Conversamos e choramos com Guilherme Arantes

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Conversamos e choramos com Guilherme Arantes

Sentamos com o mestre para dixavar o seu álbum de estreia, de 1976, e, qualquer papo com ele é aula de história e garantia de fortes emoções pra quem realmente curte música brasileira.

No Disquecidos, Peu Araújo relembra os OUTROS álbuns clássicos da música brasileira. Nesta edição, o cantor e compositor paulistano Guilherme Arantes, hoje com 63 anos, abre o coração e a memória e fala longamente sobre o seu outonal disco de estreia solo.

Guilherme Arantes se hospeda há pelo menos 10 anos no Hotel Marabá, no número 757 da Avenida Ipiranga. Os funcionários já o conhecem. É Seu Guilherme pra lá e pra cá. O hotelão é sua casa em São Paulo e é lá que ele nos recebe de bermuda, camiseta e meia. Com o teclado equilibrado entre duas poltronas, ele passou a noite estudando um software inglês que reproduz o som de cravo. Ele se senta em frente ao instrumento e toca trechos de peças barrocas num show particular.

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Paulistano da Bela Vista, o cantor trocou o trânsito da capital paulista pelo barulho do mar no litoral norte da Bahia. Perto de Arembepe ele montou o Coaxo do Sapo, seu estúdio, sua pousada e sua produtora.

O cantor está divulgando um box com 21 discos para representar os seus 40 anos de carreira solo. E, numa brecha entre a gravação do Altas Horas e o almoço com sua mãe, falamos por um par de horas com ele sobre o seu primeiro álbum, de 1976, aquele que tem "Meu Mundo e Nada Mais" e mais um monte de clássicos que passaram batido por boa parte da população e dos fãs que se acostumaram com "Planeta Água" e "Cheia de Charme". Aquele da capa maravilhoso com letreiro rosa, piano de calda no meio da rua e ele com um ar judeu-universitário-de Nova York (eu ouvi "Billy Joel"?).

Ele fala sobre quando percebeu que ia fazer sucesso, sobre letras que narravam pensamentos suicidas, sobre a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, beleza melancólica, novela, família, bullying, tretas familiares e mais uma pá de coisas.

Para emendar na leitura dá o play e ouça o disco:

Como foi o papo com a gravadora para o seu primeiro disco?
Quando eu entrei na Som Livre, o primeiro passo foi que eu parecia com o Elton John e ele tinha feito Goodbye Yellow Brick Road e estava estourado. Era o number one, seria a Adele de hoje com 30 milhões de discos, glam pop star. Super exuberante, lisérgico e andrógino. Lisérgico e andrógino eram as duas palavras chaves dos anos 70. Eu usava óculos, chego lá tocando piano, baladas com aquele acento. Eu sabia que iam achar parecido, tanto que eu levei "Meu Mundo e Nada Mais", que era a música que falava "me atirei no mundo", "vi tudo mudar" e tal. Quando nos fomos fazer a capa, notei que havia uma certa criação da gravadora a partir de um logo com o meu nome em cor de rosa. Por que cor de rosa?

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Por causa do lance do Elton John
É! É muito interessante falar dessas sutilezas. Não era à toa, a Som Livre também tinha tendência a gostar de androginias. Era tudo andrógino, Edy Star, que eles tinham lançado e é do caralho. E os próprios Secos & Molhados que lançaram a androginia na poesia e na música, e foi um estouro.

Como foi a produção para essa capa?
Eles vieram com umas roupas brilhantes, com lantejoulas, óculos de borboletas. Eu olhei aquilo e falei: "Ih, eu não me vejo assim. Eu me vejo assim", e mostrei a capa do Simon & Garfunkel, que era aquela estética judaico-universitária-novaiorquina bem coloquial com jaqueta e cara de universitário, que era o que eu era. Aí eu falei. "Podemos fazer nessa linha?" Como eu apresentei um outro hit, os caras aceitaram.

