GoldLink teve um excelente 2017

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Noisey

GoldLink teve um excelente 2017

Na esteira do sucesso de ‘At What Cost’, o rapper foi indicado ao Grammy e platinou “Crew” sem se afastar de suas raízes. Passamos uns dias com o cara pra sacar o que vem por aí.

“Teleporte não tem desvantagens.”

Era uma calma noite de outubro em Washington e GoldLink estava em um estúdio fotográfico na porção noroeste da cidade, discutindo que superpoder gostaria de ter, se pudesse escolher um.

Em meio ao grupo ali reunido, viajar no tempo era a opção mais popular. Eu escolhi invisibilidade, mas o rapper de 24 anos nascido D’Anthony Carlos, o risco de mudar os rumos da história sem querer parecia alto demais.

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“E se você voltar no tempo pra salvar Martin Luther King e ele virar uma espécie de Tio Tom [nota do tradutor: termo pejorativo que indica um negro subserviente às autoridades brancas]?”, questionou. “E se o Tupac entrasse numas de All Lives Matter?”, todos questionamentos muito válidos.

Com um corte de cabelo novinho em folha, uma jaqueta jeans e uma camiseta branca dentro das calças, GoldLink estava de volta à DMV para a última noite de sua turnê At What Cost, extensão aos palcos de seu disco de estreia de mesmo nome, lançado em 2017. Por volta da mesma época do ano, em 2014, ele começava a chamar atenção no mundo do rap com um gênero que batizou de “future bounce”, que combinava elementos de house, club music e R&B num gênero distintamente regional, ainda que completamente futurista. Agora, com uma indicação ao Grammy na manga por conta de seu nostálgico hit noventista “Crew”, GoldLink está prestes a se tornar o maior produto de exportação musical de sua região.

Pra quem vê de fora, o conceito de DMV soa perplexo: o acrônimo, que significa “DC, Maryland e Virginia”, sugere uma região que engloba dois estados e a cidade enfiada entre os dois, mas não é por aí, não mesmo. Se você perguntar a algum nativo, ele te dirá que a DMV é composta por DC e seus subúrbios – mais especificamente aqueles que podem ser acessados pelo metrô. Caso contrário, não é DMV.

Mais do que um lugar, o termo DMV se refere a uma cultura compartilhada, emanando a partir do coração da cidade rumo aos seus limites, ao passo em que a gentrificação segue a passos firmes, gerando todo um linguajar (falar “kill moe” quando se está de acordo com algo, desapontado ou qualquer coisa entre um e outro) e maneira de se vestir (incluindo um amor profundo por tênis New Balance). Na maior parte do tempo, há também um carinho especial pelo go-go, espécie de versão local do funk cheio de congas, sinos e toques de caixa. Surgido no começo dos anos 70 em DC, sua criação se deve ao pioneiro Chuck Brown, que teve a genial ideia de tocar grooves contínuos com uma banda ao vivo, animando festas sem parar. Noites de go-go ainda rolam na DMV, apesar de não tão frequentes.

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GoldLink conhece bem a cultura, tendo morado em diversos locais pela região durante a juventude. Nascido no Distrito de fato, crescendo entre o próprio e Landover, Maryland, uma calma vizinhança suburbana de Prince George’s County. Aos 16 anos, seus pais se separaram e ele e sua mãe foram morar ao norte da Virginia, onde alguns amigos de escola o encorajaram a se aventurar no mundo do rap.

Aos 19 anos, GoldLink se viu sem muitas opções fora seu recém-descoberto interesse pelo hip-hop e uma possível carreira dentro do mesmo. O jovem então se inscreveu em um programa da região chamado “The Movement” cujo objetivo era estimular jovens da região a empregarem sua criatividade, o que acabou lhe dando acesso a um estúdio local. O dono desse estúdio, Henny Yegezu, é seu agente hoje.

Em um primeiro momento, havia algo de misterioso em GoldLink. Ele nunca mostrava seu rosto, sempre ausente de seus primeiros clipes. Em entrevistas da época, o rapper explica que estava, de alguma maneira, tentando se assemelhar a algo divino, e levando em conta que ninguém sabe com o que Deus se parece, nada mais justo que ninguém saber como ele era também.

“Não temos que tentar ser o próximo Malcolm X ou outro cara”, disse à Complex em 2014. “Temos que ser Deus. Por mais que não consigamos ser perfeitos, temos que tentar”.

Mas após um problema com sua máscara, como dito ao Noisey em 2015, o artista decidiu revelar seu rosto. Desde então ele lançou outros dois projetos, o mais conhecido deles seu disco de estreia de 2017 At What Cost, focado em suas experiências e amadurecimento na DMV com um pano de fundo que soa muito mais melódico que seus primeiros trabalhos. Com este disco, ele foi bem-sucedido ao criar o raro álbum de rap que captura a essência da DMV sem depender do go-go – ou trap – para dar certo. Com imagens vívidas e charme nostálgico, At What Cost também conta com o potencial único de levar esta mesma essência para o mundo exterior.

