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Música

"Eu Voltei": O que a nova versão da biografia do Roberto Carlos terá de novo?

​Paulo César de Araújo, o biógrafo do Rei, fala sobre a polêmica envolvendo o artista e a FriBoi, o desejo do músico em incinerar 'Roberto Carlos em Detalhes' e confirma que a nova versão da sua biografia sai em 2016.

Acervo Pessoal

São dezoito horas de ônibus atravessando quatro estados brasileiros. O rapaz alto e magricela chega ao balneário cansado. Não tinha dormido direito durante a noite. Sentia um misto de ansiedade e fadiga dentro do peito. Mas a grana era curta. Nem para o hotel ele tinha dinheiro. O jeito foi improvisar. Ele fica na rodoviária esperando até o horário do almoço. Passa num restaurante e consegue comer algo. Logo descobre que seu compromisso no balneário será num lugar próximo. Checa uma lista de perguntas e o gravadorzinho que trouxe dentro da mala. Está pronto para realizar uma entrevista e depois voltar para a rodoviária. Serão mais dezoito horas dentro de um ônibus até retornar a Niterói. Tudo com a mesma roupa. Sem conseguir dormir numa cama ou tomar um banho. Essa é apenas uma das muitas aventuras que o jornalista, historiador e professor Paulo César de Araújo viveu ao realizar o livro Roberto Carlos em Detalhes. Foram quinze anos de pesquisa intensa. Mais de 200 entrevistas pessoais realizadas em diversos estados. Tudo buscando revelar a trajetória pessoal e profissional do cantor brasileiro de maior sucesso comercial no país. Mas a obra acabou sendo apreendida pelo próprio artista. “Ele queria queimar esses 11 mil exemplares”, diz o biógrafo. “A ideia dele era apreender e incinerar tudo”.

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Divulgação

Os bastidores de toda pesquisa estão no terceiro livro escrito por Araújo: O Réu e o Rei, publicado pela Companhia das Letras em 2014. “O Luis Schwarcz (editor e dono da editora) pediu pra eu contar toda a minha história com o Roberto Carlos. Desde fã até a publicação do livro”, explica Araújo. O Réu e o Rei tornou-se um documento histórico que acelerou a aprovação da PL 393/2011, a lei que decretou a liberação das biografias brasileiras. Antes, o baiano Paulo César foi autor de um dos mais reveladores livros da canção brasileira: Eu Não Sou Cachorro Não, publicado pela editora Record, em 2002. O livro resgatou a obra de cantores tidos como cafonas como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Odair José, Paulo Sérgio e Waldick Soriano. “Ali eu já estava refletindo sobre como nossas elites realizam uma verdadeira exclusão cultural”.

Fui ao encontro de Paulo César de Araújo, no centro do Rio de Janeiro, numa choperia na Cinelândia, numa tarde do último mês de outubro. O biógrafo do Rei Roberto Carlos falou sobre as dificuldades de fazer seu livro e seus projetos futuros. Ele promete uma nova versão de Roberto Carlos em Detalhes: “Estou atualizando esse trabalho. Quero deixa-lo pronto para uma possível reedição”. A nova edição está prevista para sair em 2016 pela Record. Acompanhe a entrevista.

Noisey: No seu primeiro livro, o Eu Não Sou Cachorro Não, você chama a produção dos cantores populares de cafona. Você não aceita esse termo brega pra designar esses artistas?
Paulo César de Araújo: Eu coloco cafona entre aspas porque era o termo da época. Nos anos 1970, eles usavam o termo música popular cafona. A expressão brega surge na década seguinte. A minha posição hoje é a seguinte: não adianta muito você brigar com as palavras. O que incomoda na palavra brega? É ser considerado ruim. É tornarmos o brega um adjetivo e não um substantivo. Eu acho que devemos usar o brega como um substantivo, um estilo musical. Não exista o estilo Bossa Nova? Existe o estilo brega. Isso não quer dizer seja bom ou ruim.

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Sua ideia inicial era fazer uma pesquisa restrita ao cantor Roberto Carlos? Ou era sobre a música popular em geral?
Era sobre música popular brasileira em geral. Me apaixonei pela música brasileira ouvindo rádio AM. Só tinha isso na época. Mas naquela época o rádio, principalmente no interior tocava de tudo [Paulo César viveu a infância em Vitória da Conquista, Bahia]. Tive contato com essa geleia geral brasileira que estava no rádio AM. Lembro de ouvir de Chico Buarque a Waldick Soriano na mesma emissora. Não tinha nenhuma segmentação.

