo, no dia em que colocaram as bombas em Madrid, nos comboios. Às quatro da tarde, no canal #filosofia estávamos cerca de 170 usuários, aterrorizados, sem saber o que fazer. Como eu era o operador desse turno, propus que aplicássemos o método cartesiano, com a informação que tínhamos. Quase duas horas depois da aplicação do método percebemos, claramente, que aquilo não tinha sido obra da ETA. E o resto penso que já conheces. Achas que o que disseram naquele dia teve alguma repercussão?
Para aquelas 170 pessoas sim. Mais do que isso não sei. Não foi a única vez que vi nos jornais algum comentário, ou ideia, que tivesse acabado de surgir em #filosofia. Pode não ser nada, mas a verdade é que se falava antes no #filosofia e depois nos meios de comunicação massivos. O vosso canal tem influência a esse nível?
É bastante subjectivo, pode ser acaso. Como é que te tornaste operador?
Tornei-me operador porque era bastante perspicaz e atento, num momento crítico, entre 2003 e 2004, quando o mIRC Hispano tentou apoderar-se dos canais temáticos. O que aconteceu?
Os proprietários do mIRC tentaram torná-lo mais comercial. Enviavam infiltrados para os canais anti-sistema, obrigavam a uma operação por parte dos OP's, criavam conflito e o Hispano aparecia como garantia de ordem. Suspendiam as contas dos canais, convocavam umas eleições estranhíssimas sem sentido nenhum, nomeavam agentes eleitos por eles e o nível baixava muito. Não havia uma maneira legal de acabar com o #filosofia, além disso, entendemos qual era a táctica que usavam e parámos os agentes provocadores a tempo. Outros canais de grande interesse, como #psicologia ou #literatura, são hoje em dia uma verdadeira Babilónia. Se acabarem com o IRC, o que é que vão fazer?
Logo se vê. Hoje em dia penso, porque é que havia de renunciar ao mIRC, se é algo que me dá prazer? É a plataforma que melhor domino e na qual investi muito trabalho. E as redes sociais?
A questão do anonimato marca a diferença. O mIRC assegura isso. Seria um grande compromisso expressar o que realmente penso a nível cultural, ou político, com o meu nome em cima. Como geres o anonimato caso organizem um encontro real?
Nunca fui a nenhum. Misturar a vida virtual e a realidade é um erro de segurança imperdoável. Deixaram de fazer-se esses encontros, precisamente por problemas de segurança. Houve gente que viu comprometido o seu anonimato e chegou a receber ameaças.

A personagem que és no chat corresponde à realidade?
Tento dar uma imagem o mais diferente da minha possível. Mas é algo que fui desenvolvendo naturalmente. Baseei-me na minha experiência real e fictícia. O que é que acontece se depois de tantos anos de ficção alguém se apercebe?
Já devo ter sido descoberto centenas de vezes, mas ninguém se manifestou. De certeza que pensam o mesmo que eu, quando lhes apanho alguma contradição: "Olha-me este! Enganou-me bem enganado!". Não é nada surpreendente e pelo meio ainda te ris. Crias identidades falsas por diversão?
Sim. E o que fazes?
Desde meter-me no #lésbicas disfarçado de gaja para ver o que dizem, entrar no #ciências e fazer-me passar por um totó. A verdade é uma, é algo linear. Quanto maior é a mentira, mais interessante se torna. Divirto-me com isso. Disseste-me alguma mentira?
Provavelmente. Não sei exactamente quais, porque devem ter sido poucas e muito medidas, mas quase de certeza que sim. Tentei não fazê-lo, mas não sei… É que não sei mesmo. Gosto de mentir.