Este artigo foi originalmente publicado na nossa plataforma Noisey.
Cass McCombs desce pelas escadas de um restaurante no East Village, em Nova Iorque, com uns óculos cor-de-rosa gigantescos e voz suave diz "Olá". Os óculos parecem o tipo de coisa que decidirias usar ainda meio a tripar com cogumelos depois de te aperceberes que precisas de sair de casa e andar um bocado. Estamos aqui para falar sobre o seu novo disco, Mangy Love.
Possivelmente o melhor cantor-compositor da sua geração, neste nono disco deixa para trás a toada meio anos 70 e adiciona à sua sonoridade umas guitarras que soam tão hipnóticas como metronómicas; músicas com balanço ("Run Sister Run") e outras que transportam um quê de melancolia nas suas discretas explorações da condição humana. Atente-se como encerra o disco com "I'm a Shoe", numa atmosfera que transpira Leonard Cohen por todos os poros.
Ainda assim, passado tanto tempo e com tantas canções observadoras e confessionais, o homem de 39 anos continua misterioso e atreito à partilha de informações pessoais. McCombs é um nómada. Continuo a pensar onde é que arranjou aqueles óculos cor-de-rosa - ou de quem - mas nem lhe pergunto. Apesar de o conhecer há oito anos, há uma certa força na sua personalidade calma que exclama: deixa que os mistérios sejam mistérios, por favor.
Encontramo-nos em St Mark's Place, onde a rapaziada da Universidade de Nova Iorque se mistura com skaters, punks, crusties e o pessoal da J-Crew. St Mark's, por acaso, é um daqueles sítios onde é possível comprar todas as drogas sintéticas semi-legais disponíveis no mercado, incluindo opiáceos falsos, cogumelos de mentira e erva sintética.
Noisey: Já experimentaste aquela marijuana sintética?
Cass McCombs: Ouvi falar de uma tal K2 ou lá o que é. Que merda é essa?
Normalmente é uma cena fabricada na China, um pó branco, ou algo assim.
O que é que isso tem a ver com erva? Não percebo.
O efeito é semelhante e há quem se rebente todo depois de meter doses altíssimas enuma coisa que deveria ser apenas um charro. Imagina que fumas um e te bate mil vezes mais do que era suposto. É por isso que há aí uma malta a cair pelas ruas.
E a vomitar para tudo o que é lado, vi umas fotos do Bed-Stuy há dias. Um corpo, uma poça de vómito, outro corpo, outra poça de vómito.
Isso já não acontece na Califórnia. Mas a proibição da erva continua aqui em Nova Iorque…
Pois, temos agora essa renascença da erva em que é tudo orgânico. Eles falam com as plantas e metem música a tocar, como se fossem pessoas, como se as plantas tivessem alma e elas entrassem na sua consciência e tal. Não entendo essa cena sintética, mas imagino que uma coisa não tenha nada a ver com a outra.
Ainda fumas erva?
Claro.
Onde é que vives agora?
Na maior parte do tempo no Norte da Califórnia e aqui.
É bem bonito o Norte da Califórnia, quando se passa pelas pontes. Talvez curtisse morrer por lá, porque parece que estamos no céu quando se vê a cidade cercada por nuvens e tal.
É uma zona bem fixe, mas eu não consigo ficar num sítio durante muito tempo. Gosto da cidade e do campo. Como toda a gente, não é?
Há uma música no disco novo chamada "Rancid Girl", que tem uma das tuas letras mais engraçadas: "You've got a diet of Mike and Ikes and fresh mongoose / Your favorite movie: Every Which Way But Loose". É sobre alguém que odeias?
É tipo um riff dos ZZ Top, uma canção de amor de rock'n'roll, uma rapariga rock'n'nroll, todos conhecemos miúdas cool do rock. Sei que quis ser duro, mas é só mesmo amor.
É sobre uma miúda que curte Rancid?
Um bocadinho. Adeline, Berkeley, punk rock, rock'n'roll, adolescentes, Telegraph Avenue.
Do que é que gostas nesses lugares e coisas?
Quero dizer que todos fomos adolescentes e quando envelhecemos tentamos voltar a essa época dos 14 aos 17, porque é quando tens sexo pela primeira vez, metes ácidos, vais a Nova Iorque pela primeira vez, seja lá o que for que acontece pela primeira vez. Ainda nem és uma pessoa a sério e estão todas essas coisas traumáticas a acontecer-te e ainda não tens forma de as aproveitares convenientemente.
