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Revista de 2013 - A melhor fruta da época

O João Malheiro escreveu o livro com o melhor título de sempre

Chama-se "Cona d'Aço" e em breve estará nos programas de Português A.

João Malheiro, ex-jornalista, ex-dirigente do Benfica, comentador desportivo e social, enveredou pela ficção com a história de uma prostituta que fazia as delícias dos estudantes universitários da década de 70. Como não gosta de hipocrisias, achou por bem chamar

à sua primeira obra de ficção. O livro ainda não está à venda, mas, para mim, nem foi preciso ler uma linha: com um título destes, quem é que não quer falar com o Malheiro? VICE: Cona d’Aço. Porquê, João Malheiro?
João Malheiro: Quando parti para a escrita deste romance já tinha o título definido. Desde miúdo que ouvi em tertúlias intelectuais — com o meu pai e com o meu tio  gente que se licenciou em Coimbra nos finais dos anos 40 e princípios dos anos 50 — a existência por lá de uma prostituta responsável pela iniciação sexual de centenas ou milhares de jovens. Não sei se a casa ainda existe, mas lembro-me de que era a prostituta mais popular de Coimbra e muito marcante no universo académico. Achava muita graça, porque nunca ouvi o meu pai dizer uma obscenidade, mas quando se falava em cona d’aço ele dizia explicitamente “cona d’aço”. Eu era muito garoto, talvez tivesse 10, 11, 12 anos, não sei. Ficou fascinado?
Sempre fiquei fascinado com a figura da cona de aço. Achei muita graça porque é o nome indicado para uma prostituta — melhor é impossível. Obviamente que este é um título ousado, numa sociedade marcada por valores de grande hipocrisia, muita cretinice, muita mentira. Toda a gente sabe o que quer dizer cona e o que significa cona d’aço enquanto prostituta. Sabia que iria correr socialmente alguns riscos e ter comentários menos figuráveis. Esse era um termo que o seu pai usava há 30 anos. Hoje em dia é um termo que ainda choca. Vê aí uma…
[Interrompe] Vejo tudo! Vejo uma enorme hipocrisia. Não há evolução. Vamos ser claros! Quem abrir um dicionário da língua portuguesa, busca "cona" e está lá cona. Cona é uma palavra portuguesa. Sei que tem uma determinada conotação. É considerado um termo, digamos, obsceno, mas caracteriza o órgão sexual feminino. Toda a gente sabe o que é uma cona! Não há ninguém que não saiba o que é cona! Não interessa a idade, nem o sector profissional que abrace, escalão etário, não importa. Lamento muito, mas para mim é perfeitamente natural. Atribuí esse título com grande satisfação. O livro não teve a divulgação que poderia ter. Temos televisões, temos rádios, temos jornais que não colocam o nome por pruridos que têm relativamente ao título. Mas acho que, simultaneamente, o nome é, no mínimo, apelativo. Não queria ir para um título trivial. Podia falar, por hipótese, da “geração do êxtase”, da "geração da mudança", sei lá, mil e um nomes que me podiam ocorrer. Esta é uma sociedade hipócrita, onde há grandes vestígios inquisitoriais. Vivemos num país de demagogia, aldrabice, mentira. As pessoas não assumem aquilo que sabem e aquilo que vêem. Este é um mundo falso, de mentira. Não tenho nenhum problema em falar da cona d'aço. Por outro lado, adoptei um estilo em que os diálogos entre as personagens são em calão. Portanto, não tenho nenhum problema em pôr as pessoas a falarem em calão. Isso é notório.
É assim que se fala no norte. Como costumo dizer, no Norte não há ponto final, vírgula nem ponto e vírgula. Há "foda-se", "caralho" e "puta que pariu". Agora, não me avaliem só por essa parte. Avaliem-me pela presença ou ausência de qualidade literária do livro. Ter os diálogos em calão é uma opção voluntária. É assim que o povo fala. Eu ponho o povo a falar como fala. Um jovem numa mesa de jovens de 15 anos, vendo uma miúda a passar numa esplanada, não diz “no que concerne à beleza…”. O que diz? “Esta gaja é boa como caraças, faço-lhe isto ou faço-lhe aquilo.” Eu reproduzo a história real, com diálogos reais, porque são esses que acontecem. Quem disser que não é assim, mente! O editor não lhe disse que poderia ser uma má ideia?
Não, não. Até lhe vou dizer mais duas coisas. Tive um enorme privilégio, uma enorme lisonja de ter dado a ler o livro a quatro pessoas de grande destaque na vida intelectual portuguesa: o maestro António Vitorino de Almeida, Mário Zambujal, o José Jorge Letria, que é o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores e, não menos importante, o José Manuel Mendes, presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores. Todos eles escrevem um texto para o livro, sendo que o António Vitorino de Almeida faz o prefácio. Desde logo, esse aspecto é importante. Por outro lado, a minha editora teve o espírito aberto. Expliquei-lhe por que é que se chamava Cona d’Aço e aceitou sem qualquer objecção. Fale-nos então sobre o livro. Pelo título, parece qualquer coisa ao estilo do Apollinaire. Podemos contar com passagens explícitas?
