Índígenas voltaram a ocupar espaço próximo ao Maracanã

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Índígenas voltaram a ocupar espaço próximo ao Maracanã

O grupo que retornou ao terreno do antigo Museu do Índio espera que o prédio se torne uma universidade para transmitir os saberes indígenas.

A ocupação da Aldeia Maracanã, à beira da Radial Oeste, na zona norte do Rio de Janeiro, é composta por quase duas dezenas de pessoas de várias etnias e está de vigília permanente em torno do prédio do antigo Museu do Índio desde novembro do ano passado. O grupo tem vivido em barracas rudimentares e deseja pressionar as autoridades para transformar a construção, atualmente desativada, em uma universidade, com a gestão das próprias lideranças étnicas, capaz de divulgar saberes dos próprios indígenas.

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"Ayaya". Nenhuma conversa por aqui começa sem a saudação, de origem andina, que deseja ao interlocutor tudo o que há de melhor no universo. No começo do ano, em tempos de lua cheia, foi realizada na ocupação uma cerimônia "para que haja abundância ao longo dos próximos doze meses", me conta Kashalpinha Korubo, de 80 anos. Além de dançar e cantar, indígenas tomam caxiri na cuia, bebida alcoólica feita ali mesmo, em baldes em que repousam porções de abacate ou milho até a fermentação.

Caxiri, bebida consumida durante o ritual, pode ser feito com abacate ou milho. Foto: Bruna Prado/VICE

Além de moradia para os indígenas, a ocupação também abriga os rituais do grupo. Kashalpinha, por exemplo, usa uma mistura de carvão e jenipapo com a qual pinta o corpo para comandar a festa do período da lua cheia, que também celebra a fertilidade da comunidade. "Quando ganharmos de vez o espaço, vou trazer toda a minha família", promete o líder da cerimônia, antes de entrar na oca para iniciar o ritual em volta da fogueira. Há dez anos sem retornar ao Acre, seu estado de origem, ele só se comunica com parentes e amigos por telefone.

O imóvel do antigo museu foi doado em 1865 pelo Duque de Saxe, marido da Princesa Leopoldina, ainda no período imperial. O espaço concentrou pesquisas e a divulgação da história indígena nacional até 1977, quando outro polo indianista foi criado no bairro de Botafogo, na zona sul da cidade, onde permanece em funcionamento até hoje. Desde então, o antigo Museu do Índio foi deixado de lado.

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Grupo que protesta próximo ao estádio não aceitou apartamentos do Minha Casa, Minha Vida. Foto: Bruna Prado/VICE

Em meados de 2006, um primeiro acampamento começou a reivindicar a revitalização e ampliação do edifício. No entanto, em 2013, por conta do processo de privatização do estádio do Maracanã para a realização da Copa do Mundo de futebol e dos Jogos Olímpicos, houve uma reintegração de posse marcada pela violência policial.

Indígenas fizeram ocas no terreno próximo ao estádio do Maracanã. Foto: Bruna Prado/VICE

"É uma pena ver tudo isso abandonado. A empresa que toma conta do estádio também não ajuda", lamenta André Coinvar, ativista de 38 anos, que, apesar de dificuldades para se expressar, também acampa e participa dos rituais. Procurada para explicar como tem sido a relação com a aldeia e com o imóvel, a concessionária Maracanã S.A., formada pelas empresas Odebrecht e AEG, garante que, após a inclusão de um termo aditivo ao contrato, o edifício não é mais de sua responsabilidade e apenas lhe cabe a administração do estádio e do ginásio Maracanãzinho.

A etnia Korubo é natural do Acre. Foto: Bruna Prado/VICE

O plano de concessão do complexo esportivo do Maracanã foi desenvolvido pelo Executivo Estadual do Rio de Janeiro e previa inicialmente a criação de um shopping center no local. Depois, foi anunciado um museu da história olímpica na mesma área. Por fim, ainda antes da realização da Copa do Mundo de 2014, o Governo do Estado anunciou que seria criado um Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas.

É um espaço sagrado que tem uma memória da identidade indígena", diz Ash Ashaninka. Foto: Bruna Prado/VICE

"É um espaço sagrado que tem uma memória da identidade indígena. Estamos aqui porque quem deveria nos proteger não está se pronunciando em momento algum sobre a chacina e o genocídio que estão acontecendo com os povos originários no Brasil", explica Ash Ashaninka, de 42 anos. Assim como Korubo, Ashaninka é de uma comunidade da região norte do país e está no Rio para pedir a criação dessa instituição.

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Ainda que não tenha sido constatada pela Funai nenhuma ingerência administrativa ou prerrogativa legal sobre a edificação na época da reintegração de posse, a crise tomou proporções que exigiram um posicionamento da União. Em 2014, foram distribuídos 20 apartamentos do programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal, para parte dos manifestantes que moravam no prédio abandonado. A medida causou uma cisão entre quem desejava a permanência da ocupação e os beneficiários da política pública habitacional.

"O fogo para nós é sagrado. É uma divindade. Por isso, dizemos que quem brinca com as chamas acaba se queimando. Porque quem brinca com o seu deus acaba por se queimar. Mas em apartamento não dá para fazer fogueira", ironiza Kashalpinha. Os integrantes do atual acampamento na Aldeia Maracanã estão entre os que não foram contemplados pelo Minha Casa, Minha Vida e criticam a postura de antigos líderes do movimento que trocaram a luta pela retomada do território por um lar.

Korubo usa o couro de cobra selvagem: "Fui eu mesmo quem a cacei". Foto: Bruna Prado/VICE

O Governo do Estado do Rio de Janeiro, por sua vez, ainda promete restaurar o patrimônio. A Polícia Militar mantém uma viatura próxima ao museu desativado. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Segurança (Seseg) não esclareceu como se dá o plano de policiamento para a região. A Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (Seasdh) realizou no ano passado uma audiência pública para a criação de um Conselho Estadual dos Direitos Indígenas, que ainda não foi anunciada. A mesma Seasdh informa ainda que a reestruturação da edificação não é mais de sua responsabilidade.

Em nota, a Secretaria de Estado de Cultura (SEC), encarregada de executar o projeto, confirma que avalia a possibilidade de fazer uma parceria com alguma instituição, para recuperar o prédio. A intenção é, informa a nota, implantar um "plano estratégico" e captar os recursos privados ou públicos necessários para o futuro Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas. Mas a pasta afirma que ainda não há nada oficial que possa ser divulgado.

E é olhando o céu que os descendentes de índios aguardam pelo anúncio de um patrimônio dedicado a culturas tão perseguidas.

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