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Música

A Miley Cyrus precisa de umas aulinhas de Estudos Afro-americanos

Merda, fiquei preso à We Can't Stop.

Porra, aconteceu mesmo. Parece que caí na ratoeira mental que é tentar analisar a Miley Cyrus e tentar perceber o que se passa no seu último videoclip,

We can´t stop

. Uma vez que o vídeo já saiu há séculos (falando em anos virtuais, claro está), queria ignorar tudo, tal e qual como se se tratasse de uma notícia antiga. Já vou tarde.

Pelo que percebo, não há como escapar à febre Miley Cyrus 2.0. Simplesmente não é possível ignorar a ex-vedeta de Hannah Montana e ignorar que ela se está a transformar numa Rihanna esbranquiçada, ganzada e ultra-sexual.

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O

We Can´t Stop

foi o vídeo da VEVO com mais visualizações em 24 horas de todos os tempos. Chegou a ultrapassar (imaginem!) o Justin Bieber — outra criança-prodígio prestes a revoltar-se contra a imagem de menino fofinho da mamã. A canção anda na boca de todos aqueles que gostariam de entrar num reality show da MTV mas que foram rejeitados. Em simultâneo, está a ser discutida por otários que não se cansam de explicar entre si o quanto gostariam de comer a Miley Cyrus. Isto é só compreensível, se tivermos em conta que a acabaram de ver seminua e de quatro. Mas nada de indignações. A miúda já é maior de idade! O novo trabalho da miudita que queria ter o melhor dos dois mundos está ser elogiado por todos os nerds de música que o encaram como um triunfo da música pop e do estilo Tin Pan Alley. Por outro lado, está a ser bastante criticado pela forma como os negros aparecem neste vídeo. Depois de o ver, dá para perceber que não passam de meros acessórios que contrastam com as leggins brancas da Miley. Já para não falar do facto de tudo isto parecer um exemplo flagrante de uma apropriação cultural, tal e qual como os Pat Boones e os Elvis do passado.

O que é que eu vejo em

We Can´t Stop

? Praticamente isto: é uma canção que fica no ouvido, a antiga Hannah Montana está estranhamente sensual e toda a produção é um exemplo maravilhoso do poder da indústria pop. Como negro que sou e como alguém que se preocupa com aquilo que o hip-hop e da cultura negra no mundo significam, sinto-me incomodado com a apropriação cultural que é feita. Depois de ouvir as suas declarações sobre como pretendia dar ao álbum um som negro, torna-se bastante óbvio que Miley tem uma visão deturpada do que é o afro-americano. Não é preciso relembrar que no vídeo há rabos a balançar e dentes de ouro. Mesmo que esta apropriação não seja algo de novo na cultura pop norte-americana, o caso da Miley parece ser diferente.

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No passado, os músicos brancos que tocavam jazz e rock 'n' roll ofuscavam completamente os músicos negros que copiavam e, claro, vendiam muito mais. Tudo isto, graças às barreiras institucionais e sociais que impediam os artistas negros de chegar a um público maior. Hoje já não enfrentam o mesmo nível de opressão quando criam arte. É provável que haja mais brancos do que negros num espectáculo da Rihanna ou do Juicy J. Será que me deveria chatear tanto com tudo isto? Quer dizer, basta olhar para o exemplo do Obama! O OBAMA!

Para descobrir como a apropriação cultural funciona hoje em dia, decidi falar com um tipo muito mais inteligente do que eu. O professor Akil Houston, do Departamento de Estudos Afro-americanos da Universidade de Ohio, há anos que tem vindo a estudar a intersecção entre a raça e a cultura pop. Como DJ e especialista em hip-hop, acaba por ser especialmente interessante conhecer a sua análise aos acontecimentos do mundo do rap. Ele sabe como ninguém como estes estilos musicais se relacionam com questões maiores como a política ou a raça. Enviei-lhe algumas perguntas, pelo Facebook, sobre a Miley e o vídeo. Aqui está o que ele tem a dizer.

VICE: Segundo o teu ponto de vista, a apropriação da cultura negra, tal como surge no vídeo da Miley Cyrus, parece-te cínica ou autêntica? Essa distinção tem realmente importância?

Akil Houston:

Não me parece ser nenhuma dessas opções. Isso acaba por dar continuidade à longa tradição que, segundo a Bell Hooks, pode ser compreendida através do termo

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eating the other

. Aquilo que se verifica é que dentro das culturas acomodadas, sem sal, a etnicidade é utilizada para dar algum tempero. Serve para animar o prato insosso que é a cultura mainstream branca. É muito importante haver essa distinção já que, segundo me parece, as imagens e as referências que são autênticas afirmam uma cultura em particular. Repara no exemplo dos Beastie Boys e do hip-hop. Eram autênticos e representavam a forma mais verdadeira da cultura do hip-hop, ao contrário do que o que se passa hoje em dia nos Estados Unidos.

Há ligações entre este vídeo e a tradição do espectáculo Minstrel, a sitcom Amos´n´Andy ou a música de Pat Boone? Como é que isto se enquadra num contexto histórico que visa a apropriação e o escárnio da cultura negra?

