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Entretenimento

O Cinema LGBTT em 2015

Fizemos um pequeno apanhado dos filmes que se destacaram no Inside Out Toronto LGBT Film Festival e podemos dizer que o cinema queer continua fabuloso e essencial.

Do filme Guidance, fotos cortesia de Inside Out Toronto LGBT Film Festival.

David Gold é um ex-astro mirim e um ator adulto alcoólatra, falido e fracassado. Quando ele é demitido de seu último emprego como dublador de autoajuda, ele começa a se passar por um conselheiro de escola de ensino médio. Afinal de contas, ele é ator – ele pode fazer qualquer coisa. Ele também é um gay não assumido. Mas em Guidance, o primeiro longa hilário de Pat Mills, a identidade sexual de David não é o único foco do filme. Isso não é algo escondido ou ignorado – ele é demitido de seu trabalho como dublador porque "clientes mulheres querem a voz de um homem heterossexual alimentando suas afirmações" –, mas também é apenas um aspecto de seu personagem.

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"Eu queria fazer um filme 'anti-sair-do-armário' – a história com que estamos tão familiarizados", Mill explicou por telefone de Seattle, onde Guidance está em exibição no Seattle International Film Festival.

Mills descreve Guidance como um filme sobre um "cara estranho que está meio fodido" capaz de encorajar adolescentes (às vezes, com doses de vodca) a serem eles mesmos – mesmo se isso não for o que a sociedade quer ou espera deles. E, fazendo isso (mas não do jeito clichê), ele aprende sobre si mesmo. Nesse sentido, Guidance, que está em exibição no Inside Out Toronto LGBT Film Festival, é mais uma história de amadurecimento do que a trajetória de quem se assume homossexual.

E como explica Andrew Murphy, diretor de programação do Inside Out, muitos filmes queer, hoje, estão contando histórias que não são voltadas para a sexualidade ou a identidade de gênero do personagem. "São histórias em que as pessoas LGBT entram na narrativa. Histórias em que a sexualidade do personagem, ou seja lá como eles se identificam, é apenas incidental", diz Murphy. "É mais sobre contar uma boa história."

O Inside Out Toronto LGBT Film Festival foi lançado em 1991, mais ou menos ao mesmo tempo em que o Novo Cinema Queer emergia. O crítico B. Ruby Rich cunhou o termo em 1992 para descrever uma onda de filmes radicais, enérgicos e aclamados que evitavam deliberadamente imagens "politicamente corretas" ou "educadas" da comunidade queer. (Veneno, de Todd Haynes, Garotos de Programa, de Gus Van Sant, e filmes da produtora Christine Vachon são alguns exemplos.) Recém-saído da era Reagan e no meio da crise da AIDS, o Novo Cinema Queer foi uma reação à privação de direitos, ao ostracismo social e ao estigma enfrentado pela comunidade LGBT.

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"Esses filmes estavam sendo criados porque havia um sentimento de urgência e uma necessidade de terem suas vozes ouvidas na tela, porque essas histórias não estavam sendo refletidas em Hollywood. E isso se tornou um tipo de movimento", explicou Murphy.

Scott Ferguson, diretor-executivo do Inside Out, participou do primeiro "Festival de Cinema e Vídeo Lésbico e Gay" do Inside/OUT Collective Toronto, em 1991. Naquela época, "não havia nenhum lugar para a comunidade se reunir e ter acesso a filmes queer", segundo ele.

Um dos filmes que ele viu naquele festival foi Paris is Burning, o documentário de Jennie Livingston de 1990. "O festival foi no Eclid Theatre, na esquina entre a College e Euclid, que hoje é uma Starbucks com um prédio de apartamentos em cima. Lembro-me de chegar lá, subir as escadas e entrar numa grande sala que não era realmente um cinema, com cadeiras dobráveis; e, quando as cadeiras ficaram todas ocupadas, as pessoas começaram a sentar no chão", ele lembra. "Foi um festival totalmente diferente do que é hoje."

Vinte e cinco anos depois, o festival chama o chique TIFF Bell Lightbox de lar, apresenta quase 150 filmes do mundo todo e atrai dezenas de milhares de pessoas para as exibições. E, assim como o festival, os filmes que ele apresenta também evoluíram. Embora o Novo Cinema Queer tenha celebrado comunidades estranhas e marginalizadas, nos últimos anos os filmes "pós-gays" tomaram a frente, segundo Murphy.

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"Você tem filmes em que a história LGBT ou o personagem… tudo faz parte – não é uma história sobre se assumir. Mesmo se o personagem se assume nela, o filme não é visto como um filme sobre [o ato de] se assumir", ele explica.

Em muitos filmes queer da atualidade, sexualidade e identidade de gênero são refletidas como apenas mais um aspecto da vida do personagem. "Não é mais: 'Trabalho numa loja gay, tenho amigos gays, sou gay 24 horas por dia'.", frisa Ferguson. Murphy acrescenta que, enquanto essas histórias costumavam ser celebradas pela comunidade queer, "Agora é mais: 'Não, somos todos parte de uma imagem maior aqui'.".