Foto: Anna Mascarenhas

E como surgiu a ideia de fazer a capa naquela rua?
O João Bosco tinha feito um disco em que ele aparecia numa rua deserta do Centro do Rio (é a contracapa de Galo de Briga , também de 1976) . Aí eu falei. "Pô, vamo no Centro do Rio no sábado que não tem ninguém. Ali na Rua da Alfândega e tal?" Achamos essa Rua Buenos Aires. Foi contratado um piano e fizemos. Deu uma série de coincidências, por exemplo, eu estar em cima da boca de lobo. Parece que foi tudo programado, mas foi sem querer. Eu fico com essa cara de FAU-USP, universitário. Isso foi importante para eu me desvencilhar dessa coisa glam pop star. Não que eu tivesse preconceito com isso, mas eu não era aquilo. No final o logo ficou, porque eles já tinham feito. Eles acharam muito rabugenta a capa, muito ensimesmado. Aí eu falei. "Bom, ou é assim ou é assim" e assim ficou.

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Mas mais pra frente na sua carreira você entrou um pouco mais nessa androginia, né?
Sim, esse bordejar com a androginia foi sempre muito importante pra mim. Quando chega nos anos 80 que eu pego fascínio pelo B52's, Human League, Smiths. Isso era lancinante, um manifesto que eu me identificava de pronto.

Por que você foi fazer a faculdade de arquitetura?
Ah, porque é lindo e o povo era legal.

Foto: Anna Mascarenhas

Como era o clima da FAU naquela época?
Nós tínhamos um professor, o Flávio Império, era um cenógrafo que fez espetáculos da Maria Bethânia, um cara doidão. Na primeira aula era fumar maconha. Nós fomos pra floresta da Biologia e ele falou que a gente precisava abrir as portas da percepção. Então nós ouvimos um Pink Floyd e dá-lhe baseado pra todo mundo. Então começa bem a FAU, neste aspecto de discussão das coisas. As aula das de História da Arte eram excelentes. Já tinha a galera do Porsche, mas eu era da galera de ir pro Brás, pra zona ferroviária, ABC, era uma estética operária. E assim nasceu o Moto Perpétuo, nessa coisa híbrida. É um progressivo operário.

Que definição foda.
Pois é, o progressivo era aristocrático. Rick Wakeman, Keith Emerson, o Yes, as bandas eram de classe média bem alta, bem aculturada. O Moto Perpétuo tem esse dualismo. Era uma banda nada andrógina numa era em que a androginia era fundamental. Essas lacunas fazem o Moto Perpétuo único, mas com muita dificuldade no mercado.

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Esse disco de 1974 já tem algumas coisas que você traz em seu primeiro disco solo, mas ele tem uma coisa mais psicodélica, progressiva. O que te fez sair dessa vibe e ir para a carreira solo?
Iacanga. Foi um trauma no Festival de Águas Claras. Nós fomos e chegando lá era só "go Johnny, go go go". Todas as bandas tocando aquela coisa chata e todo mundo headbanger, o cheiro do banheiro de Iacanga denunciava uma coisa sanitária do rock brasileiro, que era rudimentar. O sanitário era uma vala, uma fossa cheia de tábuas que se cagava agachando ali. As bostas iam se juntando e aquele cheiro no terceiro, quarto dia já dava para sentir a 10 Km de distância. A gente foi se hospedar na cidade de Iacanga, num hotelzinho. Foi aí que eu percebi que a gente não era desse movimento, nós éramos, neste aspecto, aristocráticos. A gente ficou num hotel, eu me apresentei de terno de casemira, gravata borboleta e colete. Eu parecia um garçom, um croupier de cassino e o pessoal gritava. "FORA!!!!" Aí eu pensei. "Eu tô no caminho certo, nós somos diferentes pra caralho". Isso me fez ver aquela coisa hippie do bicho-grilo, estradeiro. Já tinham cruzes, signos góticos. Eu saquei que não era aquilo. A banda queria perseverar no progressivo e eu me olhava no espelho e pensava no Roberto Carlos que tem em mim.

