Como Trainspotting transformou 'Born Slippy', do Underworld, num ícone dos anos 90

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Música

Como Trainspotting transformou 'Born Slippy', do Underworld, num ícone dos anos 90

Batemos um papo com Rick Smith do Underworld sobre a criação do hit que capturou o espírito de uma época, seu trabalho na sequência ‘T2 Trainspotting’ e sair por aí gritando ‘LAGER LAGER LAGER’!

Matéria originalmente publicada no Noisey US.

Trainspotting chegou como um colosso nos cinemas do Reino Unido. Dois anos antes de sua estreia, em 1994, o estreante diretor Danny Boyle, o roteirista John Hodge, aliados ao produtor Andrew MacDonald e ao astro Ewan McGregor fizeram algum barulho com seu thriller cômico Cova Rasa, sem saber que sua próxima obra seria uma verdadeira revolução. Com um único filme, essa turma conseguiu reviver a moribunda indústria cinematográfica britânica — não a deixando somente viva e dando seus pulos, mas também gritando feito louca, transando com qualquer um, mijando e vomitando por aí. Trainspotting era o símbolo do cool britânico, levantando os ânimos de toda uma geração.

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Adaptado da odisseia de heroína e DDA homônima de Irvine Welsh, o filme era tão sexy quanto repulsivo, pulsando com vida e morte, uma ode à juventude, sexo, amizade e música. A trilha era inseparável das imagens. Na tela, som e visão compunham uma só obra. Renton fugindo dos tiras ao som de Iggy Pop. Renton mergulhando em uma privada imunda ao som de Brian Eno. Renton tendo uma overdose ao som de Lou Reed. Já no CD, esta mixtape sem limites, rock, pop e techno se juntavam, com a mesma relevância, num diálogo que representava fielmente o que rolava nas casas noturnas e ruas. Na Grã-Bretanha de meados dos anos 90, tribos desapareciam ou se juntavam. Já não era mais necessário escolher lados: tudo era possível.

De todas as faixas, porém, uma se destacava para além dos grandes nomes envolvidos. Era "Born Slippy.NUXX", do Underworld, que servia de trilha para o clímax do filme, um pico de adrenalina, um misto de liberdade e traição, empregando synths sublimes com um batidão nervoso que representava tudo que estava acontecendo. Era algo novo. Ao passo em que Danny Boyle usou o disco Dubnobasswithmyheadman do Underworld como espécie de guia rítmico de Trainspotting, ele encontrou este remix aleatoriamente em uma loja de discos, ouviu e logo soube que precisaria fechar seu filme com aquilo. Trainspotting, disse posteriormente, era um filme sobre heroína na maior parte do tempo, mas seu ritmo se assemelhava mais ao ecstasy e "Born Slippy" dava o tom perfeito.

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Karl Hyde, do Underworld, havia escrito a letra da canção após uma noite enchendo a cara no Soho de Londres, cambaleando para fora do pub The Ship até a estação de Tottenham Court Road onde tentava pegar o metrô para casa. A canção, disse, era um clamor por socorro — os gritos de "lager lager lager" eram pura ironia autodepreciativa. "Born Slippy" estourou junto com o filme e Kurt se viu inconsolável ao perceber que a música havia se tornado um hino para a bebedeira. Com o tempo ele aceitou que a faixa deixava outras pessoas felizes e aquilo já não tinha nada a ver com ele.

T2 Trainspotting, que reúne não só o elenco como também a equipe central por trás do primeiro filme, trata disso — trata sobre como o tempo nos muda, quem já fomos, quem somos, o que nos tornamos, arrependimentos inclusos, e como lidamos com tudo isso. Ecoando abertamente o primeiro filme, é divertidíssimo, mas também uma melancólica meditação sobre idade, relacionamentos, masculinidade e como tudo isso machuca. Dessa vez, Boyle recrutou Rick Smith do Underworld para fazer a trilha do filme com músicas novas e uma versão revisitada de "Born Slippy", com um olhar mais maduro, de forma a contar outra história. Os acordes vem e vão como fantasmas, refletindo não só nos personagens e no primeiro filme, mas também numa época, lugar e também em nós.

Noisey: Há uma certa escuridão em "Born Slippy", mas também euforia. Karl falou da influência do seu positivismo na música do Underworld, letras e também nele. Ele comentou ainda que não é surpresa alguma aqueles belos acordes de "Born Slippy" serem de sua autoria já que você passou um bom tempo na igreja na infância.
Rick Smith: Isso é verdade, tem coisas bem enraizadas em mim. Hinos galeses em especial, o que cantavam na época, a simplicidade daquela harmonia, o poder da música gospel em todos os seus formatos. Quando ele fala da justaposição disso tudo creio que esteja certo, já que eu gosto da mistura de luz e treva. A luz vem das trevas e as trevas vem da luz. Com certeza isso faz parte do que rola entre Karl e eu.

