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Música

Discos: Capicua

Somos todos curiosos marinheiros nestes mares nunca antes navegados por Capicua.

Sereia Louca

Norte Sul

Com a subjectividade natural neste tipo de justiça, parece porém cada vez mais consensual que é do hip hop (e também alguma facção r'n'b e afins) que têm surgido algumas das manobras mais criativas nos últimos anos. Claro que existirão sempre referências tão ou mais vigorosas noutras áreas, contudo, quando os exemplos são assim tão flagrantes, a ideia impõe-se sem questões de maior. Pelo binóculo internacional, 2013 foi o ano-todo-poderoso para Kendrick Lamar, Main Attrakionz, Dynasty ou Jeremih, só a título de ilustração. Por cá, entre a penumbra e o holofote, Regula, Pródigo, NGA ou o inevitável Halloween vão dando importantes achegas a esse cenário, ainda tímido, embora pleno de terra para lavrar. Um retrato quase completo com a inclusão de Ana Matos, coração e espírito de Capicua, que muitas alegrias tem dado a quem um dia se cruzou consigo.

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Trazendo um discurso que só pode ser tão realista quanto o mundo em seu redor, é afinal do encontro entre as observações do quotidiano e as divagações oníricas — próprias de quem tem sonhos e os quer alcançar — que surge o ponto zero do discurso de Capicua. Desde o álbum de estreia homónimo que a vemos enquanto cronista de gema e idealista por convicção cuja lírica assenta numa brilhante constelação de força, inteligência e sensibilidade. Não será portanto novidade que essas propriedades se façam denotar em

Sereia Louca

. Como disco astuto e audaz que é, reserva-nos um crescendo de descobertas, faixa após faixa.

Entre várias ilações, parece ideia segura que este nunca poderia ser um disco de início de carreira simplesmente pelo carácter complexo que o define. Trata-se pois de um trabalho algo conceptual, alimentado a partir de um sonho de Ana  que ganhou corpo numa edição em formato duplo (algo cada vez mais raro nos dias de hoje) e com uma luxuosa lista de participantes. Se

Capicua

soa indubitavelmente mais físico e imediato, próximo de uma declaração de identidade,

Sereia Louca

revela então facetas que um primeiro encontro a dois nunca possibilita.

O rótulo de maturidade, neste caso específico, apela a um peso meio indesejável para música tão fluída e essencialmente urgente como a da rapper. Ainda assim, será tolerável e legítimo se por instantes considerarmos os pontos acima referidos. Também a abertura musical que a define atinge aqui um novo auge, convocando a presença do icónico José Afonso (em "Vayorken") ou da fadista de calendário Gisela João (no tema "Soldadinho"). Estes e outros pormenores afastam-na, a léguas, de uma série de estereótipos associado ao universo do hip-hop. Sem ressabianços ou tiros no escuro, Capicua lá vai apontando dedos ao Mal e ao Bem, disparando, aqui e ali, um bem oleado jogo de palavras (repare-se logo no duplo sentido do título: Sereia Louca / Serei A Louca). Visitamos cada tema com a harmonia desejada, sem atropelos ou mudanças forçadas de rumo, até desaguarmos na soul voluptuosa de "Lupa" onde a voz de Aline Frazão surge notavelmente numa composição já de si sedutora. E assim se vira a página do disco #1 ("Cabeça"), para a segunda parte ("Cauda"), desligada de electricidade, mas na companhia de amigos.

É nesse formato acústico, de voz guiada pela guitarra de Mistah Isaac e pelos arranjos de They're Heading West, que a viagem segue. Versos caprichados, aos quais já nos familiarizámos, acomodando-se em roupagens menos convencionais e por isso de resultados mais ousados. Um respiro em slow, de quem subitamente trocou o palco pelo backstage e convidou o público a sentar-se à sua volta. Surpreende pelo arrojo e por esta altura já se encontra num espaço bem distante dos moldes habituais do rap. Seis charmosos temas apelando, directamente ou indirectamente, a uma reinterpretação pessoal dificilmente imaginada.

Somos todos curiosos marinheiros nestes mares nunca antes navegados por Capicua. Por cima de nós, brilha o sol e passam as nuvens; debaixo do nosso barco, em águas profundas, baila uma mulher com cauda de peixe. E o melhor é que nada disto é mito.