Foto: Anna Mascarenhas

Você era fã dele?
Sim, várias vezes eu fui ao Teatro Paramount ver a Elis com o Fino da Bossa, o 2 na Bossa. Esse lado televisivo, no fundo, era o que eu queria. Eu comecei a querer levar a banda ao programa do Airton Rodrigues e Lolita Rodrigues, que era o Almoço com as Estrelas. Metade da banda da banda se recusou a ir. Começou a ter uma cisão na banda, porque eu tava pensando em pegar a novela, ir pra Globo, invadir o espaço do mainstream mesmo, mas para isso tínhamos que popar. A banda não queria de jeito nenhum, queria continuar na raiz do progressivo, mas nós fazíamos um progressivo meio mineiro, muito do Som Imaginário, Clube da Esquina nos compassos ternários, eu tinha influência muito forte disso aí. Eu sou meio filho bastardo, primo distante do Clube da Esquina, que era o que eu mais gostava.

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Você saiu da banda nessa época?
Sim, eu fiquei cansado daquilo. Eu fui procurar o meu caminho, mas fiquei muito mal, fiquei a beira do suicídio, tanto que tem uma música aqui que se chama "Pégaso Azul", que fala "então voa", voa era eu querendo pular. Essa música marca a minha decisão de sair da casa do meu pai e não fazer o voo literal do suicídio, mas sim o voo literário da minha vida, o de eu me aventurar. Foda-se tudo, foda-se o meu pai, foda-se o pessoal da FAU, eu vou procurar as gravadoras para ser um cantor de auditório. Eu queria fazer crossover social. Eu queria apaixonar as meninas da periferia, ser um pop star no sentido da Jovem Guarda. Era tão bonito ver aquilo acontecer.

Como você foi atrás das gravadoras?
Eu fiz uma fita de rolo na Pauta, que era um estudiozinho de um canal, fizemos várias cópias e eu levei na PolyGram, do Midani, na RCA, RGE, na Continental e por fim, achando que não tinha chance nenhuma, fui lá na Som Livre, porque a Rita Lee tinha estourado com o Fruto Proibido.

Qual era a gravadora que você queria quando pensou o disco?
Era a PolyGram, do Midani, porque ele era um guru que todo mundo queria estar perto. Logo na primeira fase da Som Livre, quando eles montam a Warner com Belchior, Gil, Pepeu, Baby, A Cor do Som, Carlos Dafé, Marku Ribas, o Marku e o Dafé eram amigões que estavam na mesma batalha que eu. Dentro do casting era um pessoal mais pé no chão, mais humilde. A Cor do Som já eram uns meninos muito Zona Sul protegidos, porque o irmão deles, o Guti, era diretor lá. Eu era um livre atirador. Eu entro na Warner para me aproximar dessa turma do Midani, ele era um amigão. Ele gastou muito tempo comigo, me levou pra almoçar, pra ouvir disco. Aprendi muito com essa convivência. Eu andava muito com o Belchior.

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E quando foi a última vez que você viu ele?
Acho que foi num show que a gente dividiu, acho que foi na Concha Acústica, em Salvador. Eu acho o auto-exílio uma coisa muito forte, tem a cara do Belchior, é uma coisa que tava latente nele. Ele é um esquisitão, peculiar pra caramba, uma mente privilegiada, uma pessoa muito culta, muito inteligente, ele era um mestre já nessa época.

A gente entrevistou para o Disquecidos o A Cor do Som também .
Eu fiquei muito amigo deles, porque ali se fumava também. Era muito gostoso acompanhar as gravações do primeiro disco deles, que foi ali no estúdio Havaí. Eu emprestava o meu Moog para o Mu tocar no Equipe Vestibulares, aqui em São Paulo.

Foto: Anna Mascarenhas

Você cresceu em que bairro aqui em São Paulo?
Eu cresci na Bela Vista, no Bixiga, Morro dos Ingleses, ali era o meu território.

Como você olha para esse disco hoje?
Eu acho um disco lindo. Alguns andamentos foram muito acelerados, isso por força do Otavinho (Otavio Augusto, produtor do álbum) não fumar baseado. Se ele tivesse na vibe da gente os ritmos teriam saído mais relaxados, então "Pégaso Azul", "Não Fique Estática", "Lamento Lhe Encontrar Triste" estão um pouco corridas para uma vibe que podia ter sido mais easy, apesar disso, acho as orquestrações muito boas, tem participações de Copinha, Altamiro Carrilho, o que é uma honra pra mim. O Goldherança participou, que eram o Trio Esperança com os Golden Boys cantando pra mim, pô. Quando eu me lembrei disso, eu chorei.