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A cena rap da DMV ainda está em sua infância: diferente de lugares como Chicago e Atlanta, falta ainda estabelecer sua sonoridade própria. Ainda assim, alguns pioneiros se destacam, caso de Wale, que apareceu no final dos anos 2000 com mixtapes matadoras que juntavam go-go e rap de maneira implacável. No começo desta década, Oddissee também mostrou a que veio no rap underground, deixando sua marca, acompanhado por Fat Trel e Shy Glizzy, que deixaram claro como era a política das ruas do Distrito.

Por mais que, de certa forma, a música de Goldlink seja uma evolução da sonoridade de Wale, por vezes dançante e consistentemente soul, ela não se encaixa bem em nenhuma dessas categorias, preferindo a pegada house cheia de recortes e produção de R&B de coletivos como o Soulection. “Crew”, que conta com a participação dos parceiros de DMV Shy Glizzy e Brent Faiyaz, celebra um sentimento de autoconfiança brutal sobre teclados suaves. Ouvir GoldLink rimar sobre seu melhor ano antes mesmo dele acontecer —”Goddamn, what a time, what a year/ We are what them young boys fear”—só serve pra nos deixar com a impressão de que o cara alcançou seu próprio tipo de perfeição.

Não que GoldLink tenha se afastado da cena dance local, diga-se. Após a sessão de fotos, seu agente Kazz me mandou o endereço de seu próximo destino, uma casa a 20 minutos de distância da saída da cidade, em Prince George’s County. No porão, cheio kits de bateria e teclados, percebi que estávamos no local de ensaio do New Impressionz, banda de go-go da região da DMV que deu a “Crew” um remix oficial aprovado pela cidade em 2017. Eles se preparavam para abrir o show de GoldLink na noite seguinte.

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Ao passo em que os caras da banda organizavam tudo, começou um amistoso debate sobre as origens da mania local de usar tênis New Balance. “Não é bem um debate”, disse Link de forma a desacreditar minha intromissão sobre o lugar de Baltimore na conversa, antes de dizer o seguinte: “Tem fotos do Marvin Gaye usando eles, nós sempre fizemos isso”. Uma série de buscas no Google depois, tal afirmação não foi confirmada.

O ensaio começou devagar, ao som de pratos, uns graves e uma versão sintetizada do gancho de Brent Faiyaz em “Crew”. Quando me dei conta, estava diante de uma banda mandando um go-go ao vivo bem na minha frente e sentia algo surgir dentro de mim. Eu não era o único: aos poucos o som da banda ia ganhando corpo, Link dando sinais de que também estava curtindo aquilo ali, seu rosto retorcendo com cada vibração, então me lembrei de algo que ele havia me dito mais cedo naquele dia.

“Fui pro meu primeiro rolê de go-go quando estava na sexta série”, disse, referindo-se às boates em DC e PG County que abrigavam tais baladas no começo dos anos 2000. “Pode ter rolado nesse local chamado Stadium. Com At What Cost, eu estava basicamente revivendo uma época da minha vida naquela era do go-go, lembro de bem de quando esse som bombou pra minha geração e como me sentia com isso, como as coisas eram”.

Muitos dos locais apontam para o começo desta década como o fim do domínio do go-go sobre DC. O golpe mais duro sofrido pela cena foi a morte de Chuck Brown, pioneiro do gênero, em 2012, aos 75 anos de idade. Outro veio de forma mais gradual, com uma mudança na demografia da região e regulamentações cada vez mais severas para locais com apresentações do gênero. De acordo com dados de um censo, o lugar outrora conhecido como “Chocolate City” viu sua população negra decair de 70% nos anos 80 para cerca de 48% em 2016. Esse tipo de mudança é acompanhado por um subproduto típico da gentrificação, em que novos moradores brancos acabam por repelir formas de expressão negra.

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O regionalismo está no centro do que torna o novo rap empolgante, podendo servir de portal para uma vida em uma outra cidade, ou caso você seja daquela região em específico, uma espécie de celebração de sua identidade e experiências de vida, o que faz do rap da Costa Oeste com influências G-Funk soa como boas-vindas para o pessoal da Califórnia. Trata-se de uma das principais forças por trás da invasão do trap no mainstream, parte daquilo que tornou a crueza não-refinada de Chicago uma extensão de uma cidade em crise. Quando uma cidade não tem um som de rap seu, isso é um desafio, um desafio com o qual GoldLink certamente teve de lidar.

Mas mesmo para um ouvinte que não cresceu em DC nem os subúrbios em seu entorno, At What Cost toca e tudo aquilo soa como Chocolate City. “Have You Seen That Girl?” é um retorno aos picos da adolescência de Link na região da DMV: os bairros de onde vinham suas namoradinhas, baladas que frequentou com amigos, brigas em que se meteu. A produção da faixa reforça essa nostalgia, assim como “Summatime”, uma observação sobre romance adolescente com participação de Wale. “Roll Call” é uma faixa que cita diversos bairros da DMV tais como Forest Creek e Benning Road, bem como a famosa grife local Solbiato, resumindo do que se trata o disco com uma participação da nativa Mya: “So no matter where I go, around the world/ It's back to DC.”