Claro que sim. Essas ligações existem. Por essa mesma razão é que digo que acaba por dar continuidade a uma longa tradição. Há quem argumente, tal como nos dias de Amos 'n' Andy e de Pat Boone, que estas imagens e apropriações acabam por alargar o público dessas produções culturais. Ainda assim, a ideia de raça assombra as imagens de ontem e de hoje. A partir daí, podemos perceber que existe uma sociedade que não consegue enfrentar o que é verdadeiro mas que tira prazer de um espectáculo focado numa parvoíce qualquer, mesmo que o tom rasco seja claramente assumido.

Repara nos negros deste vídeo. Parecem-te acessórios ou pessoas a sério? Acreditas que é importante fazer essa distinção? O que é que isso diz acerca das intenções da Miley?

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A Miley e os actores negros no vídeo são acessórios para prazer visual. É importante ter em conta que essas imagens funcionam dentro de uma esfera multinacional de controlo corporativo. No que à imagem diz respeito, não há autonomia nem para a actriz principal nem para os ditos acessórios.

Se alguém quiser adoptar a cultura negra expressa no Hip-Hop, como é que deve fazer? Como é que um artista branco pode ser igual ao Eminem e não ao Pat Boone? Qual é a diferença?

Não tenho a certeza se o Eminem é o modelo ideal. Acabou por ser aceite porque é talentoso e teve o Proof e o Dr. Dre por perto. Acabaram por lhe emprestar um nível de legitimidade, logo no início da sua carreira. O facto de ter crescido no seio da classe trabalhadora enquadra-se, de certa forma, nas noções de autenticidade do Hip-Hop. A Invincible acaba, também, por ser um bom modelo. Reconheceu o privilégio de ser branca, mantém ligações com o verdadeiro ideal do Hip-Hop e, acima de tudo, é uma grande letrista.

Apesar de ser difícil dizer isto, uma vez que as culturas do rap e do hip-hop estão distantes dos temas sociais e políticos mais relevantes, continua a existir uma diferença. O

Blacking Up: Hip-Hop´s Remix of Race and Identity

, é um óptimo documentário do Robert Clift que mostra de forma detalhada a diferença entre apreciar a obra ou tirar gozo da mesma.

Em tempos, os artistas brancos roubaram-nos a arte e isso acabou por esconder o trabalho artístico dos negros. Nos dias de hoje, isso parece impossível se pensarmos em celebridades como a Rihanna, para quem esta música tinha sido escrita originalmente. Nota-se que ela é uma influência clara para a Miley. O que aconteceu no início do Rock e do Jazz pode estar a acontecer hoje? Isto é, os grandes artistas negros continuam a ser ultrapassados por imitadores brancos menos talentosos?

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Isso nunca acabou. Apesar de os artistas de cor terem mais visibilidade hoje, o mesmo tipo de dinâmica continua a acontecer. O público, em geral, não faz ideia dos artistas negros que eram punks, country, alternativos ou de outro qualquer rótulo que as editoras usam para identificar artistas. Estes negros, normalmente, aparecem como uns outsiders.

O que é que a interpretação de Miley Cyrus nos diz acerca da percepção que tem sobre os negros e a sua cultura?

Acho que podia assistir a umas aulas de Estudos Afro-americanos.

Mesmo que tenham esquecido a interpretação da Hannah Montana, será correcto culpar os artistas que trabalham no hip-hop, como Gucci Mane e Three Six Mafia, por ajudarem a moldar os estereótipos que a Miley apresenta neste vídeo?

Absolutamente. No entanto, as nossas críticas precisam de ser contextualizadas. Quem ajudou estes artistas, só pelo facto das suas músicas estarem em alta rotação? Quais as gravadoras e as corporações que estão a sustentar estas imagens e as mensagens que lhes estão subjacentes? Os artistas como Wise Intelligent, Public Enemy, One Be Lo e Bahamadia, entre outros; têm apresentado imagens e mensagens relevantes que não são homofóbicas, sexistas ou problemáticas, há anos. Não usufruem, no entanto, do mesmo tempo de exposição que é concedido aos grupos que mencionaste. Não basta criticar o artista, apesar de o devermos fazer. As críticas devem alargar-se às corporações que tornam tudo isto possível.

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O facto da Miley ter trabalhado com um produtor negro – respeitado e de sucesso – aumenta a sua legitimidade? De que forma o envolvimento de outros negros valida a credibilidade destes conteúdos?

Claro, se há negros a participar, o nível de credibilidade aumenta. O seguinte argumento – “a música não é problemática porque os negros ajudaram a fazê-la” – é falso. Isso dá, no entanto, uma certa autenticidade àqueles que sentem prazer neste tipo de música e não querem sentir desconforto com isso.

Já que o rap é uma das culturas comercialmente mais viáveis, podemos esperar muito mais da Miley para além deste vídeo? Em tudo isto, quão importante é o dinheiro e quão importante é a raça? Estas duas coisas são indissociáveis?

Não é possível separar a raça, a classe e o género. A noção do R&B, por exemplo, foi construída em torno da raça. Todos os artistas precisam de negociar as suas exigências comerciais, até a Madonna. Repara na sua trajectória e vê o quanto ela se reinventou. Se a Miley planeia ter a longevidade da Madonna, preparemo-nos para ver muitas reviravoltas na sua carreira.

O vídeo da Miley traz benefícios à relação entre as raças?

Só o tempo dirá.

Está tudo dito. Obrigado, professor.