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A cidade que criminalizou a misoginia

Em abril de 2016, a Polícia de Nottinghamshire se tornou a primeira força do Reino Unido a reconhecer a misoginia como um crime de ódio. E foi isso que aconteceu desde então.
Foto: Sueddeutsche Zeitung Photo / Alamy Stock Photo.

Natalie sorri “bem menos” pras pessoas agora que se acostumou com isso. A jovem de Liverpool de 22 anos costumava ser sociável – “uma dessas pessoas que sorri pra todo mundo” – mas se tornou bem mais reticente quando mudou para Nottingham para cursar a universidade três anos atrás e experimentou muito assédio nas ruas da cidade. “Estou muito consciente de para quem sorrio agora”, ela explica. “Tenho medo que as pessoas vejam isso como um convite e achem que estou interessada.”

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Assovios, cantadas no caminho pro mercado e ouvir que ela tinha uma “bela bunda” são coisas que Natalie já experimentou. Em outras ocasiões os encontros foram mais sinistros. Uma vez, por exemplo, quando dois homens a seguiram enquanto ela fazia compras no centro da cidade, e pediram o telefone dela. A vez em que um homem de 50 e poucos anos a abordou, olhando ela de cima abaixo, assoviou entre os dentes serrados e disse que queria ter 20 anos a menos. “Fico enjoada só de pensar nisso agora”, ela diz.

Se algum desses eventos intimidadores tivessem acontecido depois de abril de 2016 – e se Natalie escolhesse dar queixa – isso poderia ter levado a prisões e até acusações criminais, já que foi quando a Polícia de Nottinhamshire se tornou a primeira força policial do Reino Unido a reconhecer misoginia como um crime de ódio. Sob essa política, a polícia investiga “incidentes contra mulheres motivados por uma atitude dos homens quanto às mulheres, [incluindo] comportamentos visando uma mulher por homens simplesmente porque ela é mulher”.

Olhares maliciosos, stalking, contato físico indesejado, tirar fotos sem consentimento, linguagem sexualmente explícita, avanços sexuais indesejados e abuso online estão entre incidentes que podem cair nessa categoria. Algumas matérias da mídia reportando a proibição de assovios e elogios para mulheres inicialmente atraiu críticas para a iniciativa, diz Lizzie Jackson, oficial da Polícia de Nottinghamshire. “Mas corrigimos isso e deixamos claro que isso é sobre comportamentos que podem intimidar mulheres.”

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Chloe, 32 anos, está entre as mulheres que já deram queixa de incidentes assim. “Era primavera, e eu estava caminhando para o trabalho num área arborizada no meio do dia”, ela lembra. “Encontrei um grupo de três caras jovens. Eles não disseram nada até eu passar, aí um deles gritou bem agressivamente 'Parece que você precisa de um pinto grosso na boca'.”

Como ela estava sozinha e eram três homens, Chloe se sentiu ameaçada, com medo de que eles pudessem fazer mais alguma coisa. Ela ficou abalada, mas seu medo se transformou em raiva quando ela viu que eles não a tinham seguido e ela estava segura. Quando ela ligou para a polícia, o incidente foi registrado e policiais tentaram encontrar os perpetradores. A polícia, ela diz, a levou a sério e a escutou, e está tornando Nottinghamshire um lugar mais seguro para as mulheres.

“As pessoas podem achar que o que aconteceu comigo foi trivial – eles só gritaram comigo, mas palavras têm muito poder e significado, e podem ser usadas para intimidar pessoas”, diz Chloe. “Também as atitudes – a agressividade sexual, atitudes misóginas – que essas palavras representam são o que é realmente preocupante e perigoso, porque essas atitudes sustentam outras formas de violência baseada em gênero, como violência doméstica e estupro. Então mesmo que o que aconteceu comigo não possa ser colocado ao lado de uma experiência de agressão sexual séria, ainda é importante que essas coisas sejam reconhecidas pelo que são, e a ligação entre essas ações e outros crimes contra mulheres.”