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Você consegue ouvir a igreja no meio daqueles acordes e sons?
Acredito que sim, porque é uma harmonia bem simples, no caso de "Born Slippy" chega a ser ridículo. São só dois acordes que nem estão ali o tempo inteiro, não é como uma música normal, mas seu posicionamento no começo e final dos vocais parece dizer muito, o que tem um efeito nas pessoas. Uma das coisas mais belas de "NUXX" é sua simplicidade.

Creio que vocês se inspiraram em Low, de David Bowie também.
Adoro esse disco. Há álbuns como esse em que a forma como afeta ou não uma música nem importa já que são tão profundos que correm como rios por toda a sua obra. São tão presentes quanto a influência de crescer em meio à igreja em Gales.

Karl disse que "Born Slippy" é beleza envolta em escuridão, ao comentar seus problemas com a bebida e como a letra era um pedido de ajuda, mas sua abordagem não seguiu esse caminho, musicalmente falando.
Escuto as coisas de um jeito diferente, por vezes como se as palavras estivessem quebradas. É interessante juntar frases e palavras e parágrafos e ideias com música, mudando a forma como ela se apresenta. Uma palavra não é só uma palavra ao ser cantada ou quando faz parte de uma obra de poesia ou prosa. O que senti nas letras de "NUXX" foi uma energia de movimento, tempo e lugar, como uma pintura abstrata. Palavras surgindo tinham efeitos na gente. O The Ship [pub no Soho] e a Tottenham Court Road. Era uma narrativa que tinha outro significado pra mim, independentemente de onde vinha em termos emocionais ou espirituais.

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Você lembra como foi gravar "Nuxx"? Ele disse ter aparecido com as letras e ter gravado tudo num só take.
Lembro. Foi bem isso mesmo, um só take. Haviam mais vozes do que foi usado na versão final. E musicalmente falando, por mais que o groove estivesse ali, o coração da coisa, quando fizemos aquela primeira versão não havia estrutura alguma, nada de acordes, nenhuma jornada 3D em direção ao ritmo, éramos nós improvisando.

Quando você compôs os acordes?
Passados vários meses, voltei àquela faixa e pensei, como geralmente acontece, "Há algo empolgante aqui". E isso me fez querer moldá-la.

No contexto da música, Karl disse que você foi o primeiro a perguntar se ele tinha problemas com a bebida. E então você encapsulou os vocais dele nesta faixa sublime. Parece ser uma obra tocante sobre a relação de vocês.
Talvez, não cabe a mim interpretar. Há complexidades que ocorrem na criação de algo. E no final dá pra resumir se aquilo faz bem a alguém ou não. Foram bons momentos. Tinha energia vindo de tudo que é lado, por vezes as coisas surgem de lugares e momentos horríveis. Há beleza em meio aos detritos e desconstrução e inexperiência. Acho que tudo isso compõe esta música.

Você estava hesitante em ceder qualquer faixa para Danny no primeiro Trainspotting.
Com certeza. Era simples, naquela época sempre nos pediam músicas e eram usadas em cenas de violência ou ligadas a casas noturnas, sempre alguma confusão. Na época, nossa experiência em tocar ao vivo era o oposto disso. Quase sempre negávamos, mas Danny foi esperto e nos convidou para ver um trecho do filme. Após 15 minutos lhe dissemos "Pegue o que quiser, parça". A sensibilidade dele me impressionou.

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Daí a música estourou, aproximou mundos. Karl disse que, naquela época, a combinação de filme e trilha foi meio como o Woodstock britânico.
Foi um momento único. Essas coisas acontecem, esses momentos de arte em nossas vidas agem como uma espécie de pontuação, não? Uma das coisas mais maravilhosas sobre a música é como ela adquire significados por conta de seu lugar no tempo. Coisas novas são fantásticas, mas tem obras que significam tanto para nós, para mim. Não ligo para sua relevância em relação aos outros, estas apresentam memórias e sentimentos que amo na música, sobre a vida própria que ela tem e como toca as pessoas. É curioso, pois como compositores vamos ali e criamos sem ter ideia dos efeitos na vida dos outros. Por vezes é bom lembrar que o que fazemos tem propósito para alguém, sem egoísmo nenhum.