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Em qual música?
"Não Fique Estática". É lindo. Você precisava ter visto eles fazendo o vocal. Imagina se tivesse vídeo?

Eu tinha sofrido muito bullying na minha adolescência, porque eu era o mais novinho da classe. Eu apanhava, tive que virar o cão na escola para não me comerem.

As dez músicas deste álbum são suas e sem parcerias. Como foi o processo para esse álbum? Como foi o papo com a gravadora?
Foi extremamente fácil, porque eles queriam o Elton John e o que ele é? Toca o seu piano, faz os seus arranjos, toca as suas canções, já tem o seu parceiro, que era o Bernie Talpin. Eu acho que não precisei de um Bernie, porque ele também estava em mim. Isso facilitou muito, porque eu já tinha um bom espelho, uma boa referência. Era como o Kleiton & Kledir que eram uma espécie de Simon & Garfunkel brasileiro.

Qual foi o tempo de produção? Da hora que você entrou em estúdio até chegar às lojas?
As primeiras músicas foram "Meu Mundo e Nada Mais" e "Pégaso Azul", que foram um compacto e saíram em março. A gente gravou em janeiro ou fevereiro, no estúdio da Gazeta. Gravou num dia, mixou e fiquei aguardando. A música tinha entrado na novela Anjo Mau , que começaria depois do Carnaval e esperaram o resultado. Como a música estourou, quando chegou em junho eles me chamaram para completar o repertório. Como não estava completo, eu fiz "Descer a Serra" e "Cuide-se Bem", porque eles queriam uma balada Eltonjohnica.

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Depois que estourou " Meu Mundo e Nada Mais " você ficou numa situação mais confortável, né?
Total. É engraçado que eu tava trabalhando como estagiário de arquitetura na Prefeitura de São Paulo, na Secretaria de Bem Estar Social, eu fazia manutenção das creches da periferia, então eu ia arrumar caixa d'água, trocar boia, consertar entupimento de cano. Eu me lembro de uma vez em que eu estava arrumando a caixa d'água da creche de São Miguel Paulista, era uma região bem mais pobre do que é hoje. Eu tava no teto da creche prestando serviço e tocou "Meu Mundo e Nada Mais" na Rádio Excelsior. Eu escutei num rádio distante naquela periferia e essa cena me marcou muito. Eu não contei isso em lugar nenhum. Ali eu vi que ia estourar mesmo.

Foto: Anna Mascarenhas

Tocou muito na novela?
Eu ia na casa da minha avó, ela estava velhinha morando no Lar Santana, era um lar de idosos. Ela ficava num apartamento sozinha. Eu tinha um amor pela minha avó e eu ia todo dia tomar sopa lá com os velhinhos. A gente assistia a novela para ver se tocava a música. Um dia nada, uma semana nada, duas semanas nada, o primeiro mês nada. Eu pensei. "Ih, caralho. Eu não vou ter chance nenhuma". A música só foi tocar dois meses depois, no final de março. Tocou 550 vezes. Eu contava.

Dois meses esperando? Os velhinhos do asilo já deviam achar que você tava mentindo.
Sim, eles já estavam achando que era mentira. Aí começou a tocar a música. Eles precisavam estabelecer o roteiro que era o da traição. Eles queriam que a letra fosse "quando fui traído", mas eu achava uma palavra feia, então botei ferido que foi um puta acerto, porque ele pegava também o bullying. Eu tinha sofrido muito bullying na minha adolescência, porque eu era o mais novinho da classe. Eu apanhava, tive que virar o cão na escola para não me comerem.