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Depois de seis meses, a satisfação era de 100% entre as vítimas que procuraram a polícia, diz Martha Jephcott, que fez campanha pela introdução da política em Nottinghamshire e é a organizadora da Citizens UK, uma organização sem fins lucrativos contra misoginia, crimes de ódio e pela justiça social. Em comparação, a satisfação das vítimas de outros crimes de ódio geralmente é baixa – só metade está satisfeita com a resposta da polícia, junto com quase três quartos para vítimas de crimes em geral.

As mulheres “andam de cabeça erguida” agora, e se sentem melhor vindo para uma cidade que manda uma mensagem clara de que comportamento misógino é inaceitável, diz Helen Voce, chefe executiva do Nottingham Women's Centre. “As mulheres se sentem mais seguras sabendo que se alguma coisa acontecer, elas têm a quem procurar”, ela explica.

O centro das mulheres, além de pesquisadores da Universidade Nottingham Trent e da Universidade de Nottingham, começaram uma grande pesquisa no começo de 2018 para estudar o impacto da política e identificar melhorias necessárias. Os resultados completos da avaliação devem ser divulgados em maio, mas as primeiras descobertas mostram que as mulheres agora têm mais chances de dar queixa de incidentes misóginos.

“A maioria ouviu sobre isso e diz que é uma boa ideia”, acrescenta Voce. “A grande resposta é que as pessoas querem que isso continue.” Jackson diz que a Polícia de Nottinghamshire não tem planos de derrubar a política.

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Desde que a política foi introduzida, eles receberam 167 queixas de misoginia. Dessas, 68 foram tratadas como crimes de ódio, incluindo ofensas públicas, assédio e agressão, e 99 foram tratadas como incidentes de ódio, como comportamento intimidador, comentários sexuais inapropriados e abuso verbal. As queixas levaram a quatro prisões e uma acusação.

Mas esses números sugerem que dezenas de incidentes assim ainda não são relatados – uma coisa já vista entre os crimes de ódio nacionalmente – porque a verdadeira escala do problema não parece estar refletida neles. Cerca de 90% das mulheres no Reino Unido experimentam assédio nas ruas antes dos 17 anos; quase três quartos das mulheres entre 16 e 18 anos dizem ter ouvido xingamentos contra garotas na escola diariamente; e 85% das mulheres entre 18 e 24 anos já receberam atenção indesejada em espaços públicos. Em Nottingham especificamente, um estudo do Nottingham Citizens de 2014 descobriu que 38% das mulheres relatavam algum crime de ódio explicitamente ligado a seu gênero. Os homens não relataram nenhuma ligação similar.

Harriet, que tem 22 anos e também vive em Nottingham, encara cantadas pelo menos duas vezes por dia, mas até agora está hesitante em dar queixa dos incidentes à polícia. “Você começa a duvidar de si mesma”, ela explica. “Você acha que o que aconteceu com você não é ruim o suficiente para dar queixa. Sempre acho que eles não vão me levar a sério.”

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Em vez disso, ela – como Natalie – toma passos para evitar atenção negativa. “Se estou andando até a casa de uma amiga à noite para nos encontrarmos antes de sair para beber, não passo batom vermelho até chegar lá”, diz Harriet. “[As cantadas] me fazem sentir como se eu quisesse me misturar com o fundo.” As duas não estão sozinhas nisso – quase três quartos das mulheres já fizeram algo para se protegerem contra a ameaça do assédio, como mudar seu caminho para o trabalho e evitar certos lugares.

Foto: Dmitri Maruta / Alamy Stock Photo.

Natalie e Harriet deixaram claro que apoiam a ação em Nottinghamshire para tratar a misoginia como crime de ódio, mas disseram que ainda esperam para ver se ela será transformadora. Mas acham que isso mudaria se a política fosse aprovada para toda a nação – uma noção que já tem apoio de alguns partidos.

