Por que é Tão Difícil Enxergar a Vigilância?
Eighty Nine Landscapes (Oitenta e Nove Paisagens), 2015. Crédito: Metro Pictures

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Por que é Tão Difícil Enxergar a Vigilância?

O fotógrafo Trevor Paglen mostra em sua exposição como é a a estrutura física do monitoramento governamental americano.

Todo mês de setembro, depois das férias de verão, o bairro Chelsea, região repleta de galerias de arte em Manhattan, nos Estados Unidos, promove o caos. Os visitantes tumultuam as calçadas, fazem filas para ver mostras populares e saltam poças de água com salto alto.

Na nova exposição do fotógrafo Trevor Paglen, na galeria Metro Pictures, apareceu um público diferente. Menos glamouroso, digamos assim. Em vez de uma monocromia lustrosa, os visitantes vestiam camisetas e moletom canguru e bolsas laterais afiveladas. A disparidade de público ocorria porque o projeto de Paglen, que revela a infraestruturas da vigilância governamental, repercute mais na comunidade hacker do que, vá lá, nos entre os fãs de esculturas minimalistas.

Publicidade

A mostra de Paglen apresenta uma ampla investigação sobre as engrenagens da vigilância digital arquitetada pela NSA e pelo órgão governamental britânico GCHQ, em conjunto com empresas como Google, Yahoo e AT&T. É uma exposição de arte pertinente, raridade, sobretudo porque, com a nossa inércia contínua frente às iniciativas ilegais da NSA, precisamos de lembretes contínuos dessa vigilância para nos sentirmos compelidos a tomar providências.

A mostra não trata de apresentações malévolas de normas ou rastreadores invisíveis. Paglen torna visível a estrutura física da vigilância ao botar sua câmera em complexos de inteligência militar, em drones ativos e em cabos submarinos que levam dados de todo o mundo a diversas áreas dos Estados Unidos — os mesmos cabos que a NSA grampeou para desviar dados, vale ressaltar.

Columbus III NSA/GCHQ – Cabo Submarino Grampeado, Oceano Atlântico, 2015. Créditos: Trevor Paglen

Essas fotografias compõem a espinha dorsal da mostra na Metro Pictures. À distância, as imagens parecem pinturas de Mark Rothko: são escuras, etéreas e o movimento da luz confere à água do oceano vários tons de turquesa, verde e azul. Nota-se o cabo, um fio que corre no solo do oceano, pitoresco à primeira vista e depois sinistro, capaz de induzir paranoias à medida que nos lembramos de sua função. Os títulos das fotos — os próprios nomes dos cabos — são misteriosos e sugestivos: "Maya-1", "Columbus III", "Bahamas Internet Cable System (BICS-1)".

Para criar a série, Paglen aprendeu a mergulhar e começou a procurar pontos de obstrução de cabos submarinos – locais onde redes físicas de diferentes continentes se juntam. "Usei essa informação para formar padrões gigantes de busca, como desenhar um quadrado em um mapa e aplicar as coordenadas do GPS ali, antes de mergulhar com uma equipe para gravar", ele contou à VICE.

Publicidade

Muitos cabos são aterrados na Califórnia, onde o artista mergulhou. O que mais impressiona no trabalho é que as descobertas foram feitas perto de sua casa. A infraestrutura que ele registra não é exótica nem incompreensível. Está apenas escondida do conhecimento público. Assim como estavam aqueles remendos militares ridículos, feitos em unidades secretas, descobertos pelo artista em um trabalho anterior.

NSA – Local de Aterragem de Cabos de Fibra Ótica Grampeados, Morro Bay, Califórnia, Estados Unidos, 2015. Créditos: Trevor Paglen

A exibição traz à tona uma definição social mais antiga do artista, de explorador, pioneiro e crítico público vital, ocluída na última década pela expansão do mercado de arte. Assim como a pintura "A Execução de Maximiliano" (1869), de Manet, que retratou a morte do imperador austríaco da colônia mexicana, ou "A Morte de Marat, de Jacques-Louis David, a obra de Paglen tem um propósito como base: provocar os espectadores ao confrontá-los com uma realidade oculta.

Não muito diferente de um fotojornallista, Paglen busca e captura imagens potentes. Mas sua fluência no vocabulário da arte conceitual e da fotografia artística proporcionam à obra um peso mais duradouro. "Eighty Nine Landscapes" ("Oitenta e Nove Paisagens") é um vídeo de duas telas que ocupa um saguão inteiro da Metro Pictures. A obra apresenta longas sequências do cenário da vigilância: instalações de satélites, as orlas plácidas que escondem cabos submarinos e estações de escuta da NSA, com prédios esféricos bulbosos, uma espécie de Epcot sinistro.

Publicidade

São vídeos extensos, que podem ser considerados releituras do filme de oito horas de Andy Warhol, sobre o Empire State Building. Mas também são influência direta do trabalho de Paglen em CITIZENFOUR, documentário da colega ativista Laura Poitras sobre Edward Snowden. As paisagens plácidas são irritações visuais. São lindas e fascinantes, mas parece que algo está errado. Alguma coisa está fora do lugar. O que exatamente estamos vendo? E por que vemos isso? A resposta ao quebra-cabeça emerge apenas com a revelação da vigilância indiscriminada, tão difusa quanto o próprio solo.

O trabalho de Paglen é uma forma própria de vazamento, que desvela pontos obscuros que negligenciamos com facilidade, na pressa de seguir nossas vidas com o auxílio da conveniência da tecnologia digital.

Bahamas Internet Cable System (BICS-1) NSA/GCHQ – Cabo Submarino Grampeado, Oceano Atântico, 2015. Créditos: Trevor Paglen

Por toda a sua potência, a obra de Paglen tem um problema, bem como seu grupinho de paranoia hipster, composto por Poitras, Appelbaum e tipos como Julian Assange. Por mais que promova uma crítica densa, também transforma a vigilância em fetiche, um distintivo de honra pessoal e a esteticiza a ponto de virar algo… cool? Assim como a rebelião estilosa do punk, ou as roupas iconoclastas de Rei Kawakubo, o que existe primeiro como crítica muitas vezes é cooptado pela moda. As cenas de drones longínquos cortando poentes diáfanos, filmadas por Paglen, dariam lenços Hermes maravilhosos.

Como uma forma de ativismo, se não arte, o trabalho de Paglen ganha força total quando o artista mantém distância das imagens polidas. Na mostra, encontra-se a obra "Autonomy Cube" ("Cubo de Autonomia"), um computador dentro de uma caixa de acrílico, que torna dados anônimos, criado em conjunto com Appelbaum. Também há um vídeo com barra de rolagem que lista os codinomes absurdos da NSA: "Astute Chameleon" ("Camaleão Astuto"), "Avenger Seawolf" ("Leão-Marinho Vingador"), "Banana Glee" ("Alegria Banana"). Assim como a NSA, Paglen arma a informação.

Os vazamentos do Snowden estão ficando cada vez mais para trás. O ultraje esvanece e todo grande projeto de lei para acabar com os programas de longo alcance da NSA está parado no congresso americano. O trabalho de Paglen refresca a memória e escancara esses abusos mais uma vez. E conforme mostrou a galeria lotada, todo mundo está de olho.

Talvez só uma forma diferente de confrontamento nos fará enxergar o que não está bem na nossa frente. Ao passo que os visitantes pulam de galeria em galeria, pelas ruas escuras e largas do bairro, penso nos dados absorvidos por meio de seus telefones brilhantes, a ameaça de câmeras aéreas em peso nos céus.

Tradução: Stephanie Fernandes