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Como assim?
Sim, imagina que na escola já tinham comido três na sala, tinha uma turma de abusadores do (Presidente) Roosevelt, ali na Liberdade. Eu tinha 12 anos e estava misturado com cara de 18 que vivia ali na baixada do Glicério, a gente corria risco na escola. Tinham espancamentos, era uma coisa pesada. Era uma sala só masculina, 47 moleques na testosterona. Eu apanhei muito, tive que virar o cão. Depois de um tempo comecei a não ir mais, fui pra Praça João Mendes jogar bilhar, virei totalmente malandro, não estudava porra nenhuma e ficava só ouvindo Beatles, Led Zeppelin, essas coisas. "Quando eu fui ferido" se refere a esse sofrimento que é essa referência dessa adolescência problemática.

Foto: Anna Mascarenhas

Algum material do seu primeiro disco veio da época do Moto Perpétuo?
Desse disco nada. As músicas ou eram bem anteriores ou foram feitas na época. Eu tenho uma fita K7 que eu gravava num gravadorzinho National, antiga Panasonic. Eu botava do lado do piano e gravava as coisas que eu fazia. Tinha muita coisa barroca, pré-progressivo. Essa fita existe, eu fiz a redigitalização dela e a gente tá soltando no documentário. São 14 fitas daquele período pré-tudo. Eu fui redescobrir com essa fita que eu era muito foda, lá atrás eu tinha um leque de possibilidades enorme. Eu poderia ter feito Música na USP, mas meu pai não deixou. Isso me deixou uma angústia tão grande, porque eu poderia ter me tornado um Wisnik ou um Arrigo, uma coisa diferente.

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Como foi a escolha dos músicos?
Aí foram eles (gravadora) que me apresentaram. Eram Os Famks, o antigo Roupa Nova. Eles se emocionaram muito comigo. Eu era um modelo, porque eu trazia uma solução para a balada internacional em português. Era uma solução plausível e eles acharam que eu era precursor de alguma coisa. A gente foi para o Estúdio Level, que era na Rua Assunção, lá em Botafogo. Eles tinham aquelas mesas analógiconas.

Era um bom estúdio?
Era um bom estúdio, mas o piano que eu gravei o primeiro compacto era melhor. Era um Steinway ou Yamaha de cauda com um som estilingado, bem aberto, franco. Lá na Som Livre o piano já não era tão bom, era de calda, mas o som não era tão bom. Se você reparar em "Meu Mundo e Nada Mais" o som é mais forte. Eu fiquei uma semana gravando as bases e botando as orquestras.

Qual a importância do Otávio Augusto no álbum?
Ele só ajudou, bicho. Foi foda. Foi muito bonito. Eu sentia um respeito e uma admiração legítima, genuína de quem tá não só proporcionando algo, mas que tá presenciando o surgimento de uma coisa que eles acreditavam de fato, profundamente. A gente ia ouvindo o resultado naquelas caixas monumentais, alto pra caralho. Era poderoso. Eu acompanhei a mixagem também, minhas ideias eram levadas em conta.

Foto: Anna Mascarenhas

O que você ouviu para chegar a esse resultado? Quais eram suas referências da época?
Simon & Garfunkel e Cat Stevens são os primeiros. Tinha o Keith Emerson, Yes, Genesis. Eu gostava muito do Aphrodite's Child. Do Brasil era o Taiguara a grande referência, o grande mito pra mim.

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Eu acredito que qualquer músico brasileiro que faça indie, indie rock, pop rock precisa devorar seu primeiro disco. Tava tudo lá, as frases de guitarra, refrão com assobio, os compassos. Tem muita linguagem que a gente ouve na música feita hoje que já está neste álbum. Como você chegou neste contexto de som? Letras, composições.
É porque quando eu era mais novo eu era meio Renato Russo, muito ensimesmado, muito retraído. Lendo Kafka, lendo Despertar dos Mágicos (de Louis Pauwels e Jacques Bergier), lendo Edgard Allan Poe, lendo muito Marcel Proust e tudo do Hermann Hesse. Muitas coisas que eu lia mais tarde surgiriam em músicas. No som mesmo, o artista mais importante foi o Captain Beyond, era uma banda muito foda, muito lindo aquele disco deles que tem "Thousand Days of Yesterdays". Bateria monumental, as guitarras perfeitas, cantor perfeito, as letras, as levadas. É muito louco. Fodaço. Eu acho que é um dos melhores discos do rock de todos os tempos. Isso tudo desembocou, de alguma maneira e em algum lugar, no meu som.