Você já esteve em boates em que o DJ botou esse som pra rolar?
Algumas vezes. Mas o mais bizarro foi quando rolou num programa matinal da Radio 1 [da BBC]. Não acreditei, parecia tão fora de contexto. "Esta música, de manhã cedo?" Foi um choque tipo "Quando o mundo mudou assim?", uma loucura. Não fazia sentido, mas não de forma desagradável. Pensei que a música estava em movimento, a cultura estava em movimento, se espalhando. Indo além de um sistema de som incrível numa boate ou um PA em alguma festa de faculdade. Foi demais! Uma faixa memorável para nós, como se tivesse saído de outro lugar que não a gente.

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Vinte anos passaram… Danny lhe enviou o roteiro de T2 antes da criação das composições?
Sim, quase caí pra trás. Chorei com algumas partes.

Por quê?
Por conta do tema — vidas e frustração. Uma bela melancolia, foi o que extraí dali. O primeiro filme foi importante para muitos. É mais que um filme ou música, há uma mensagem sobre uma época em que as pessoas colocam âncoras em suas vidas. Casamento, paixão, filhos. Terminar a faculdade, sei lá. E é fantástico mexer com isso 20 anos depois, como Danny e sua equipe fizeram, mas assusta um pouco também.

Te fez pensar em você naquele momento?
Com certeza, e de maneira muito pessoal. Conversei com alguns amigos que se sentiram da mesma forma. Quase não dá pra falar sobre porque marca tantas jornadas ao longo da vida, com família e entes queridos, de forma tão rica. Há bons pontos nisso de envelhecer. Um monte de negativos também, especialmente com relação ao corpo e suas funções, mas é ótimo poder ser grato pelo que aconteceu.

Danny mencionou algo sobre revisitar "Born Slippy"ou foi coisa sua?
Ele falou dos problemas em revisitar, inclusive com o termo. Algumas coisas não teríamos como mexer, e eu disse que não teríamos como fingir estar onde estivemos, então como expressar o momento que vivemos e quem somos agora? Papo filosófico mesmo. E então ficamos um bom tempo sem nos falar, eu apenas criava e mandava pra ele, ao longo de três meses de filmagem. Por vezes mandava coisas que eram só umas pequenas provocações mesmo.

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Os acordes de "Born Slippy" vão e vem no decorrer do filme, resultando em algo meio sinistro.
É, nunca foi algo certo, mais uma exploração que deu certo e depois não deu. Foi um filme bem desafiador pra mim ao tentar contar uma história como Danny precisava que ela fosse contada. Quando estávamos trabalhando em Frankenstein [peça de teatro de Boyle], Danny disse "Temos que nos perder na história, não?". Acho que ele sabia o quanto aquilo me afetaria. Eu meio que gosto de sumir, é meio como nossos sentidos funcionam — vemos e ouvimos coisas, e o que ouvimos afeta o que vemos. Cinema é uma articulação literal e simples disso, de como nossas vidas são. O que aconteceu é que esses ecos do passado e do filme anterior — e não só "Born Slippy" — e sua interpretação começaram a ter grande valor na narrativa.

Danny disse que sua versão de "Born Slippy" para T2 ficou incrível e que ao ouvir aqueles acordes temos uma lembrança imediata e emocionada da original.
É, essa versão ficou muito pesada ao longo do tempo. Dei sorte ao esbarrar num software que não me custou caro e rendeu uma sonoridade que adorei. Os acordes foram esticados de outra forma, o tempo foi alongado.

Como foi essa experiência pra você, emocionalmente? Retornando após 20 anos para criar algo novo?
Desafiador. Precisei trabalhar muito, foi muito tempo editando. Nunca fiz isso antes. Estar no centro de tudo quando as coisas rolam rapidamente permite que você reaja com rapidez, foi desafiador. Chegava o final do dia, ia pra casa e minha cabeça fervilhava, tanto que eu acabava voltando ao estúdio. Exigiu muito de mim, fisicamente. Não dava pra parar, estava ligadaço, estimulado e tentando acompanhar o talento ao meu redor. Pensava "vocês podem ser mais novos e velozes, mas eu sou galês e teimoso!".

E por aí vai. Quando o Underworld tocou "Born Slippy" no final do set no Alexandra Palace na última sexta foi digno de celebração, um momento até exultante.
Sem dúvidas. É o que parece mesmo, continua sendo um som que tocamos em todos os shows. Sempre me perguntam se já cansei dela e é bem estranho, mas não. Por conta da relação que o público tem com ela e toda essa energia. É como se fôssemos guias em uma viagem, mostrando o melhor que pudemos! É uma sensação maravilhosa, é ótimo fazer parte.

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Tradução: Thiago "Índio" Silva