A primeira canção, "Bum, Bum, Bum", fala de "sangue nas ruas" e a comunicação social está, hoje em dia, carregada dessas coisas horríveis. A música fala sobre isso?
Sim, claro.
Acompanhas as notícias? O que é que pensas de toda esta brutalidade policial, Donald Trump, Médio Oriente, sangue derramado e gente a tentar desunir os povos através do medo e da violência?
Todos acompanhamos as notícias e eu acabo por meter essas coisas nas músicas, mas não sou um organizador muito articulado. Só componho e é isso. Acho que tudo tem piorado, mesmo as divisões na música, géneros. Não consigo pensar numa época em que as pessoas se comprometessem tanto com o que nos afasta na música. A nível geral as coisas têm piorado, mas não acho que antigamente fosse melhor. Temos raízes violentas, por isso queria escrever sobre isso. Como é que podemos pensar num futuro tranquilo e bonito quando viemos de lugares tão violentos?
Não creio que Trump vá vencer. Acha-lo engraçado? Entretem-te?
Não, ele está cansado e a cena dele já é muito batida.
O que pensarias se alguém o matasse?
O pacifista dentro de mim não quer apoiar uma merda dessas, mas o revolucionário em mim acredita no que for preciso. Por isso, não sei.
Era tipo matar Hitler antes da merda toda, pouparia muita dor-de-cabeça.
Não sei. Matar é errado?
Há muita gente que mata outras pessoas todos os dias e ninguém liga. Se há um propósito, acho que é justificado e por isso é que o fazem.
O pacifismo é [encarado como] uma coisa antiga, antiquada, e é por isso que ficamos presos nestas guerras. Votei em Obama porque ele disse que ia acabar com elas, acreditei nele, acreditei que ele estava a falar a sério por ter sido tão duro com Bush. Era tipo "vamos acabar com as guerras para sempre!".
O que achas dele agora?
As suas práticas são brutais e imperialistas. Guerras com drones e tudo, é uma loucura, mas ainda gosto do gajo. Quando ele fala, parece que está a acontecer uma conversa. É um truque bizarro. Mas não deixa de ser uma pessoa verdadeira.
Viste George W. Bush a dançar no funeral do polícia de Dallas que foi morto?
A dançar?
Estavam a tocar a "Glory, Glory, Hallelujah" e o gajo lá a dançar, de mãos dadas com Michelle Obama e com a sua esposa, meio vermelho, com cara de bêbado.
E mais ninguém estava a dançar?
Não. Acho que essa sempre foi a onda dele, dançar.
Fui ver a exposição de pinturas dele.
Foste? Onde?
Na biblioteca presidencial em Dallas. Chegámos no dia da abertura e tocávamos nessa noite. Aquele Putin é especial, tem ali uma cena meio Edgar Allan Poe… há algo de estranho naquele quadro.
Quantos quadros tem a exposição?
A mostra chamava-se "A Arte da Liderança" e tinha aí uns 30, do Tony Blair, Bush Pai, Dalai Lama, Sarkozy…
Que materiais é que ele usava? Qual era o suporte?
Aguarela, óleo sobre tela. Mas um deles era dele casa-de-banho, de roupão ao espelho… [Risos]
Qual foi a tua interpretação? Conseguiste ver um bocado mais do homem?
Bem, vês os quadros e parece uma coisa de criança. Têm uma certa inocência, mas não consigo deixar de pensar em estar aqui no 11 de Setembro. transmitem uma certa vibe daquele dia e da importância que teve. Poderia ter sido a "melhor" coisa a acontecer-nos, ou algo que nos destruiria, dependendo da maneira como reagiriamos. Acho que escolhemos a segunda opção: destruímo-nos. Ele parece um comediante, outro Trump, um burro, e tens vontade de ser simpático com ele, até que te lembras do Afeganistão, Iraque, dos seus amiguinhos - Dick Cheney e os outros — senhores da guerra, imperialistas, por isso deixa de ser engraçado e fofo.
É verdade, as coisas não correram lá muito bem. Provavelmente um dos maiores erros na história da civilização e agora se as pessoas não votarem na Hillary, já que Bernie não chegou lá, vou ficar bastante chateado.
Há um outro mundo além destas eleições e da política. Acho que é importante pisarmos essa esfera, conhecermos a sua linguagem, para também nos podermos afastar e meditarmos.
O mundo nem sempre gira em torno das pessoas. Temos essa ideia bastante egocêntrica do Cosmos, que se trata tudo de eleições e do próximo a liderar e isso é ridículo. E os planetas, estrelas, galáxias, supernovas e o caralho? Por isso é que é importante ingerir drogas psicadélicas de tempos a tempos; elas fazem com que consigamos afastarmo-nos dessa esfera sufocante.