“Este disco não se tratava do retorno de uma sonoridade”, comentou GoldLink. “Era mais uma ode a algo que deveria sim ter recebido mais atenção. A cidade não é mais a mesma e eu queria destacar isso, não é algo esquecido e deixado de lado”.

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Em Silver Spring, Maryland, vemos uns adolescentes ouvindo “Ronda” de Lil Uzi Vert no talo em caixinhas de som portáteis debaixo da marquise do Filmore. Ele estavam se preparando para tocar uma bateria improvisada, mas os seguranças do local os impediram antes mesmo de começarem. 20 minutos depois eles retornam e são expulsos mais uma vez.

Dentro da casa, onde GoldLink faria o primeiro dos dois shows lotados daquela noite, Masego, parceiro frequente seu e nativo da Viriginia chegou chegando, com uma recepção forte do público diante de seu saxofone e vocais ásperos. GoldLink teve uma reação ainda mais acalorada, usando uma corrente de ouro curta no pescoço, cujo pingente era um emblema de carro esportivo. Quando as primeiras notas de “Crew” rolaram nos PAs, o Filmore foi abaixo.

A versão da música apresentada ali naquela noite mostraria-se muito especial: Brent Faiyaz chegou para fazer sua participação, e na hora de seu verso, o mais convicto representante de DC, Shy Glizzy, apareceu no palco com seu filho, sem mais nem menos. Ao gritar a frase que dá início ao verso – “HEY, NICE TO MEET” – o Filmore quase implodiu de vez. Eu estava bem ao lado do palco e parecia que o público inteiro cantava junto de Gizzy, um momento único como nunca havia visto antes, deixando claro o quão significativa uma faixa como “Crew” é.

Há faixas que te fazem dançar, outras te fazem pensar sobre o mundo de forma diferente. “Crew” é o tipo raro de música que te faz sentir – um efeito dos mais excepcionais. A letra trata basicamente sobre como não tem preço ser você mesmo, como ser confiante pode revelar a forma com que você lida com o mundo e como as pessoas te tratam diferente assim que percebem que você opera do seu jeito. Caso acredite na lei da atração, não é de se admirar que o clipe da faixa tenha mais de 58 milhões de visualizações e a música tenha conseguido uma indicação ao Grammy: todo mundo se sente foda ouvindo isso aqui.

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“Não estava esperando nada”, diria GoldLink alguns meses depois, em resposta a um email que lhe enviei após o anúncio. “Mas não vou dizer que fiquei chocado – foi meio que uma confirmação”.

De fato, ele disse ter ciência de que a faixa bombaria logo após sua gravação.

“Sinto como se já tivéssemos ganho”, comentou. “Nenhuma participação ou colaboração grande – só trabalho em equipe e um som bom. É prova de que o legado da DMV é duradouro e com sorte inspirará mais pessoas a fazerem arte sobre o que importa e não fazer só o que vende”.

Na verdade, o sucesso de GoldLink por si só parece já estar abrindo portas para outros jovens rappers que ajudam a expandir a sonoridade típica da DMV. Entre eles temos nomes como IDK,MC de PG County cujo projeto IWASVERYBAD, que estreou via Adult Swim em 2017, passa por raps normais e momentos que alternam influências R&B e de corais de igreja ao tratar da vida de um cabeça-dura que veio de uma criação completamente normal. Outro destaque é Rico Nasty, rapper que se veste como um club kid de inspiração punk, alternando momentos screamo com baladas rap oníricas em sua série Sugar Trap de mixtapes. “Poppin”, sua pedrada lançada em 2017, já alcançou mais de 2 milhões de reproduções no YouTube, entrando até na trilha sonora de Insecure da HBO. E agora, com GoldLink indicado ao Grammy, a empolgação em torno do rap de DMV parece estar em alta.

No camarim, após o show, perguntei ao rapper se ele acredita ter ajudado a introduzir uma nova geração de rappers que pensam mais adiante.

“Eu sinto que sim”, respondeu, limpando o suor do rosto. “Porque a música que eu fazia não era algo de destaque aqui. A área toda era só trap, então vi muito rapper bom tentar se encaixar nisso aí, e eu nunca que vou entrar nessa”.

Mesmo no começo da carreira, foi a segurança inabalável de GoldLink que o fez ir contra o que já era sucesso na DMV. Agora que sua aposta deu certo, quem ele falhou em chamar atenção antes, acabou fazendo um esforcinho.

“Eu podia estar metendo o pau em geral com umas batidas melhores”, disse. “E se não curtirem, vai bombar tanto que vão ter que gostar”.

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