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Tecnologia

O Jogo que Transforma a Guerra Química em uma Comédia Obscura

Misturando uma jogabilidade comum com pitadas de histórias reais de guerra, "Valiant Hearts: The Great War" é sombrio, mas também diverte.
Captura de tela: Valiant Hearts/Ubisoft

A Primeira Guerra Mundial foi trágica. Valiant Hearts: The Great War, o novo jogo de adventure da Ubisoft cujo cenário é a Europa devastada pela guerra, é uma folia desbragada, uma alegre traquinagem em que você nem sequer atira nos outros.

Em outras palavras, não acredite piamente no astuto marketing sentimentalóide por trás de Valiant Hearts. O jogo trabalha numa chave claramente ridícula. Você dá na cabeça de alemães com uma concha de sopa quando eles não estão olhando. Você os nocauteia com socões cegos e confiantes feito o Batman dos anos 60.

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Em certo momento, você e seu cachorro estão tocando órgão dentro da Catedral de Reims. A barca do zepelim do Barão von Dorf, o chefe de Valiant Hearts, pende de um buraco no telhado do edifício. Os tubos do órgão foram torcidos em todas as direções por uma bomba e você precisa tocar o instrumento musical coordenadamente com seu cachorro para atacar o barão, usando lufadas de vento musicais que saem dos tubos danificados nos mais diversos ângulos. A seu comando, o obediente cachorro, Walt, deposita a pata sobre a tecla certa:

Um botão de cima do seu controle é dedicado a evocar fatos históricos e fotos colorizadas relacionadas à localização em que você se encontra no jogo — algo que para ser acessado na maioria dos outros jogos normalmente requer que você pause e procure num menu. Quando você aperta este botão, a música da fase atual dá lugar a um melancólico concerto para piano.

Então, de repente você pode ver, como eu vi, uma fotografia real de um soldado com o rosto severamente desfigurado:

Após ler sobre soldados desfigurados, você volta ao jogo e usa um osso humano como uma alavanca improvisada para ativar um interruptor que faz subir um elevador. Você cava um túnel a uma velocidade impossível com sua concha de sopa. Você dirige um táxi costurando pelo trânsito para evitar outros veículos e objetos — os quais são festivamente sincronizados com música Can-can.

A história faz você variar entre muitos personagens, nenhum dos quais possui olhos. Franjas e chapéus mascaram seus rostos. As mulheres são esbeltas, enquanto os homens são fortões. Tanto homens como mulheres têm pés tão minúsculos que parecem mal se equilibrar sobre pernas de pau. Ainda assim, a arte é colorida e vibrante.

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Uma das protagonistas é uma moça de amplo decote que devolve a saúde a feridos como voluntária da Cruz Vermelha. Antes da Guerra, ela era veterinária, e carrega consigo uma chibata que é capaz de brandir como se fosse uma arma, mas o jogo não dá muita oportunidade para ela usá-la como tal. Em vez disso, ela só trata os feridos numa série interminável de combos repetitivos.

Para ser honesto, os personagens fictícios e suas histórias me entediaram. Todos eles tinham diários ficcionais tão chatos quanto você poderia esperar de um diário ficcional, detalhando vidas sem a menor especificidade.

O botão de história real, por outro lado — contendo fatos históricos obtidos por uma parceria com a Apocalypse: World War I e a Mission Centenaire, segundo informações da tela do jogo — sempre trazia algo interessante, detalhes como a arte de trincheira que soldados entediados modelavam a partir de projéteis já explodidos: “alguns dos materiais de projéteis detonados já eram esteticamente interessantes, e se não fossem, os soldados remodelavam o que tinham em mãos até criar artigos convenientes”. Por que não colocaram algo assim para fazermos no jogo?

De qualquer modo, conforme você prossegue por esse sonho de Primeira Guerra à la Tex Avery, você esbarra em parte dos cem colecionáveis que foram inseridos no jogo pelos desenvolvedores. Trata-se de artefatos reais que, com um toque do botão de história, permitem ver detalhes como um desenho, descrição e contextualização histórica.

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Às vezes, esses colecionáveis ficam em locais meio constrangedores segundo o ponto de vista do jogador. Na pele da enfermeira, resgatei uma mãe que estava presa em uma casa em chamas, reunindo-a com a filha do lado de fora. Os alemães tinham cegado a menina com cloro gasoso e depois a libertado. Mas, enquanto eu estava na casa, também roubei um pião de madeira, pouco antes de me despedir de mãe e filha, deixando-a com menos um brinquedo além de todos os problemas que já tinha.

O autor como enfermeira.

Na pele de Karl, fugi de um campo de prisioneiros de guerra e desmaiei na neve. Uma família me acolheu e me alimentou até que eu recobrasse a saúde. Quando eu estava de saída, roubei um fonógrafo de sua mesinha no canto da sala. “Ancestral dos tocadores de CD e DVD”, dizia o texto que apareceu quando apertei o botão de história, “o fonógrafo usava cilindros de cera até os discos de vinil ganharem a preferência popular”. Muito interessante, pensei, despindo meu uniforme e vestindo um disfarce num estábulo perto dali.

