Não Existe Amizade na Festa Hacker do Facebook
Crédito: Jon, da Bitquark

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Tecnologia

Não Existe Amizade na Festa Hacker do Facebook

Durante a Defcon, a esquisita festa do Facebook mostra que a empresa, assim como outras, está em território estranho.

O vento do deserto bagunça meu cabelo e me deixa ofegante enquanto corro em direção ao Las Vegas Strip. É uma noite de sexta-feira no Defcon, o gigantesco evento hacker, e eu consegui um convite para o evento mais exclusivo e controverso da noite: a festa do Facebook.

A balada acontece na Surrender Beach, uma boate luxuosa localizada no hotel Wynn Encore. Suas portas abrem às 22h30 e fecham, pontualmente, à meia-noite. A recomendação foi "vista-se para matar", o que significa que, no momento, estou arrumada demais – ainda estou no sexto andar (o andar da piscina) do Palms Palace, em uma festa chamada Queercon, um evento anual que começou como um pequeno encontro de hackers LGBT e tornou-se uma das festas oficiais do Defcon. Fui convidada por uns caras héteros, uns veteranos que me informaram que essa seria a festa mais importante do congresso.

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Quase todas as pessoas da festa estão usando camisetas pretas ("A Segurança de Informação Me Protegeu da Prisão") ou shorts jeans e camiseta nenhuma. Eu estou usando um conjunto azul e brilhante. Azul-Facebook, eu diria. Estou em Vegas, afinal. Para ser mais exata, estou na Defcon, onde você pode vestir o que bem entender; você pode até ser trollado, mas ninguém vai te julgar.

Queercon. 

Chegando no evento do Facebook (que, como muitas das festas patrocinadas daqui, existe para agradar a nobreza hacker), uma mulher vestida de branco me guia por entre os bêbados das filas de baladas vizinhas. Sigo-a até a área da piscina, reservada apenas para os convidados do Facebook. Estou empolgada. Será que estou entrando em uma festa suntuosa, ao melhor estilo Gatsby? Ainda não posso dizer, porque logo na entrada um porta-voz da empresa vem me cumprimentar. Ele me explica que, devido à complexidade de seu sistema, o Facebook investe muito em segurança.

Leia mais: Como Não Ser Hackeado na Maior Conferência Mundial de Hackers

"Toda vez que alguém vizualiza o seu perfil, o sistema computa inúmeras informações." Se você abrisse seus posts para todos seus amigos – menos uma pessoa – você ficaria muito puto se suas informações aparecessem para o infeliz. O site tem vários engenheiros que trabalham para assegurar que isso não aconteça.

O porta-voz é legal, mas sério, e responde minhas perguntas sobre a privacidade e segurança no Facebook com frases prontas que parecem ter sido escritas para um comunicado oficial. Isso não me supreende, mas a voz irracional dentro de mim me diz que a intimidade que eu tenho com o site para qual ele trabalha nos tornaria… amigos. Eu entrei no Facebook em 2004, quando ele ainda era uma novidade nas universidades americanas. Isso me torna mais especial do que todos os outros que entraram no site desde então, não? O meu ID de usuário mostra que eu sou o número 301.636, o que me torna uma das precursoras dos 1,32 bilhão de adeptos que usam o site pelo menos uma vez por mês, certo?

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Meu anfitrião e futuro amigo termina nossa conversa falando que o time de especialistas em segurança do site está em eterna expansão. "No ano passado nós aumentamos o número de especialistas em privacidade. Estar em sintonia com a comunidade é nossa prioridade – é por isso que participamos da Defcon."

A Defcon foi criada há 22 anos e cresceu junto com a atividade hacker, que passou de um hobby para jovens inteligentes e anti-autoritarismo a uma indústria imensa e extremamente lucrativa. Muitos dos participantes do encontro começaram hackeando máquinas que vendem doces, fliperamas e orelhões; hoje, eles têm ótimos cargos em empresas de segurança digital como "analistas de testes de penetração", hackeando grandes empresas para descobrir suas falhas de segurança e corrigi-las.

Segundo Jeff Moss, um dos fundadores da Defcon, que responde pela alcunha de Dark Tangent: "Vinte anos atrás, eu achava que qualquer um que trabalhasse para o sistema era um idiota, um perdedor. Dez anos atrás, eu achava que quem não trabalhava para o sistema era um perdedor. Hoje, eu sou o sistema."

