Personagem pescando em Stardew Valley
Parabéns pelos dois anos, 'Stardew Valley'. Todas imagens: ConcernedApe/Reprodução.

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'Stardew Valley' faz aniversário, mas quem corta um dobrado é você

O jogo de fazendinha é uma Cinderela moderna em que o ferro é leve e a maionese é farta.

"Tenho a estranha sensação de que foram os dois anos mais curtos e mais longos da minha vida."

O sentimento foi expresso no Twitter por Eric Barone no segundo aniversário do jogo criado por ele, Stardew Valley. Mas Eric não está sozinho nessa estranheza. Depois de dois anos plantando, colhendo, batendo maionese e lutando a ponto de ter conquistado uma Lava Katana e uma Espada da Galáxia, bom, eu acho que posso dizer o mesmo desse período desde que o jogo foi lançado. Foram os dois anos mais curtos e mais longos da minha vida.

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É difícil, porém, deixar pra lá a sensação de perda de tempo (diferentemente do Eric, que ao menos ganhou uma grana com o jogo depois de amargar uns anos de desemprego, eu arrumava brecha pra jogar enquanto meus filhos dormiam e enquanto eu mesma deveria estar dormindo). Ainda assim, me sinto mais preparada do que nunca para plantar abóbora ou fiar lã numa roca.

Tudo começou num escritório anódino da Joja Corporation, um lugar com frase motivacional, muito trabalho na frente do computador, barulho de teclas e telefone. A vida não fazia sentido, havia um colega morto na baia ao lado, e tudo o que restava era aquela gotinha de suor na testa que sinaliza stress e esgotamento emocional. No jogo, um vovô deixa de herança uns terrenos no meio do mato, e é pra lá que nós vamos.

É um conto de fadas contemporâneo: você é a Gata Borralheira que faz hora extra na agência, recebe parte do salário em "snacks à vontade", não aguenta mais passar o dia olhando pra tela. Um dia, com a morte do avô, sua vida vira do avesso e você se torna a Cinderela que pode largar o serviço pra fazer aquilo que todos gostaríamos de estar fazendo neste momento: vivendo uma vida autêntica e menos artificial, comendo comida boa e fresca e ainda ganhando um dinheiro extra pra gastar no bar.

(Antes eu tinha objetivos maiores, mas agora meu único sonho é que esse vô apareça em algum momento da vida real.)

O conto de fadas contemporâneo, porém, também exige algum trabalho, alguma proatividade, alguma performance, e não era por estar na zona rural do município de Stardew Valley que dava pra deixar pra lá os perrengues da cidade. Havia um Centro Comunitário todo quebrado, prestes a ser comprado pela mesma megacorporação de atitude predatória de onde fugíamos lá no início e cujo gerente tem cara de ser o maior vilão do jogo (mas não dá pra matá-lo com a espada, em mais um bom paralelo com a realidade que nos cerca). Gente infeliz, briga de casal, esgoto vazando. Depois de ter comemorado o quinhão de terra de graça, percebi que isso era tudo problema meu.

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Screenshot Stardew Valley

Uso máscara de galinha mas consertei o Centro Comunitário; o dono do bar, Gus, também frequenta o local.

O jogo reabre uma ferida urbana: a incompetência mortífera diante da chamada vida simples. Saber plantar na hora certa, esperar o tempo da colheita, perder toda a plantação quando vem uma nova estação do ano. Entender o ciclo da natureza demora e demanda ajuda do Stardew Valley Wiki, e quando revirar o lixo é a única possibilidade de não morrer com a barrinha de sangue lá embaixo, a sociedade desce o sarrafo. Quem é pego mexendo no lixo dos outros (onde às vezes sobra um pãozinho ou uma lata de Joja Cola, a bebida da megacorporação maligna que é uma delícia) toma uma reprimenda e perde moral com a comunidade.

Essa é a parte em que a aventura fica mais complicada. Não basta ser bom, é preciso ter também uma boa imagem aos olhos dos locais, caso contrário a vida demora mais a andar. Na inocência de quem havia começado a jogar fazia pouco tempo, passei alguns dias presenteando os vizinhos com os melhores peixes que eu conseguia pescar. Os melhores!!! Conseguidos com iscas de primeira qualidade!!! E era cada olhar de nojo, "que coisa fedorenta!", as pessoas ficavam gravemente ofendidas. Outros presentes que não faziam sucesso eram alguns tipos de plantas — o azevinho, só faltou jogarem de volta na minha cara. Aos poucos, foi dando pra entender que o pessoal curtia mesmo era um manufaturado de boa qualidade, um prato mais elaborado, um diamante lapidado… Tudo filha da puta mesmo.