Qual foi a última droga psicadélica que meteste? Ando com um bocado de receio depois de uns acidentes com líquidos.
É perigoso. Aqueles frascos e líquidos, quem já usou teve problemas.
Os cogumelos são mais seguros e ouvi dizer que fazem bem à depressão.
Acho que sim, sou um gajo bastante depressivo. De vez em quando como uns bocaditos e ajuda. Não entendo porque é que são ilegais. Tenho um amigo que cultiva uns e pelos vistos são bastante especiais.
Com que frequência usas?
Eu uso e paro de usar várias vezes, para não ter que usar sempre. É divertido tocar sob o efeito, mas não gosto de estar em bares, por exemplo, apesar de já o ter feito algumas vezes. É fixe para meter no meio do mato. Legalizem, que é o que nos vai salvar.
É um conceito difícil de entender pela maioria das pessoas. Os cogumelos são coisa de gente doida, mas invadir países é na boa.
É isso, mas banir um fungo que cresce naturalmente é que é fixe.
Como é que lidas com a depressão? Comecei a meditar e ajudou-me.
Também tentei, mas não cheguei a lado nenhum. Sou péssimo e tenho de praticar mais, mas o gajo que tocava bateria comigo na Secundária agora é instrutor de meditação no Oakland Zen Center e acho que é do estilo japonês.
Adoro o estilo budista em que a mensagem básica é "Tudo bem, está tudo certo porque é tudo tão grande que não há nada que possas fazer". É bom se tiveres problemas com controlo.
O meu colega de quarto estuda uma cena diferente. É uma prática budista tradicional bem mais rigorosa, com votos de silêncio. Não entendo nada, mas ele parece-me estar bastante dentro da coisa. A única coisa que me diz é que aquilo não é para ser divertido, nem uma cena cool.
Um amigo meu participou num retiro silencioso. Disse-me que eu adoraria e deveria ir, mas acho que não. O que achas?
Porque não?
Um monte de velhos bizarros com todas as doenças mentais possíveis no meio do nada! Mas, mudemos de assunto. O que é que tens lido nos últimos dois anos? Houve algum livro que te tenha ajudado na composição do disco?
Revisitei vários livros que li quando era mais novo e tiveram algum impacto em mim, tipo a autobiografia do Malcolm X, o primeiro livro que me tocou além dos que lia quando era puto, Dr. Seuss, Judy Blume e sei lá mais o quê. Tinha 14 anos quando li Malcolm X e aquilo bateu-me. Meio que amadureci imediatamente. Senti que tinha tido uma visão depois de ler aquele livro.
Deu-te uma perspectiva, uma inspiração? O que é que sacaste dele agora?
Pensei na minha juventude suburbana no norte da Califórnia, em East Bay. E estava a ouvir Public Enemy e a música daquela época também.
Há muita gente a participar no teu novo disco, incluindo Rob Schnapf que fez alguns discos do Elliot Smith e o teu colaborador de longa data Ariel Rechtshaid, que trabalhou nos álbuns que gravaste com a actriz Karen Black [falecida em 2013, aos 74 anos]. Podemos falar dela? Como é que a conheceste?
Convidei-a para cantar a minha música "Brighter" e demo-nos bem. Estava a compor um punhado de músicas para ela e ela também tinha um monte de poemas e letras. Escrevia coisas e mandava-me. Enviava-me longos áudios a cantar e quando a gravação cortava ela ligava outra vez para continuar a cantar. Ela compunha e gravava desde o começo dos anos 70, talvez 60 e sempre quis lançar um disco.
Creio que isso aconteceu em 2007 ou 2008.
Não me lembro de nada, a minha memória é horrível.
Como é que ela era? Fiquei muito empolgado com essa parceria. Sempre fui fã dela e quando a vi no teu disco, pensei que era uma equipa do caraças. Como era a vossa relação?
Visitava-a muito e às vezes acompanhava-a a eventos e afins, ela sempre estava a desenhar, a cantar, constantemente a criar. Como um redemoinho, sempre a pensar. Ela tinha um controlo excelente da sua criatividade. Sabia exactamente o que queria; foi inspirador porque músicos ou artistas que conheço da minha geração parecem, por vezes, demasiado preguiçosos. Gosto de gente intensa, gente que me inspire.
Mangy Love foi editado a 26 de Agosto, pela ANTIe Cass McCombs toca a 3 de Novembro no Cinema São Jorge, em Lisboa.
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