E as letras?
Eu vivia sempre com um caderno e eu tenho esses cadernos guardados e também digitalizei. Estou colocando no site que vai ter uma memorabília do Guilherme com as demos, as letras. Eu fazendo o meu mundo.

Foto: Anna Mascarenhas

Teve um período ali que você começou a escrever pra Elis, MPB4, Bethânia. Nessa fase você ficou com medo de virar mais um compositor do que um cantor
Originalmente não era para eu ser cantor. Eu não era cantor, eu não cantava em banda de baile, nunca fui. Eu não era o cantor da banda. Eu era o pianista, tocava as músicas, já compunha e eu queria ser o compositor. Quando montamos o Moto Perpétuo, montamos uma banda sem saber quem seria o cantor, essa é a verdade. Eu achava que o Cláudio podia cantar também, que o Diógenes cantava também. Eu acabei virando o vocalista principal. Quando eu sai da banda, aí foi para virar cantor mesmo.

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Mas sua voz virou uma coisa inconfundível.
Eu cantava agudo desde muito cedo por força, não só dos Beatles, mas de toda uma leva de cantores da época.

Hoje para cantar essas músicas você tem que fazer alguma alteração no tom?
Nada, nada. Eu gravei as músicas em tom original que é pra puxar e mostrar. É uma benção, uma sorte, porque eu não faço nada.

Eu noto uma beleza melancólica no seu som. Você citou Clube da Esquina e lá eu também reconheço um sentimento parecido, o Taiguara tem isso.
Essa melancolia que você tá falando é a coisa mais importante para um artista. Essa melancolia é a mesma que você vai encontrar no Renato Russo, no Cazuza, na Amy Winehouse, no Simon & Garfunkel. Tem uma música deles que se chama "The Only Living Boy in New York" que até hoje me emociona. Aquilo ali era exatamente o que eu queria estar fazendo. Esse clima outonal, de meios tons, é o que me atraiu sempre na música.

Vamos falar de todas as faixas do disco, beleza? Qual é a pira de "A Cidade e a Neblina"?
Ela fala de andar por São Paulo, que tinha muito mais neblina do que hoje. Era a Terra da Garoa.

Os casarões que você cita na letra são os da Avenida Paulista?
Isso, os da Paulista. Eu pegava a linha do bonde e desde menino sempre com um caderninho e um mini lápis no bolso. Essa práxis do escrever é como o rabisco do artista plástico. Até hoje eu cultivo isso.

Qual foi a ideia para "Águas Passadas"?
"O céu está tão nublado, há tempos que não fica assim. Só me recordo de águas passadas, montes de gente e nada de mim". Eu mesmo me emociono, porque eu acho essa música tão bonita. Ela só era para ser maior. Era para ela ter um segundo verso, uma outra parte, mas ela ficou minimal dentro da beleza dela. Essa é uma música que traduz na voz quem eu era. Eu mesmo reconheço em mim que sou esse cara. Essa foto da contracapa sou eu. Eu na FAU, em qualquer lugar. Um cara muito problemático, e eu me considero privilegiado de ser problemático. Isso é fundamental. A música atual, que é muito utilitária da alegria, da celebração da balada, da pegação, da azaração, ela propõe a fuga a qualquer preço do questionamento existencial e eu acho que esse é o grande problema dessa música. Não há problema nenhum em fazer o pagode, o axé, o sertanejo, mas eu acho a sofrência do arrocha legítima pra caralho.

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A gente chega em "Lamento lhe Encontrar Triste". Pra quem foi essa letra?
Isso aí foi para um grupo de pessoas da minha geração. Do negativismo político, porque eram anos da chegada dos cadernos Cadernos do Cárcere, do (Antonio) Gramsci. Era a chegada do gramschismo na universidade, que era uma nova metodologia que não ia pelas armas, mas pela cultura, pela educação. É linda a ideia, é magistral, mas as pessoas ficaram muito sombrias. A minha geração ficou muito marcada pela Ditadura.

