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O Nacionalismo Hindu na Era Modi

Com a reputação do RSS gerando uma nuvem de pressentimentos sobre a política indiana, decidi ver por mim mesma como era um shakha, e como os voluntários do RSS viam a si mesmos e a ideia da Índia como uma nação hindu.

Um grupo de swayamsevaks, voluntários do RSS, se prepara para alongar como parte de seu shakha diário. Todas as fotos por Sonia Paul. 

Meu relógio ainda não tinha marcado seis horas da manhã, mas o grande parque no centro de Lucknow, capital do estado indiano de Uttar Pradesh, já estava cheio de gente aproveitando o frescor da manhã, antes que o calor sufocante do mês de maio se estabelecesse. Crianças brincavam na grama aparada, nos balanços e num muro de pedra em miniatura. Adultos em roupas esportivas e salwar kameezes andavam apressados pelos caminhos de cimento.

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E isolados num canto, bem à vista de qualquer um, um grupo de cinco homens realizava seus exercícios matinais. Eles começaram com alongamentos simples. Levantar a perna direita uns 20 centímetros do chão. Girar em sentido horário por oito segundos. “Ek, do, teen, chaar, panch, chay, saat, aath”, eles contavam em hindi. Repetir o giro em sentido anti-horário. “Ek, do, teen, chaar, panch, chay, saat, aath.”  Trocar a perna.

Depois, eles passaram a relaxar a cabeça, ombros e costas, formando uma fileira ou um círculo dependendo do exercício. Durante um aquecimento breve, por exemplo, cada um deles corria o perímetro enquanto cantava “Bharat Mata Ki, Jai” – “Salve a Mãe Índia” – quantas vezes fosse possível segurando o fôlego. Era um teste de resistência.

Os cinco homens estavam vestidos para atividade física – shorts e camisas polo – mas dois deles usavam os shorts cáqui que são marca registrada dos voluntários do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) durante esses exercícios matinais, conhecidos como shakhas.

“Saudamos a bandeira [do RSS], jogamos jogos, dizemos as preces, nos exercitamos – tudo é combinado no shakha”, me contou Karan Singh, 22 anos, estudante de jornalismo da Universidade de Lucknow e voluntário da RSS, que estava presente naquela manhã.

O RSS é a organização nacionalista de direita hindu que gerou o Partido Bharatiya Janata (PBJ), que obteve uma vitória esmagadora nas eleições gerais indianas e cujo candidato a primeiro-ministro, Narendra Modi, foi empossado segunda-feira passada em Deli. O RSS também é a maior organização voluntária não política do mundo. Suas diversas ramificações, como o PBJ e o Vishva Hindu Parishad (VHP), outro grupo hindu que defende a proibição do abate de vacas e a construção de um templo devotado à divindade hindu Rama num ponto disputado entre hindus e muçulmanos na cidade de Ayodhya, compõem coletivamente a Sangh Parivar, ou Família Sangh.

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O RSS é tido amplamente como uma organização extremista hindu que defende uma agenda indiana conhecida como hindutva. A origem de Modi como ex-voluntário do RSS e o papel da organização ao ajudar o PBJ a vencer as eleições, deixou muita gente imaginando como uma agenda hindutva sob o governo de Modi poderia ser. O PBJ conseguiu impressionantes 282 das 543 cadeiras da câmara baixa do Parlamento indiano, o suficiente para tornar Modi primeiro-ministro sem precisar fazer alianças com os partidos regionais, o que normalmente acontece nas eleições gerais indianas.

É por isso que eu tinha ido ao parque naquela manhã. Com a reputação do RSS gerando uma nuvem de pressentimentos sobre a política indiana, decidi ver por mim mesma como era um shakha, e como os voluntários do RSS viam a si mesmos e à ideia da Índia como uma nação hindu.