Sim, tem conteúdo erótico, sentimental. É difícil escrever um romance que não tenha histórias de amor, não? Sobretudo, pensei em situar a história no período que vai de 72 a 76, dito de outra forma, na agonia da ditadura, o 25 de Abril e todo o espírito libertador decorrente do mesmo e a atmosfera revolucionária que se gerou depois. Naturalmente decalcado na minha experiência na altura, que apesar de ser muito novo, vivi com particular intensidade esse período e acho que é um dos mais fascinantes da história de Portugal. Tudo isto se passa numa terra que eu ficcionei, erguida a Norte e, por isso, inspirado na minha vivência pessoal porque sou nortenho e vivia no Norte nesse período. Tudo isto com as particulares próprias de uma vila situada, de forma ficcionada, repito, no distrito do Porto. A história gravita em torno das comunidades estudantis, uma no ensino secundário — falamos de jovens entre os 12 e os 16, uma comunidade interligada com jovens universitários mais velhos. Ao contrário do que é normal dizer-se nestas circunstâncias, qualquer semelhança entre a realidade e a ficção é pura coincidência, eu diria que no que diz respeito ao meu livro não é verdade. Quase todas as histórias correspondem à verdade. Muitas das quais não estão enfatizadas, estão mitigadas. Houve algum escritor que o influenciasse particularmente?
Há um traço autobiográfico no livro. Há lá uma personagem que, com oito anos de idade, aparece com um livro do Camilo Castelo Branco debaixo do braço. Devo dizer-te que há uma pessoa da minha editora que quando foi confrontada com os originais disse que era impossível e impensável: quem é que aos oito anos lê o Amor de Perdição? Eu, com essa idade, lia o Amor de Perdição e apaixonei-me pelo triângulo amoroso Simão, Teresa e Mariana e pela prosa, sobretudo pela fabulosa adjectivação do Camilo. É óbvio que agora tenho outra percepção, mas na altura já dizia de cor passagens como [enche o peito e levanta a voz]: “Reputo-o tão cobarde, tão sem dignidade, que o hei-de mandar azorragar pelo primeiro mariola das esquinas." Dizia isto com oito anos e a malta ficava a olhar. O António Vitorino descreve muito bem a influência no prefácio. Clássicos do século XIX, o neorrealismo dos anos 50, Alves Redol, e muito Jorge Amado. O carácter mais transgressor, não o busco em ninguém, foi ideia minha. Pois. Uma vez que é um estreante no género, como foi o processo de escrita?
Não foi muito diferente do que tenho feito. A maior parte dos meus livros são sobre futebol. A maior parte retrata uma realidade factual, mas a minha forma de escrever é muito semelhante. Tenho quatro livros de crónicas que, não sendo ficcionadas, aqui e além têm alguns aspectos de ficção. Relativamente à ficção e ao romance, há muito tempo que andava a ser pressionado pela minha editora para fazer uma obra desse tipo. Confesso que hesitei muito, não é bem a minha sensibilidade, o meu estilo. Mas a dada altura disse, vou em frente, tenho a Cona d’Aço na cabeça, tenho uma história para contar. Demorei três meses e qualquer coisa. Escrevi nove, dez horas por dia. Deu-me um imenso prazer mergulhar nesse período da minha vida. Como dissemos antes, o João já fez muitas coisas: foi comentador, dirigente, jornalista. Gosta de tudo o que faz ou faz tudo o que gosta?
Sim. Gosto de tudo. Tenho 53 anos e posso dizer que, no plano profissional, tive o privilégio de fazer tudo aquilo que me deu prazer. Para usar a linguagem da Cona d’Aço, tudo o que me deu tesão. Tanto fiz jornalismo desportivo, social, criminal. É como perguntarem se gosto mais de jornais, rádios ou televisão. Já fiz tudo, portanto só faço aquilo que me dá prazer. Já que falamos em prazer, antes de falar consigo revi um vídeo em que beija duas mulheres…
Gosto muito de beijar. E tinha câmaras à frente e tudo. Estava bem-disposto e acho que elas também. Aquilo deu-me prazer e deu-me gozo. Tenho responsabilidades sociais, procuro ter um comportamento socialmente responsável. Agora, não me eximo de ter determinado tipo de facetas, sentimentos, expressões ou afectos, independentemente de estarem presentes câmaras de televisão ou pessoas desta ou daquela característica. Faço o que me dá gozo, o que me dá prazer. Para o futuro, já pensou no sucessor do Cona d’Aço? Pila Dourada pode ser um título válido.
[Risos] Não. Pila dourada não me parece. Não acho um título adequado para uma produção minha. Definitivamente, não. Quanto à produção neste domínio da ficção, já me têm questionado sobre isso, sobre se é o primeiro de vários e eu digo que tanto pode ser o primeiro e último, como o primeiro de vários. Não tenho nenhuma ideia sobre isso. E digo mais, posso vir a escrever outro se este não tiver sucesso nenhum. Se tiver um sucesso espantoso, posso não escrever mais nenhum também. Ou seja, estou completamente à vontade, sou senhor do meu destino e dos meus prazeres. Faço aquilo que me dá na real gana. Fotografia por Nuno Barroso