Você vem com um disco num período muito conturbado e diz. "Olha, eu tô feliz, não vou negar que estou feliz".
Essa é a tônica dessa música mesmo e é o libelo do disco. Pra eu dizer que tem uma coisa ensolarada que eu tô vendo pra minha vida, para nós todos. Há uma coisa ensolarada. Mas aí tem também o fato de eu estar saindo pela Globo, que é um signo muito marcado de se compor com o governo militar. Na faculdade nós tínhamos todo aquele discurso do Pasquim, todo aquele negativismo. A minha angústia não era uma angústia gregária. Ela era existencial, era uma coisa minha mesmo. Se eu trago isso para o disco não é a angústia de uma geração, não é. É a angústia do Guilherme, o Guilherme era assim Era um rapaz triste, ensimesmado, mas querendo ser feliz, porque há muita coisa pela frente. Essa música é um manifesto de eu ter achado o meu caminho e que eu sabia que ia dar tudo certo.

O que é "tirar um dia de Sorocabana", que é o trecho da canção "Descer a Serra"?
Isso aí veio do trem que descia para a Praia Grande. Eu peguei ele muitas vezes na minha vida. Essa música remonta aos anos de 1966. O tema vem daí, porque eu conheci Paranapiacaba com uma professora de Biologia, a Hermelinda. Ela era do caralho, muito jovem. Era uma matéria que ela nos fez apaixonados pela biologia. Ela levava a gente para lá para fazermos pesquisa com cogumelos, líquens, samambaias, fertilização de pólen, ovários. Eu gostei tanto que depois eu até fui para o Instituto Oceanográfico da USP, ela era docente na cadeira de Biologia Marinha. Fiquei dois meses lá no centro de pesquisas com ouriço-do-mar, me especializei nisso.

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Acaba sendo uma música nostálgica que também me remete ao Clube da Esquina.
É, lembra. E tem elementos que nem "fui descer a serra de convescote, de beija-flor, de roupa velha , vento e vapor", isso aí é puro Clube da Esquina. Essa ligação com o trem é mineira pra caralho.

"Na Boca do Sol", do Arthur Verocai , é outra canção que tem essa referência ao trem.
O trem é a referência da nossa mocidade. Ele representa o sonho, a viagem pelo mundo. É uma linda figura.

"Meu Mundo e Nada Mais" virou um hino e talvez seja a melhor representação dessa melancolia. De onde ela surgiu?
A música eu comecei a fazer no final de 1968. Isso aí está numa daquelas fitas. Ela se chamava "Tem Nexo?" e eu falava "à meia-noite, à meia-luz sonhando. Daria tudo por meu mundo escuro e só". Era assim, depois que eu mudei para "meu mundo e nada mais". A letra começava com "Me atirei no mundo e vi tudo mudar", porque na minha adolescência eu sofria muito bullying em casa com o meu pai. Na escola era ruim e em casa também, eu apanhava pra caramba, brigas e ele não queria que eu me envolvesse com a música, o que era controverso, porque ele me pôs na música, tocava violão, me fez tirar as coisas de ouvido. Eu criei aquele amor e virou um monstro que ele queria decepar, porque a música era uma tragédia e eu não ia conseguir me manter. Eu sonhava em fugir de casa e viver como mendigo, talvez numa praia. Eu vivia fazendo planos para cair no mundo e sumir, desaparecer. Ser aquele jovem que ninguém consegue mais achar. Eu vivia trancado no meu quarto para não sofrer. Lógico que batendo várias punhetas por dia, era um vício que depois eu consegui me livrar. A descoberta da sexualidade foi engraçada, mas foi harmônica.

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Qual foi a droga que incentivou "Nave Errante"?
A maconha entrou na minha vida quando eu estava prestando o vestibular. Na molecagem, a gente cheirava cloreto de metila, que era uma coisa que se usava para bicho-do-pé, era tipo éter. Os lança-perfumes eu peguei ainda criança e com 11, 12 anos já tinha. Eu tinha uma certa culpa de experimentar essas coisas, especialmente o fumo, porque tinha um estigma. Eu fumei maconha pela primeira vez e escutei com atenção um disco que era referência há anos para mim, a trilha do Easy Rider , com "The Pusher" , que tinha "Born to be Wild", tinha Jimi Hendrix com "If 6 was 9". Foi aí que eu escutei o solo do "The Pusher", que é foda. É um dos solos mais belos de toda a história. Foi nessa fase que eu comecei a fazer "Nave Errante".