“Quando você vem para esses shakhas, você se exercita e diz as preces, assim você está construindo o caráter de uma pessoa”, disse Anil, 30 anos, um vistarak do RSS que coordenava o shakha daquele dia. Os Vistaraks se comprometem a recrutar mais voluntários para o RSS e realizar shakhas e outras atividades do grupo por três anos. Ele não quis me dizer seu sobrenome para que eu não pudesse definir sua casta, algo que às vezes pode polarizar comunidades nessa parte do país durante a época de eleições. As pessoas geralmente votam de acordo com sua casta e identidade, e a política pode colocar amigos uns contra os outros.

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Ainda assim, a vitória do PBJ mostrou que a casta não teve um papel tão importante nessas eleições como nas anteriores. O papel da religião, no entanto – especialmente a consolidação dos eleitores hindus – é inquestionável, disse Ram Dutt Tripathi, analista político e jornalista independente de Lucknow, que já trabalhou para a BBC World Service por 21 anos.

“O principal tema das eleições tem sido a polarização comunal, polarização religiosa”, ele me disse. “A ideia do secularismo é que o estado não é paternalista [com eleitores de uma certa religião]. Mas estamos vendo um reavivamento do hinduísmo.”

Essa retomada está associada a um movimento que se afasta da política de castas, de acordo com Pralay Kanungo, professor da Universidade Jawaharlal Nehru e autor do livro RSS's Tryst with Politics: From Hedgwar to Sudarshan [“O Flerte do RSS com a Política: De Hedgwar a Sudarshan”, numa tradução livre]. “Quando você fala de uma grande identidade hindu, a ideia toda é demolir esses fatores [como casta] para criar uma identidade hindu maior”, ele me disse. Do ponto de vista do RSS, segundo ele, um hindu é alguém que considera a Índia tanto sua pátria mãe como sua terra sagrada. Esse entendimento do hinduísmo se origina do termo hindutva, cunhado em 1923 por Vinayak Damodar Savarkar, um combatente pela liberdade e autor de um influente panfleto intitulado “Hindutva: Quem é um hindu?”.

“O hinduísmo é uma fração da Hindutva”, explicou Kanungo. “Hindutva é a história maior que engloba história, religião, cultura – tudo. Ele deixou muito claro que Hindutva não é hinduísmo.”

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Uma menina [à esquerda] se junta ao grupo de voluntário do RSS no shakah. Quase ninguém no parque lotado prestou atenção no grupo, mesmo que os shorts cáqui indicassem que eles eram parte do RSS. 

O hinduísmo tradicional era considerado um modo de vida baseado na premissa de sanathana dharma, a lei eterna que estabelece que não há começo nem fim. A palavra hindu vem de Sindhu, o rio que passa pelo que hoje é o Paquistão, também conhecido como Rio Indo.

“Os árabes chamavam as pessoas que viviam nas margens do rio Sindhu de hindus”, me disse J.P. Shukla, analista político de Lucknow, que trabalhou 18 anos para o jornal inglês The Hindu. “A constituição indiana não define a palavra hindu. Ser hindu não é algo que você possa dizer de forma definitiva.”

A principal crença do RSS, de que a Índia é um terra santa hindu, é o que ostraciza as minorias religiosas do país, como cristãos e muçulmanos, disse Shukla. Isso por causa de um corolário implícito, mas amplamente aceito: que não hindus na Índia são estrangeiros e intrusos, e não realmente indianos. O RSS foi fundado em 1925 por Keshav Baliram Hedgewar, um ideólogo hindu que sentiu que o Partido do Congresso Nacional Indiano estava se preocupando demais em agradar os muçulmanos, de acordo com o livro RSS: A Vision in Action.

“O Dr. Hedgwar foi igualmente enfático no aspecto de que ganhar os muçulmanos não devia terminar por comprometer o espírito do nacionalismo”, diz o prólogo do livro. “Ele também estava convencido de que, no final, os muçulmanos deveriam desistir de suas posturas agressivas e antinacionais, mas só quando os hindus se tornassem organizados e poderosos o suficiente para fazê-los perceber que seus interesses seriam melhor servidos juntando-se aos hindus no mainstream nacional.”

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Apesar de o RSS ter, desde então, suavizado sua postura, sua convicção ideológica é mais ou menos a mesma, disse Kanungo.