Claro, para alguns, "histórias sobre se assumir" são vitais e precisam ser contadas, dizem Murphy e Ferguson. Porque, dependendo de quem está contando essas histórias ou de onde elas sejam, se assumir ainda é uma decisão extremamente perigosa. Na América do Norte, mulheres transgênero e pessoas queer não brancas enfrentam taxas muito mais altas de violência do que a comunidade queer branca, por exemplo. O último relatório anual da National Coalition of Anti-Violence Programs (NCAVP) sobre violência contra a comunidade LGBTQ e as pessoas afetadas pela AIDS nos EUA descobriu 18 assassinatos anti-LGBTQ em 2013. Das vítimas, 89% eram pessoas de cor e 72% eram mulheres transgênero. E, em outros países, cineastas queer ainda estão lutando por seus direitos. Por exemplo, o coletivo de arte por trás de Stories of Our Lives, um filme do Quênia participando do festival deste ano, foi proibido de exibir, vender ou distribuir a obra nesse país por causa do seu conteúdo queer.

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No geral, o ativismo ainda tem um papel importante no cinema queer, mas, com mais países tentando avançar até uma sociedade mais igualitária, as questões dos filmes queer estão mudando. "Muitas das coisas que eram mais proeminentes e importantes no passado continuam importantes hoje, só que isso se diversificou em termos do que está sendo produzido, de como as histórias estão sendo contadas, de como estamos representando nós mesmos, nossa identidade, nossa vida, mas, dentro de tudo isso, o ativismo ainda tem um papel importante", pondera Ferguson. "Você vê mais filmes sobre as questões que são o tópico do momento. Nos EUA, agora, é o casamento gay. Você tem muitos documentários sobre isso. Em outras partes do mundo, isso é mais sobre as lutas por direitos humanos.

"Como qualquer arte, isso é uma reação ao momento que estamos vivendo."

Muitos países podem estar ponderando sobre igualdade legislativa também, mas isso não significa que as pessoas sejam tratadas igualmente – e isso é algo que o cinema queer continua a destacar.

In the Turn.

O lindo documentário In the Turn, de Erica Tremblay, que também está em exibição no Inside Out, conta a história de Crystal, uma garota transgênero de dez anos do norte de Ontário que não pode participar dos times esportivos por causa de seu gênero. Há muitos aspectos devastadores na história – aos cinco anos, Crystal disse ter pensamentos suicidas: ela sofria muito bullying na escola –, mas Tremblay enfatiza principalmente os efeitos positivos que o Vagine Regime, um coletivo de roller derby queer, tem na vida de Crystal.

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"Acho que, no cinema LGBT, temos visto e ouvido muitas histórias tristes – especialmente de indivíduos trans. Acho que isso começou a mudar no que se trata de histórias lésbicas ou gays heteronormativas. Mas, no cinema trans, acho que estamos muito acostumados a ver a história de alguém realmente deprimido, que mora no porão da casa da mãe", ela destaca. "Acho que essas histórias são importantes, porque temos que falar de tristeza, mas esperamos que nosso filme fale também de celebração."

Tremblay diz que, como uma pessoa cisgenderqueer, nunca viu uma representação de si na tela enquanto crescia. No entanto, ela acrescenta, "mas não na extensão que muitas pessoas trans não são representadas de maneira correta na mídia".

Ele conheceu vários cineastas e editores trans; e, enquanto fazia pesquisa para o filme em conversas com colegas e amigos trans, Tremblay conta que se viu soterrada por pedidos que sua obra mostrasse coisas cotidianas, como se "ir ao mercado".

Numa cena do filme, Fifi Nomenon, membro do Vagine Regime, sentencia: "Há uma vida muito chata no final do arco-íris".

"Isso é tão verdade para tantos de nós, que não são representados no mundo que vemos fora de nós mesmos", disse Tremblay. "Sentimos uma responsabilidade muito forte de mostrar esse lado."

Mais cineastas hoje estão trabalhando para trazer mais histórias queer para o público. E Netflix, Amazon, HBO e até programas de TV a cabo convencionais estão fazendo ondas em termos de representação na televisão. Porém, no cinema mainstream de Hollywood, as histórias LGBT ainda são quase totalmente ignoradas. O relatório de 2015 Studio Responsability Index, do GLAAD, descobriu que, dos 114 filmes lançados pelos sete maiores estúdios em 2014, apenas 20 (17,5%) tinham personagens lésbicas, gays, bissexuais e transgênero. Desses 20 filmes, dez continham menos de cinco minutos de tempo em tela com seus personagens LGBT.

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Estatísticas como essas provam por que festivais como o Inside Out são tão vitais – tanto para a comunidade LGBT procurando por mais de suas histórias em tela quanto para a comunidade como um todo.

"O cinema é um meio muito acessível; e, com um filme, você tem a oportunidade de entreter, informar, educar e conscientizar", resume Ferguson. "Poucas coisas têm essa acessibilidade e habilidade. Você pode ter um filme leve, facilmente digerível, mas que te apresenta a um personagem trans, um tipo de pessoa com quem você nunca teve uma experiência na vida real."

Acredite ou não, ainda há películas por aí que não são sobre "um cara musculoso numa fantasia de super-herói", ironiza Mills. Seu cinema local pode não refletir isso, mas há alternativas. É preciso procurar. O público ainda precisa procurar essas histórias.

"Sinto que tudo que podemos fazer como narradores queer", diz Tremblay, "é continuar contando nossas histórias, porque elas são envolventes, maravilhosas, belas e honestas. São histórias que precisam ser contadas."

O Inside Out Toronto LGBT Film Festival vai de 21 a 31 de maio no TIFF Bell Lightbox.

Os filmes preferidos de Scott e Andrew do festival:

Andrew Murphy: Eisenstein in Guanajuato, de Peter Greenaway; You're Killing Me, de Jim Hansen; Monster Mash, de Mark Periselli.

Scott Ferguson: Mariposa, de Marco Berger; Une Nouvelle Amie, de François Ozon; Guidance, de Patt Mills.

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Tradução: Marina Schnoor