A Defcon tem um enfoque menos político do que outros encontros de hackers menores, como a HOPE, mas a política ainda está lá. Tempos atrás, a própria NSA participava da Defcon. Em um comunicado ao Congresso americano em 2012, o General Keith Alexander, líder do NSA, afirmou que a agência não roubava dados de cidadãos americanos. Após o caso Snowden em julho do ano passado, Moss publicou uma nota no site da Defcon que começava com a seguinte frase: "Caros agentes do FBI, precisamos dar um tempo". Os ciber-generais haviam sido banidos de um de seus maiores campos de recrutamento.

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Apesar dessa ausência evidente, fui informada que esse será um dos anos com a maior taxa de recrutamento da Defcon. O Google está aqui. O Dropbox está aqui. Até a Nike está aqui. E é claro que o Facebook também está aqui, financiando essa festa, o que é curioso, visto que todo dia alguém escreve alguma notícia – que é então espalhada no Facebook – acusando o Facebook de vender informações pessoais de seu um bilhão de usuários.

"O Facebook estar dando uma festa no Defcon é o mesmo que o NSA dar uma festa no Defcon," disse-me um programador de São Francisco, resumindo o consenso geral.

"O Facebook pensa que estou na Rússia, porque foi isso que eu disse para ele", diz outro participante do Texas. Isso mostra o quanto ele quer dividir suas informações pessoais com a empresa.

Durante a festa, funcionários entregam panfletos sobre a "caça aos bugs" do Facebook. Se alguém encontrar alguma falha no sistema do site e informar sua equipe técnica, esse alguém irá receber uma recompensa. "Nossa recompensa mínima é de US$ 500, mas o céu é o limite." Alguns programadores já ganharam mais de US$ 150 mil, de acordo com o panfleto.

Depois de algum tempo de festa, um executivo de uma grande empresa de segurança digital me diz que esse não é apenas um evento de recrutamento. "Muitas pessoas acham que o Facebook é assustador, e eles estão aqui para aumentar a confiança do público. Eles estão encorajando uma mentalidade de lobista."

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Ele ressalta que o evento está sendo frequentado pelos chefões de várias organizações pró-privacidade, como ativistas e advogados do ACLU e da EFF, a Fundação Fronteira Eletrônica (em julho, a EFF lançou a Privacy Badger, um programa gratuito criado para impedir o rastreamento em sites como o Facebook). "As pessoas que irão escrever as leis sobre vigilância digital estão aqui", ele afirma. Não sabemos se o Facebook conseguiu convencer todos de sua confiabilidade, mas algo é óbvio: "Eles chamaram a atenção de várias pessoas. Muitos ativistas digitais vieram aqui só por causa disso."

Surpreendentemente, essa festa não tem comida nem dança. No fim da festa, chego a ouvir algumas reclamações sobre o Grey Goose meia-boca servido. A festa acontece em várias casinhas de piscina, cada uma com varanda e um bar "faça-você-mesmo", com vários decantadores, mixers, garrafas de bebida e copos de plástico, onde os convidados fazem seus próprios drinques. Ao ver isso, minha mente paranóica logo pensou em "boa noite, Cinderela". Ou, para combinar com o clima hacker, alguém jogando um pouquinho de LSD em todas as garrafas abertas. Ao julgar pelo comportamento civilizado dos convidados, creio que nenhum deles fez algo do tipo.

COM GAROTAS EM VOLTA, DISSE UM CONVIDADO, AS CONVERSAS PODEM IR DE, DIGAMOS, HACKS DE WI-FI ATÉ DISCUSSÕES SOBRE "OS PEITOS DAQUELA ALI."

O único vislumbre do tão esperado excesso característico de Vegas é uma escultura gigante de gelo no centro da festa, que está sendo esculpida com uma serra elétrica no formato da palavra "hack". A escultura tem um duplo sentido: estamos em um encontro de hackers, e além disso, a linguagem de programação do Facebook se chama "hack". A escultura derrete rápido; o termômetro marca 32 graus.