Aí, na faculdade, comecei a fazer um levantamento bibliográfico. Nem sabia se existia livro sobre Roberto Carlos. Depois constatei que também não existiam obras sobre a música brega. Vi que existia um vazio, né? Então, foi exatamente aí que verifiquei: “Caramba, não tem nenhum livro que explica o fenômeno Roberto Carlos”. Já estava refletindo sobre as questões do silêncio, da exclusão.

Qual foi a maior dificuldade que você teve na produção do Roberto Carlos em Detalhes?
Eu queria ter acesso a mais vídeos. Sou beatlemaníaco e assistia aos vídeos dos Beatles chegando em aeroportos. Eu pensava: “Não é possível que não tenham imagens do Roberto chegando pra fazer shows pelo Brasil”. Nem da chegada dele de San Remo [festival italiano de música] tinham. Tive essa dificuldade na diversidade das fontes. Eu tive acesso as fontes impressas na Biblioteca Nacional. Mas não tinha nenhuma instituição que cuidava dos arquivos de áudio e vídeo. Por exemplo, o MIS (Museu da Imagem e do Som) nunca teve nenhum depoimento do Roberto Carlos. Então, achei uma lacuna. Se eu tivesse pesquisando os Beatles teria acesso a um acervo gigantes de áudio e vídeo. No Brasil, você não tem essa cultura da preservação de áudios, vídeos. Essa é uma lacuna, uma dificuldade.

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Foto: Matheus Trunk

E na parte das entrevistas?
Foi um trabalho em que não tive nenhum financiamento. Nesse sentido, eu tive que me virar para obter depoimentos de pessoas que não moravam no Rio. Tive que ir pra São Paulo, interior de Minas, interior do Espírito Santo. Tive as dificuldades de um projeto que tive de bancar do meu próprio bolso: dando aula. Foi um livro feito sempre escrevendo e pesquisando nos finais de semana. Por exemplo: eu me propus a entrevistar todos os compositores que fizeram música pra Roberto Carlos.

Fiz uma lista e falei: “Vou atrás deles”. Pra você acha um compositor de classe média é fácil, o cara está aí na mídia. Agora, você achar um compositor que o cara gravou nos anos 1960 e ninguém sabe onde anda é uma luta.

Como você fazia?
Sempre tinha uma pista. Alguém me dizia: “Ah, ele deve morar em Bangu”. Aí eu ia para Bangu num sábado à tarde e chegava para as pessoas: “Você já ouviu falar de fulano”. “Ah acho que ele mora perto do bar do Tonho”. Aí descobria onde era o bar do Tonho e ia perguntando. Pra você ter ideia, muitos desses [personagens] não tinham nem telefone. Mas o bacana é que eu fui encontrando um por um. Falei com todos que estavam vivos.

Qual foi o lugar mais longe para onde você foi em busca de entrevistar alguém pro Roberto Carlos em Detalhes?
Foi para entrevistar a Edy Silva [divulgadora e secretária de Roberto Carlos nos anos 1960]. Foram dezoito horas de ônibus pra ir e mais dezoito pra voltar. Eu não tinha dinheiro para o hotel, então fui e voltei num bate volta. Fui de noite, entrevistei ela de tarde e voltei na noite seguinte. Foi num balneário perto de Florianópolis, em Santa Catarina. [Edy Silva morreu em setembro de 2015 e morava em Itapema]. Mas foram depoimentos fundamentais, né? Muitos falavam pela primeira vez sobre a convivência com o Roberto.

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Tem algum compositor que foi muito complicado de ser encontrardo?
Um dos mais difíceis foi um chamado Puruca que fez uma única canção pro Roberto: “Aceito Seu Coração”. Uma das mais coisas mais lindas que o RC gravou. Mas essa música ele só cantou no dia que gravou. Então, pra achar esse Puruca foi uma luta também. Ele estava trabalhando em táxi, era taxista nos anos 1990. Enfim, eu tinha essa informação. Quando cheguei num subúrbio carioca perguntei: “Onde anda o Puruca?”, até descobrir o nome verdadeiro dele foi uma luta.

O produtor Evandro Ribeiro também não dava entrevista pra ninguém. Como você chegou nele?
Foi uma sorte danada. Porque ele não dava entrevista pra ninguém, né? Eu procurei na lista telefônica: “Quero falar com o Evandro Ribeiro que trabalhou na (gravadora) CBS”. “Mas seu Evandro saiu da CBS há muito tempo”. “Eu sei. Por isso que eu estou tentando falar com ele. Pra ouvir a história dele”. Já querem te descartar porque não davam depoimento, mas eu falei: “Evandro, meu nome é Paulo César. Sou estudante aqui da PUC e estou concluindo o meu trabalho”. Acho que ele ficou sensibilizado com essa coisa de estudante, né? Ele acabou aceitando falar e foi bacana porque essas pessoas que não dão entrevista quando resolvem falar são as melhores.