A parlamentar do Partido Trabalhista Melanie Onn conduziu um debate no começo de março visando acrescentar misoginia aos cinco tipos já existentes de crimes de ódio monitorados centralmente – raça, religião, orientação sexual, deficiência e identidade transgênero. Monitorar formalmente esse tipo de incidente no país vai, segundo ela, “ajudar a prevenir violência contra mulheres, apoiar intervenção inicial contra incidentes de baixo nível e dar às mulheres mais confiança para dar queixas de ações que, muitas vezes, se tornam o papel de parede de suas vidas”.

Voce acredita que uma política nacional possa realmente desencorajar pessoas que cometem crimes de ódio misóginos, e diz que aumentar a importância da questão vai ajudar a apoiar trabalho preventivo nas escolas através de educação de relacionamentos saudáveis.

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Jephcott concorda, e espera que um comprometimento em nível governamental ajude a estimular as queixas. “Se vamos ter um padrão nacional, as mulheres de toda parte que passam pela mesma experiência vão ter o mesmo acesso à justiça”, ela diz. “Isso é muito empoderador, e vamos gerar um aumento das queixas que pode derrubar o número de crimes sendo cometidos.”

Mas Onn encara desafios no Parlamento, principalmente do parlamentar tory Philip Davis – que já foi chamado de “troglodita” pelos próprios colegas por suas visões sobre igualdade – porque a política só aborda preconceito contra mulheres, não contra homens. Victoria Atkins, ministra conservadora das mulheres, alertou sobre “criar leis que inadvertidamente entram em conflito com princípios de igualdade”, e questionou se uma legislação de crime de ódio é a melhor maneira de tratar o problema, já que “mulheres não são uma minoria”. De maneria interessante, Natalie e Harriet acham que a política nacional também deveria levar a misandria em conta.

Onn contra-argumentou que o desequilíbrio de poder na sociedade frequentemente coloca as mulheres numa posição de minoria, apesar dos números contarem uma história diferente. E Jephcott acredita que tratar misoginia como crime de ódio é “a decisão certa”, porque é sobre a perspectiva das sobreviventes.

A Polícia de Nottinghamshire diz que ainda é cedo para dizer se esse trabalho levou a uma diminuição da misoginia, porque isso é “só uma parte de uma mudança de longo prazo nas atitudes”, mas que já entregou um relatório para o Conselho Nacional de Chefes de Polícia e está esperando feedback sobre se isso será implementado no país todo. O Escritório de Assuntos Internos também está interessado em ver os resultados do trabalho, mas disse que já tem “uma legislação robusta que pode ser usada para proteger mulheres contra uma variedade de crimes”.

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Hardyal Dhindsa, especialista em crimes de ódio da Associação Policial e Comissariado de Crime, e do Comissariado de Polícia e Crime de Derbyshire, diz que é crucial ver em que forças a misoginia é registrada como crime de ódio para saber se isso está melhorando o resultado para as vítimas. Passos poderiam ser tomados “para garantir que qualquer pessoa relatando assédio e outros crimes baseado em gênero seja levada a sério, e que os perpetradores encarem a justiça”.

Mas para muitas mulheres, essa não é uma questão de punir pessoas, diz Jephcott. Muitas querem o fim de incidentes misóginos. Natalie espera que eles deixem de ser a norma – algo que as mulheres são condicionadas a esperar “como parte de ser mulher”.

Chloe diz que ações do topo para reduzir o problema mostrariam àqueles no poder que para manter as pessoas seguras, é preciso levar a seguranças das mulheres a sério. “É ótimo que incidentes motivados por racismo e homofobia, por exemplo, são reconhecidos como crimes de ódio”, ela diz. “Levar o ódio contra as mulheres a sério manda uma mensagem forte sobre o tipo de sociedade em que queremos viver.”

@emilygoddard

Matéria originalmente publicada pela VICE Reino Unido.

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