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Olho para os lados em busca de um rosto amigável, e noto que esse é o primeiro lugar da Defcon que não é completamente masculino. A maioria dos convidados são homens, mas olho em volta e consigo ver até mesmo algumas conversas entre mulheres.

Em geral, os homens da Defcon são agradáveis, respeitosos e mente-aberta. Eles falam com adoração sobre as poucas hackers profissionais que conheceram. E eles sempre mostram o quanto sofrem com a pouca quantidade mulheres hackers. Um cara, reclamando sobre o fato de todas as mulheres de sua empresa serem administradores e não técnicos de segurança, me disse: "Eu queria que um cara com nome de mulher trabalhasse lá, pelo menos". O problema, segundo eles, é que a maior parte das garotas que circulam nesse meio estão lá apenas para chamar atenção.

Dessa forma, as conversas podem ir, segundo um convidado, de algo muito interessante como a função de um aparelho que intercepta sinais de wi-fi, até uma discussão sobre "os peitos daquela ali".

A única mulher do grupo com quem eu estava falando se apressou em me mostrar sua carteirinha de hacker logo que nos conhecemos. Ela me disse que hackeia desde quando era uma jovem garota na Filipinas, onde ela conectava seu laptop a um orelhão para usar a internet, e onde seu avô a ensinou a hackear o medidor de energia elétrica, diminuindo a conta de luz do apartamento de três andares para US$ 10. Ela não hackeia nos Estados Unidos porque "aqui isso dá cadeia". Ainda assim, ela queria que eu soubesse que ela era uma hacker de verdade.

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"Eu não sou uma maria-hacker", ela me disse, usando um termo que eu ouviria muitas e muitas vezes na convenção, "se eu fosse uma maria-hacker, eu estaria postando tudo na internet, e eu não estou".

Na festa do Facebook, me sinto aliviada por estar perto de mulheres que não se sentem obrigadas a se vestir como um homem. Me surpreendo quando me apresento a duas delas – as duas usam vestidos e uma delas tem um baita anel no dedo anelar – e descubro que elas são chefes de segurança do Facebook.

Prometo não usar seus nomes (normas da empresa), e, escolhendo minhas palavras com muito cuidado, pergunto o que elas acham sobre os libertários que reclamam dos problemas de privacidade do Facebook.

Percebo que essa não é uma pergunta muito simples, e que talvez eu deveria ter começado com assuntos mais triviais. Mas com base em outras conversas que ouvi na Defcon, já penso em várias respostas possíveis. Uma delas pode dizer algo interessante, ou talvez elas me deem uma resposta ensaiada e padronizada dada por todos os funcionários da empresa. Terceira opção: elas falam que não podem responder a essa pergunta.

No fim, elas parecem muito surpresas com minha pergunta. As duas ficam me encarando como se eu tivesse colocado uma arma ensanguentada em suas mãos e chamado a polícia. O silêncio é longo e excruciante. Na cidade da sorte, eu represento exatamente o contrário: uma ameaça tão mítica e tão horripilante que elas nunca chegaram a ver.

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Em algum momento uma delas olha para mim e me diz: "Espero que você se divirta na festa". A outra sugere que eu fale com o porta-voz da empresa.

Eu fui dispensada, como um pedido de amizade recusado no Facebook. Me levanto e me despeço. Percebo o que deveria ter reparado nisso quando cheguei aqui: o Facebook não precisa de publicidade. Quando uma em cada sete pessoas do mundo está usando seu produto, as relações públicas se limitam à defesa.

No meio da multidão encontro o porta-voz, que aparentemente falou com suas colegas. "Elas estão aqui para interagir com os engenheiros", ele me diz, justificando a resposta estranha. "Elas não podem representar a empresa."

Mais tarde, o assessor me mandou um email: "Achamos que dialogar sobre segurança é muito importante e uma das melhores formas de melhorar as práticas da indústria. Porém, gostamos de ter esses diálogos quando todos têm as mesmas informações."

A maior parte das grandes corporações proíbe seus funcionários de falar com a imprensa. Mas essa resposta pareceu meio deslocada em um encontro tão punk quanto o Defcon. Ao invés de aliviar minha paranoia, ela a aumentou ainda mais.