Pra quem é a letra de "Cuide-se Bem"?
Ah, essa é para a Márcia, minha mulher. Na época a gente tava namorando, ela colega da FAU. A gente se casou e tivemos a Marietta, que é a minha filha mais velha. Ela ia viajar para Nova York para fazer um curso de urbanismo na New York City University. Ela ia ficar seis meses lá e eu ajudei a pagar a passagem para ela ir. Quando ela viajou eu dei um relógio de noivado pra ela, simplezinho e simbólico para ela não se esquecer de mim. Quando ela viajou eu fiquei muito amargurado e preocupado dela conhecer alguém. Na verdade é uma música de ciúme, mas um ciúme bonitinho, no meu canto. Eu nunca fui ciumento, mas era uma preocupação. Ela ia estar no meio estudantil, um negócio ali no Village. Quando ela voltou foi um alívio.

E aquele solo do meio? De quem foi a ideia?
Aquilo tudo é coisa do Otavinho. Essa dinâmica é dele. Eu lembro que o Otavinho passou o solo pro cara, nota por nota.

"Pégaso Azul" a gente já acabou falando. "Antes da Chuva Chegar" é a música que me faz pensar mais na capa do disco.
Ela tinha outra letra. "Boca aberta que o vento traz coisas de longe de casa liberando a voz". Era uma coisa mais intelectual, um lance mais Tristan Tzara, eu estava lendo também Ulisses, do James Joyce. Todos os seres humanos têm o Ulisses dentro de si. Esse é o nosso dia a dia na verdade. O fluxo do pensamento ocorre daquela maneira. Ela tem aquele clima do Jorge Mautner, das chuvas, aquela coisa brumosa. A letra é da época que eu namorava a Márcia e andava pelas ruas da Vila Mariana. Aquela rua, a Inácio Uchôa, é a rua "pela rua deserta e forrada". (Guilherme se emociona e sob lágrimas recita a letra). Nós fomos lá filmar e ela ainda tá com "as folhas caídas que voam ao léu corre o meu pensamento no rastro das nuvens pesadas que habitam o céu. Vejo a casa na qual me criei, vejo a escola, o jardim, vejo a cara de cada um dos meus companheiros". Essa música era a preferida do Beto Guedes, do Lô Borges, dos meninos lá de Minas. É um delírio poético feito na rua perto da caixa d'água.

A gente termina com "Não Fique Estática". Quem estava estática?
Acho que era a Márcia, devia ser ela.

Ela fecha botando o disco lá pra cima. Ela tem o andamento bem acelerado.
Ela tentava ser Beatles. Aquele andamento que eu acho que é um derivado do foxtrot, que é uma coisa francesa. É altamente lisérgico esse ritmo. Só acho que a gente puxou muito pra frente, podia ser mais lenta.

Você opinou na ordem das músicas?
Não, isso aí foi o Otavinho. Ele mesmo fez isso aí. Hoje, 40 anos depois, esse disco me emociona e eu praticamente dedico a ele toda a minha história.

Você tem músicas dessa época que não foram lançadas?
Tem muita música ainda desse acervo. Eu tenho letras muito confusas dessa época e hoje elas me parecem mágicas. Tem umas 25 canções que não foram lançadas, coisas como "Terraço da Vista Cortada", "Na Megalópolis", coisas delirantes que são viagens totalmente lisérgicas em letra e música que eu não consegui desovar jamais. Talvez esse seja o meu futuro. Já pensou eu restaurar em mim aquele Guilherme wagneriano? Aí eu vou me descolar totalmente do pop e me tornar um mistério. Acho isso mais bonito do que ficar cultivando um mito. Esse marco dos 40 anos de carreira põe um ponto final. Agora talvez o meu sonho de menino se realize.

Adquira tudo o que puder comprar do Guilherme Arantes, inclusive a mastodôntica e obrigatória caixa de 40 anos de carreira .

Foto: Anna Mascarenhas

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