Mas quando conversei com os homens que participaram dos exercícios naquela manhã, me pareceu que a maioria era bastante inocente e sincera em sua afiliação ao RSS. Eles disseram ter amigos muçulmanos e não se consideravam radicais. O shakah era mais como um encontro de militares da reserva do que um comício da Ku Klux Klan.

“O RSS está trabalhando para construir uma ideologia na qual não é o indivíduo que vem em primeiro lugar, mas sim a nação”, o recrutador, Anil, me disse.

“É um juramento que você faz em seu coração”, disse Singh, o estudante de jornalismo. “De que sempre que o país precisar de você, você estará lá. Servindo pequenas ou grandes causas.”

Singh me disse que foi motivado a se juntar ao RSS quando tinha 18 anos, durante uma reunião do grupo em seu bairro em Lucknow. Ele se sentiu inspirado pelo comprometimento do RSS com o serviço social. Onde quer que aconteça um desastre natural, por exemplo, o RSS é sempre um dos primeiros grupos a chegar à cena para prestar assistência.

“Eu me lembro exatamente do dia […] Foi em 19 de janeiro de 2010”, disse Singh. Ele fez uma pausa. “O membro supremo do RSS, Mohan Bhagwat, estava na cidade.” Ele falava devagar enquanto relembrava da experiência. “Primeiro eu achava que essas pessoas [simpatizantes do RSS] estavam apenas espalhando o ódio ou algo assim. Mas, lentamente, enquanto ouvia as ideologias do RSS, percebi que não era assim.”

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Mas a reputação inflexível do RSS não é infundada. O governo indiano proibiu o grupo em 1948, quando um membro do RSS assassinou Mohandas Gandhi, e depois de novo nos anos 1970 e nos 1990. Mais recentemente, muitos acreditam que o RSS orquestrou as revoltas comunais de setembro passado em Muzaffarnagar, no estado de Uttar Pradesh; um confronto que colocou hindus e muçulmanos uns contra os outros. Amit Shah, principal assessor de Modi e secretário geral do PBJ, teve um discurso gravado em vídeo meses atrás no qual diz a um grupo de hindus locais que a eleição era um evento de honra e vingança.

“Um homem pode dormir com fome, mas não humilhado”, Shah diz no vídeo. “Esse é o momento de se vingar votando em Modi.”

Por causa esses comentários, em parte, que um relatório de abril da Times of India, que afirma que aproximadamente 45 mil shakhas foram contabilizados na Índia no ano passado, gerou temores. Entre esses, 8.417 aconteceram em Uttar Pradesh, o estado mais populoso e politicamente sensível da Índia. Se o RSS quer ascender ao poder, acreditam os oponentes, isso poderia atrair gerações mais jovens para um regime fundamentalista.

Amarnath, um pracharak (voluntário do RSS em tempo integral), diz que o grande problema da Índia é que o país não é organizado. Por isso, o RSS é necessário, para ajudar o país a se levantar novamente. 

Mas o shakha que testemunhei não foi assim tão restrito. Enquanto os cinco voluntários do RSS, ou wayamsevaks, como eles se chamam em hindi, continuavam sua rotina matinal, alguns cavalheiros mais velhos, que obviamente não estavam dispostos a acordar tão cedo, juntaram-se ao grupo. Uma menina, além de dois muçulmanos de 20 e poucos anos, também vieram espiar as atividades. Os muçulmanos mantiveram certa distância e me disseram que queriam ver o que estava acontecendo, já que a visão desses homens no parque era novidade para eles. A menina foi mais ousada em sua curiosidade; ela se sentou com o grupo enquanto eles recitavam suas preces e participou dos alongamentos. Os homens foram simpáticos com ela e perguntaram seu nome, mas não prestaram muita atenção nela depois disso. Ela se tornou parte do cenário.

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De maneira similar, a maioria das pessoas no parque ignorou os homens ou não julgou que sua presença fosse motivo de preocupação. Somente alguns olhares se desviaram.

Os voluntários do RSS também viam sua afiliação ao grupo como algo perfeitamente normal.