Nas semanas após o congresso desse ano, a internet encheu-se de discussões sobre as "experiências psicológicas" que a empresa havia conduzido em seus usuários ao mudar o conteúdo de seus Feeds de Notícia (Sheryl Sandberg, a Chefe de Operações da empresa, afirmou que o estudo foi "mal-compreendido" e disse que o Facebook costuma manipular o conteúdo visto por seus usuários, assim como a grande maioria dos sites). Esse caso e outros escândalos recentes levaram ativistas do grupo de direitos digitais "Fight for the Future" a enviar uma petição com 135 mil assinaturas para o escritório do Facebook no dia 14 de agosto, exigindo que o Facebook "encerre suas práticas invasivas", pedindo mais transparência e exigindo que ele se comprometa em não repetir as experiências psicológicas.

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Mas como o crítico Jaron Lanier tem dito há anos, é possível afirmar que os próprios usuários do Facebook são os culpados por esse monopólio de dados. Estamos expondo nossas vidas voluntariamente e permitindo que as empresas sigam os rastros que deixamos por todos os sites que visitamos na internet.

Isso não é nenhuma novidade. Os malefícios trazidos pela inovação tecnológica existem desde o começo dos tempos modernos. A internet é fantástica, e os avanços tecnológicos da última década fazem com que eu me sinta feliz por estar viva em um época tão interessante. Durante minha década de Facebook, o site me ajudou a encontrar colegas de quarto, amigos em outras cidades e oportunidades de emprego; me informou sobre várias festas que eu fui e festas que eu não fui, e até mesmo – muitas vezes, na verdade – me ajudou na auto-tortura. Mas nós estamos sendo ingênuos ao ignorar que nossos hábitos na internet são votos que decidirão o futuro no qual viveremos. Ou talvez nós pensamos que o que acontece em Vegas, ou em qualquer lugar, fica por lá.

Depois da festa, solicitei uma declaração do Facebook sobre privacidade e segurança. Outro porta-voz chamou atenção para a nova opção de Log-in Anônimo, que "dá aos usuários a opção de entrar em apps sem compartilhar informações do Facebook". Ele também explicou o processo publicitário do site, no qual uma busca pela palavra "televisão" levará a mais propagandas de eletrônicos no feed da pessoa em questão, e me certificou de que é possível bloquear todas as propagandas do Facebook: "Se você não quiser que usemos os sites e apps que você utiliza para direcionar as propagandas de seu feed, nós não faremos isso".

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Sobre o envolvimento do Facebook com a NSA, Mark Zuckerberg tem sido muito enfático em suas críticas às práticas de vigilância do governo, chegando a dizer em um conferência: "Eu sinceramente acho que o governo vacilou" (o Facebook, junto de outras empresas digitais, processou o governo americano para conseguir o direito de disponibilizar documentos sobre a sua relação com o NSA).

Depois da meia-noite, começo a receber mensagens de alguns hackers que conheci mais cedo. Eles ainda estão na Queercon. A festa está foda. Cadê você? "Tá todo mundo dançando música disco e doidão de MD." "Traz esse corpinho pra cá." "Nenhuma festa da Defcon será melhor."

Quando eu finalmente volto para a Queercon com um grupo de estagiários da EFF, a festa já passou do pico. As pessoas ainda estão dançando e algumas delas ainda estão na piscina, mas a festa está morrendo. "Você perdeu!", todos me dizem sem parar, me deixando triste de verdade. É como se eu estivesse no ensino médio – eu escolhi ir para uma festa com a galera popular ao invés de sair com meus amigos e perdi a festa do ano.

Alguns dos hackers que eu conheci estão me zoando por eu ter perdido a Queercon para conversar com advogados da EFF.

"Eles não estão falando sobre as questões mais importantes", reclama um deles sobre os grupos de direitos digitais. "A EFF é muito reacionária. Eles são conhecidos pelo seguinte: se você tiver um caso importante, eles vão te mandar pastar."

Entre todas as minhas justificativas por ter perdido o bacanal hacker queer, a presença do Facebook é a que soa mais ridícula para eles.

Eles nem gastam saliva para explicar. É simples: "O Facebook não é a Defcon."

Um pouco depois disso, um deles pega seu telefone e me convida para ser sua amiga.

Siga a Lucy no Twitter: @lucyteitler

Tradução: Ananda Pieratti