O que você acha que o Roberto Carlos fez com os 11 mil exemplares que a editora Planeta acabou negociando com ele?
Roberto Carlos queria queimar esses 11 mil exemplares. Ele tinha feito isso com o livro do mordomo, o Nichollas [O Rei e Eu, livro de memórias do ex-mordomo Nichollas Mariano publicado em 1979]. Ele queimou todos os exemplares da obra do Nichollas no crematório da prefeitura de São Paulo. O (advogado) Saulo Ramos que contou isso. Então, ele me processou e apreendeu o livro com a ideia de incinerar.

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Só houve uma comoção na imprensa com artigo do Paulo Coelho inclusive. Aí o que aconteceu: os advogados falaram: “Roberto, você não pode queimar o livro diante da repercussão do caso”. Então, ele largou os exemplares dentro de um depósito lá em Diadema. Ele próprio disse: “Esses livros estão num lugar que não me incomoda”. Então, eles estão nesse depósito. Eu acho que se ele fosse queimar aquele calhamaço todo, isso ia chamar atenção de alguma forma, né? Deve estar tudo lá jogado, mofado. Ele disse: “Quero guarda-los para sempre”.

É verdade que você prepara uma segunda versão do Roberto Carlos em Detalhes?
Eu estou atualizando esse mesmo livro. Ele foi publicado em 2006 e quero deixa-lo pronto para uma possível reedição. Mas eu não posso esperar. Afinal, alguns juristas estão analisando o meu caso que é muito singular. Eu tenho um material muito grande de pesquisa. Usei só uma parte nisso. Enfim, com o tempo também vão surgindo novas fontes, novas revelações.

Quais serão as atualizações nessa nova versão?
Eu preciso contar novas histórias. Como essa da Friboi que é um dos capítulos mais polêmicos e surpreendentes da história de Roberto Carlos. Uma das coisas mais aberrantes que aconteceu com o artista.

Por quê?
Roberto Carlos come carne. Ele parou de comer carne vermelha há alguns anos. Mas ele sempre comeu peixe de água doce, bacalhau. Mas o problema é que ele sempre foi sensível à causa animal. Cantou músicas contra a matança das baleias, pela ecologia da Amazônia, contra a caça aos elefantes. O episódio da Friboi foi surpreendente porque vai contra toda posição de um artista.

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O Roberto fez uma propaganda defendendo o extermínio de animais em larga escala. Isso não combina com um artista com essa sensibilidade a ecologia.

Toda a trajetória do teu livro: pesquisa, apuração até o lançamento. Você se arrepende de algo?
Nada, nada. Em relação ao conteúdo do livro nada.

De todo esse episódio, você acha que ele foi autoritário?
O pensamento dele é autoritário. Não é a atitude dele contra mim. Essa ideia de: “Minha história é um patrimônio meu”. Esse pensamento é conservador, autoritário. Não existe nada mais radical que a pessoa se defender dizendo ser o dono da própria história. Qualquer história é uma construção coletiva. Só um pensamento autoritário vai tentar impor uma verdade como absoluta. Os advogados colocaram isso em prática como se isso fizesse algum sentido.

E você acha que Roberto Carlos em Detalhes teve um papel decisivo nessa nova lei das biografias? Em todo esse debate?
Sim. Isso é praticamente um consenso. Acho que principalmente pelo radicalismo e pela violência do processo que o Roberto moveu pedindo a proibição do livro. Ele pediu a proibição, 500 mil reais por dia da editora e a minha prisão num tempo superior a dois anos. Esse radicalismo acabou chamando a atenção. Acabou provocando uma reação e uma mobilização que aconteceu depois do caso.

O que o incomodou foi o fato de você ter falado da vida amorosa dele?
Não. Não foi o conteúdo do livro. O que incomodou foi esse pensamento: “Minha história é um patrimônio restrito a mim”. Ele tem uma visão patrimonialista da história: “Esse cara está ganhando dinheiro com o meu nome”. Aí vem a questão financeira, a visão comercial, junta tudo isso com o toque, a convulsão de querer controlar tudo. Roberto Carlos em Detalhes surgiu com muita força sendo capa dos cadernos culturais e logo entrou na lista dos mais vendidos. Isso incomodou e aí entra a visão comercial: “Roberto, estão ganhando dinheiro com seu nome. Você é uma marca”.