“Isso não tem nada a ver com nossa religião, nossa casta, nossa crença, nossa cor”, disse Kamal Aggarwal, 43 anos, ao final dos exercícios. Aggarwal está envolvido com a organização há 35 anos, é casado e tem uma família. Ele monitora diferentes shakhas como voluntário de meio turno do RSS.

No entanto, voluntários de tempo integral, conhecidos como pracharaks, renunciam ao casamento e à vida em família. Mais tarde, depois que eu e alguns voluntários tomamos um chai, fomos até um escritório do RSS para que eles me apresentassem para um desses voluntários de tempo integral.

Ele usava um kurta pink e estava sentado numa postura excelente. Ele disse que se chamava Amarnath e, como Anil, se recusou a me dizer seu sobrenome.

“Não sou importante”, ele disse. “De acordo com o RSS, uma pessoa não é importante. A organização é que é importante.”

Amarnath disse que o problema da Índia é que o país é desorganizado, por isso o RSS é necessário, para ajudar a levantar o país.

“Quando um estado ou nação se torna desorganizado, essa nação perde sua identidade”, ele me disse. “Ela perde seu poder, perde sua cultura – todas as coisas que pertencem à nação são perdidas […] mas por meio de nosso comportamento, virá um dia em que todos poderão saber o que é a verdadeira hindutva.”

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Armarnath não me disse exatamente quais eram suas visões sobre a hindutva. Ele também se recusou a responder minhas perguntas questionando se o RSS era somente para os hindus – porque hindu, como ele colocou, significava “nada”.

Quando ele partiu em sua moto para conversar com as pessoas da comunidade – o que é parte de seu trabalho – eu não tinha muito ideia do que fazer com o resto do meu dia com esses voluntários. Eles pareciam normais e inofensivos. Mas uma conversa que eu tive anteriormente com uma pessoa que não fazia mais parte do RSS retornou à minha mente.

A conversa tinha acontecido semana antes, logo depois dos resultados das eleições. Abhishek Pandey, de 26 anos, estava sentado com seu notebook no Café Coffe Day em Lucknow, não muito longe do parque onde o shakha aconteceu. Ele tinha trabalhando ativamente na campanha do PBJ durante as eleições, e só agora tinha tempo para acompanhar as notícias.

Pandey me disse que frequentou uma escola patrocinada pelo RSS até os 13 anos. Ele saiu de lá quando seu pai quis que ele frequentasse uma escola melhor na cidade. Depois, quando tinha 20 e poucos anos, ele parou de seguir a filosofia da RSS completamente. Foi quando ele começou a ler mais, incluindo biografias, livros de história e outros textos religiosos, e começou a pensar no RSS de maneira mais crítica.

“O RSS é um excelente exemplo de uma ideologia sendo passada de pessoa para pessoa”, me disse Pandey sobre sua experiência com o RSS. “Para ser honesto, eles estão fazendo lavagem cerebral nas pessoas […] Eles sempre deixam isso bem claro na mente hindu: Temos que nos preparar para a guerra. Não esqueça que você é hindu. Não esqueça suas raízes. Não se torne secular.”

Shiv Visvanathan, um cientista social que escreveu um artigo para o The Hindu sobre como Modi conseguiu tirar vantagem do entendimento liberal do secularismo para ganhar votos, disse que era compreensível que a religião continuasse sendo uma estratégia eleitoral.

“A Índia nunca vai se divorciar da religião”, me disse Visvanathan. “Nossas religiões sempre interagiram […] Mas o secularismo se tornou um tipo de esnobismo modernista.”

Visvanathan disse que a verdadeira batalha na Índia agora, depois dos resultados das eleições, é entre a hindutva e o hinduísmo. A hindutva tenta se organizar como uma igreja ortodoxa, apesar de o hinduísmo sempre ter sido não hierárquico e nunca ter tido uma igreja.

Mas os simpatizantes do RSS não prestam muita atenção a essas definições matizadas entre hindutva e hinduísmo.

“Hindutva, para mim, significa ser humano”, me disse Singh, o estudante de jornalismo. “É esse sentimento de unidade, de que eu e você somos a mesma coisa.”

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Tradução: Marina Schnoor