Enquanto eu aumentava a minha casa, melhorava a qualidade dos acabamentos, colocava um piso mais caprichado, conhecia melhor essa comunidade de interesseiros. Equipei minha fazenda, comprei galinhas, patos, ovelhas, vacas leiteiras e até porcos especializados em encontrar trufas. Adquiri um cavalo, silos, toda a maquinaria necessária ao agronegócio, só me faltava um empréstimo do BNDES. Enquanto essa grana não vinha, eu me virava na mineração, à procura de metais preciosos e diamantes. Hábil na agricultura, razoável na mineração e plenamente capaz de comercializar meus produtos, eu era praticamente todo o PIB de Stardew Valley.

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Quando soube que poderia me casar pra formar uma família estável unida pelos laços do matrimônio, resolvi que gostaria de ter essa experiência pelo menos no jogo. Pra isso acontecer, no entanto, era preciso conquistar a cara-metade com presentes e agrados. Eu tinha em mente três opções: o pescador Willy, o médico & doutor Harvey e o mendigo Linus.

Com a autoestima no subsolo, comecei pelo mendigo. Mas descobri que o morador de rua não estava interessado num relacionamento, tinha coisas mais importantes pra resolver. Pelo menos não era só comigo o problema. O pescador Willy me pareceu um pouco misógino e bastante desinteressado. Já o médico, quem diria, estava disponível e poderia dedicar o terceiro lugar de sua lista de prioridades (o primeiro era a clínica, o segundo, o radioamadorismo), bom, a mim. Eu me casaria com um doutor e realizaria (no videogame) o sonho da família brasileira.

Depois da cerimônia, ele se mudou pra minha fazenda. Estávamos felizes, Harvey me ajudava a dar comida às galinhas, fazia café da manhã e às vezes dizia que estava muito na bad pra sair da cama. Ainda assim, o dr. Harvey era um marido muito doce, embora às vezes parecesse um pouco distante.

Screenshot Stardew Valley: Harvey

Caramba, Harvey, como você é maravilhoso e também problemático em igual medida!

A maior crise do nosso casamento foi quando ele me cobrou por um atendimento médico. Eu, que lutara nas cavernas do deserto e estava à beira da morte, ainda tinha que pagar pela consulta para que meu próprio marido me fizesse uma cirurgia de emergência. Achei o fim da picada, do ponto de vista emocional.

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"Alguém te encontrou inconsciente e machucada… Tive que fazer uma cirurgia de emergência em você!"Obrigada, meu amor.

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"Tenha mais cuidado da próxima vez, tá?"Fácil falar né queridão, mas tudo nessa casa sou eu.

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"Dr. Harvey me cobrou 1000g pela visita ao hospital. Parece que também sumiram 9 itens da minha mochila".Como é que é, filha da puta?!

Mesmo assim, ou justamente por causa disso, acabamos tendo uma filha. Embora ela desse muito menos trabalhos que seus equivalentes do mundo real, realizava com competência a tarefa de aumentar as demandas e deixar a mãe culpada por achar que está fazendo tudo errado ou bem pior do que deveria.

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Olhando a nenê e fazendo comida antes de sair pra minerar na aridez do Deserto Calico.

O jeito era, então, todo dia acordar e me lembrar de dar um conferes na criança, muito embora ela progredisse sozinha para a vida fora do berço. Confesso que não lembro mais o nome da bebezinha, porque pouco depois de ela ter nascido comecei a dar um tempo no jogo, que ficava mais monótono à medida que eu completava tarefas, melhorava minhas ferramentas, passava por todo o perrengue pra enfim chegar à tranquilidade da abundância. Em cerca de um ano, eu estava com a vida ganha.

Com as contas todas em dia e a geladeira cheia, o tédio se instalou e eu dei por encerrada a minha primeira missão no Stardew Valley. Mas ainda volto às vezes, quando dá saudade desse lugar onde o ferro é leve e a maionese é farta.

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Galinhas felizes colocam mais ovos…

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E as minhas galinhas são muito felizes, espero que ninguém morra de inveja delas.

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Montada em meu cavalo (ao centro) enquanto pastoreio animais em minha realidade árcade.

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Dando um cacete nessas serpentes, habitantes dos subterrâneos.

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Tomando um cacete das serpentes que me enviariam direto pro pronto-socorro.

*Alexandra Moraes é autora das tiras O Pintinho (opintinho.com.br) e editora-adjunta de Especiais na Folha de S.Paulo. Siga ela no Twitter.

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