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É possível dividir a obra do Roberto em fases?
Sim. Tem uma fase inicial que é da Bossa Nova, ele procurando o caminho dele, certo? Esse período vai de 1959 a 62. Ele gravou bolero, chá-chá-chá e Bossa Nova. É uma fase de indefinição, sem sucesso, mas que está registrada na história.

Depois vem a fase Jovem Guarda com sucesso, do cantor pop jovem entre 1962 e 1968. A terceira é a fase soul. O Roberto sempre teve um ouvido atento, uma musicalidade. Esse foi o diferencial dele entre os outros da geração dele. Não é à toa que ele é discípulo do João Gilberto. Essa fase é de 68 a 71. Depois tem a fase romântica, um período inclusive com canções mais eróticas. Tem a ecológica e a religiosa, né? Ela começa nos anos 1970, mas o auge é nos anos 1980. Ele faz uma canção pra Jesus, outra pra Deus, uma terceira pra Nossa Senhora. Todo ano tem uma canção religiosa na obra dele. Ele torna-se o principal apóstolo da Igreja Católica no Brasil. Por isso, defino esse período como militante religiosa.

Qual fase você prefere?
Os melhores discos são da fase soul. Entre 1968 e 1971.

Tem algum que você goste mais?
O Inimitável de 1968 é perfeito no sentido de gravação. A sonoridade desse disco é muito boa, a voz dele está muito bem. Grandes canções: “Se você pensa”, “As canções que você fez pra mim”, “Não há dinheiro”, “Madrasta”, “O tempo vai apagar”. A sonoridade é muito boa, o disco é muito bem mixado. A voz dele está bonita e você consegue ouvir cada instrumento. Aquilo é irreproduzível. Essa é uma fase muito boa do Roberto: grandes álbuns, grandes canções. Nesse período ele sempre canta muito bem e as capas são muito bonitas. Ele cuida de todos os detalhes. É uma época de transição em que estava acontecendo naquela época: as vanguardas, o Tropicalismo. Os Beatles fazendo Abbey Road, os Rolling Stones fazendo belas canções. O Roberto está no meio daquela verve criativa da geração dele.

Dizem que o nome do disco O Inimitável foi por causa da rivalidade do Roberto com outro cantor: Paulo Sérgio. Tem alguma evidência disso?
Sim. O Evandro Ribeiro me confirmou isso. Essa história é um fato, não é uma intepretação. O Roberto não queria esse título. Mas o Evandro como produtor firmou o pé: “Eu achei que aquele cara estava incomodando. Ele parecia muito com o Roberto”. Toda polêmica aconteceu em agosto, setembro de 1968. Isso está na imprensa da época inclusive. O disco chegou nas lojas em dezembro.

Atualmente, o público do Roberto Carlos é um pessoal mais de terceira idade. Na sua opinião, por que o público do Roberto Carlos não se renova?
A obra musical do Roberto é tão eterna que vários jovens estão descobrindo nesse momento. Muitos estão ouvindo O Inimitável ou aquele disco de 1970. Esses jovens não vão nos shows do Roberto. Porque o público que ele direcionou a sua carreira foi para esse público de maior poder aquisitivo. Essa foi uma orientação do Dody Sirena [atual empresário de Roberto Carlos]. Ele acabou direcionando todos os shows para esse público, inclusive por causa da viuvez dele. Mas um artista como ele certamente não pode ficar restrito a isso. A obra dele e os grandes discos vão permanecer. No meio das grandes canções dele têm rock, balada, soul e canção romântica também. Ele não vai ser confundido somente com esse público de maior poder aquisitivo.

Você tem alguma história inédita sobre o Roberto?
Várias. Vou até falar uma aqui pra você em primeira mão. Ele é um cara muito religioso e a mãe dele, a dona Laura, adorava aquela canção Ave Maria no Morro [sucesso gravado por Dalva de Oliveira em 1942]. A dona Laura queria muito que ele gravasse essa canção. O Evandro Ribeiro também. Mas o Roberto nunca gravou. Eu queria ter perguntado isso para ele numa entrevista exclusiva: “Por que você nunca gravou Ave Maria no Morro?”.

Você tem algum projeto novo depois desse do Roberto?
Eu estou mergulhado na minha tese de doutorado que é sobre o presidente Médici. Estou pesquisando o governo dele de maneira ampla: a política, a cultura, o esporte. Enfim, estou mergulhado e seguindo os passos do Médici. É um período interessante porque ele fez um paradoxo: foi ao mesmo tempo o governante mais repressivo e o mais popular entre os militares. Na tese, eu comparo o governo Médici com o governo João Goulart.

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