Minha preocupação com esses colecionáveis às vezes me tirava totalmente do curso. Ao participar de uma investida no campo de batalha, com outros soldados gritando e caminhando para a direita da tela, meu instinto era dar uma rápida conferida à esquerda da tela na busca por artigos históricos, de forma que tive muitas vezes que correr atrás de meus confrades para não perdê-los de vista. Parece até brincadeira, mas nem mesmo na pele de um soldado me deram uma arma de fogo, então talvez ter ficado para trás cuidando do equipamento possa até ter sido uma boa ideia.

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Parece até brincadeira, mas nem mesmo na pele de um soldado me deram uma arma de fogo, então talvez ter ficado para trás cuidando do equipamento possa até ter sido uma boa ideia.

Esse jogo não é para ser nenhuma História Popular da Primeira Guerra, nem mesmo um reconhecimento do trauma compartilhado por europeus e americanos, por mais que se apresente como tal. Os alemães são os vilões. Quando ouvi dizer que um dos protagonistas era alemão, não esperava ter que lutar contra alemães geralmente caracterizados como se fossem o Dr. Wily e seus robôs malvados, sendo que o Barão von Dorf usa uma caveira com ossos cruzados em seu chapéu como se fosse um proto-oficial das SS.

O protagonista alemão é casado com uma moça francesa que tem um bebê francês, e deseja ir para casa, que fica na França.

Você também recebe a informação, via botão de história do jogo, de que os alemães foram os primeiros a empregar métodos de guerra química, e parte do jogo acontece na cidade de Ypres depois de um ataque com cloro gasoso, o primeiro de seu gênero, segundo o jogo. Na vida real, conforme me conta o botão de história, os soldados acabaram aprendendo a usar panos embebidos em urina amarrados ao rosto como máscaras de gás improvisadas. Isso teria sido algo incrível de se implementar no jogo, mas ele fica permanentemente obcecado por enigmas sem graça com alavancas.

O motivo pelo qual não entrei em detalhes sobre a jogabilidade é porque esse é o aspecto menos interessante do jogo. Valiant Hearts é um puzzle 2D de plataforma, na linha de Limbo ou Braid. Embora aqui você não possa pular.

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Você é forçado a trocar de personagem de vez em quando. Mas, sendo bem honesto, não importa com quem você está jogando. Não consegui me importar muito com nenhum deles, entorpecido após um dilúvio de charadas imbecis, sendo que quase todas elas tratavam de encontrar uma alavanca que por algum motivo estava desconectada de um interruptor, para poder reconectá-la e assim ativar o interruptor.

Havia enigmas demais baseados em alavancas. Parecia uma homenagem ao Teatro do Absurdo, de tanto você ficar encontrando a mesmíssima alavanca repetidas vezes, por todas as partes da Europa devastada pela guerra, às vezes presa no alto de uma árvore, às vezes enterrada no solo, e então você ou seu cachorro carregam-na por toda parte, procurando o interruptor onde têm de encaixá-la.

Quando percebi que todos os pombos do jogo estavam usando minicapacetes de soldado, lembrei de quando Quentin Tarantino foi acusado de ter feito Django Livre como um filme pirotécnico e cômico demais para tratar de um tema sério, a escravidão. Tarantino respondeu às críticas:

Não entendo cineastas que dizem “ah, esse assunto é sombrio demais para eu usar de minhas habilidades cinemáticas”. Ora, então por que diabos você está ali dirigindo? Claro que não dá para fazer disso uma regra que se aplique a tudo. Mas, não importa sobre o que Max Ophüls faça um filme, quero que ele use aquelas tomadas longas e grandiosas com a grua. Não importa que filme Josef von Sternberg fizer, quero que dê a maior atenção à direção de arte. Enfim, basicamente, deixar menos cinematográfico não é, para mim, o caminho a seguir.

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É possível que o louco mundo beckettiano de Valiant Hearts pudesse tê-lo conectado mais profundamente à grande tragédia da guerra por meio das habilidades dos desenvolvedores em criar o jogo — caso essas habilidades estivessem mais integradas do que estão. Mas, na forma em que se encontra, o jogo é uma porção de puzzles que atrapalham uma estética bem interessante.

O tom bizarro não é nenhum problema. Afinal, o surrealismo já foi usado com ótimos resultados ao contar histórias de guerra antes. Já ouviram falar em Gravity's Rainbow, de Tomas Pynchon, por exemplo?

Mas a sensação que dá é de que o botão de história e o mundo maluquinho do jogo foram cirurgicamente separados em algum estágio primitivo de desenvolvimento. Parece que faltou ao jogo como um todo o pulso firme de um diretor com uma visão unificadora. Parece mais uma obra de arte criada por uma talentosa comissão, mas, ainda assim, uma comissão.

Então, conforme eu trotava pela neve em direção a Saint-Mihiel sobre meus pés minúsculos, olhar escondido pelo chapéu, procurando mais uma alavanca quebrada para conectar a outra droga de interruptor, fui cada vez mais perdendo o interesse em Valiant Hearts e seu efeito mentalmente transgressor.

Porém, em meio aos seus sentimentos mais sombrios em relação ao jogo, há um ou outro momento místico, quando você encontra um dos artefatos reais colecionáveis — tal como esta mensagem a um soldado que talvez nunca tenha voltado para casa —, e é aí que você percebe que a um jogo com essas ambições, que esteja tentando ligá-lo emocionalmente a uma lembrança desse maldito erro mundial, deve-se perdoar muita coisa:

Telegrama da Nova Zelândia É um menino PONTO Bryan PONTO Mãe e Filho bem PONTO Saudade PONTO