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O trampo dos cartunistas está sendo vandalizado por grupos anti e pró-governo

Charges são alteradas sem muitos escrúpulos e, para tirar os desenhos do ar, os cartunistas têm que apelar para advogados, notificações extra-judiciais e processos — ou simplesmente deixar para lá.

Contestar o status quo e as relações sociais está no DNA do ofício de chargista, atividade que surgiu lá pelo século 19 na Europa. O artista francês Honoré Daumier (1808-1879), por exemplo, retratou o rei Luís Filipe enchendo a pança com o dinheiro do povo enquanto defecava no trono. "Gargântua" (1831) não lhe rendeu só prestígio, mas também seis meses no xilindró e uma bela multa.

Mais de dois séculos depois e após terem enfrentado a censura do governo em décadas passadas, cartunistas brasileiros encaram uma nova modalidade de infortúnio relacionado ao trabalho: desenhos plagiados e modificados à exaustação. As ilustrações com intervenções não autorizadas passaram a circular fortemente na internet após a reeleição de Dilma Rousseff (PT), em 2014.

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Um dos casos mais recentes é de Ivan Cabral, chargista do Novo Jornal, publicação de Natal (RN). Ele retratou uma manifestação pró-impeachment de Dilma, que ganhou uma variação completamente deturpada. Na obra original, os manifestantes com camisas amarelas eram dispersos com um livro de História, do qual corriam apavoradíssimos. Dias depois ele, que diz ter baseado a tira em "1964 — Golpe Midiático-Civil-Militar", publicação de Juremir Machado da Silva, reviu sua arte por aí, mas significando exatamente o oposto da original. As camisetas dos personagens foram toscamente pintadas de vermelho e, ao invés do livro, os manifestantes corriam de uma carteira de trabalho.

Cabral vasculhou a internet até achar o responsável por violação de propriedade intelectual. "Na minha leitura não foi canalhice, ele só não sabia que estava cometendo um crime de violação de direito autoral. Eu não gostei, mas após conversar vi que foi ingenuidade, ele não é um bandido", falou. O jovem em questão apagou a imagem e se retratou publicamente. O desenho adulterado, porém, continua a correr na internet, sobretudo após ter sido posto numa página falsa criada em nome da jornalista Rachel Sheherazade, com milhares de seguidores.

"Em época de debate político mais quente a coisa aumenta, sim. Nas eleições de 2014, por exemplo, vi algumas tiras minhas com texto alterado, mas é muito difícil de controlar", comentou Ricardo Coimbra, que até pouco tempo tinha até uma pasta cheinha de deturpações de seus trabalhos.

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O cartunista independente Gilmar Machado, com um blog no UOL, vê de forma passiva vários de seus desenhos criarem uma estranha vida própria. No ano passado, o blog governista Tijolaço fez um pequeno vandalismo num quadrinho em que hienas devoram uma carniça sem dó nem piedade. "Sentiremos remorso?", pergunta uma besta e a outra responde "não" pois as vítimas são "pobres". Na versão do veículo "pobres" virou "petista". Os traços e a assinatura de Gilmar, que não é ligado à partido político algum, continuaram lá. "Tenho simpatia pela esquerda e pelo PT até, mas eles não podem usar o desenho para defender uma posição que não é minha", reclamou.

O chargista também não gostou nem um pouco da edição de um desenho crítico à crise hídrica no Estado de São Paulo, que ganhou um inoportuno viés xenófobo. "Aquilo me afetou. Apesar de terem tirado a assinatura, foi uma imagem criada por mim e com os meus traços. E eu não defendo nada aquilo", disse ele, que é baiano.

Cartunista nascido na Bahia criticou a crise hidrídica e desenho virou símbolo de grupo separatista.

Nenhum dos três cartunistas procurou assistência jurídica nos casos relatados. Eles alegam que dá muita dor de cabeça ficar correndo atrás destes infortúnios. As criações, no entanto, são protegidas pela Legislação brasileira, o que deixa os criativos violadores em situação passível de punições — geralmente multas, quase nunca prisão. "O uso não autorizado de obra autoral, bem como a sua adulteração, podem ser protegidos por várias leis, a Constituição Federal, a Lei de Direitos Autorais, o Marco Civil da Internet e o Código Civil", explicou a advogada especialista em Direito do entretenimento Andrea Francez.

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A profissional contou que sempre tenta uma conciliação amigável, já que um processo desses pode se alongar por anos e o réu, uma vez condenado, pode não ter dinheiro para pagar o valor estipulado em juízo. "Sempre notifico pelo próprio lugar que o plágio ou a violação foi veiculado. Em 75% das vezes somos atendidos de pronto."

A advogada atuou recentemente a favor do cartunista Adão Iturrusgarai. Logo após o ataque aos cartunistas do Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, ele se irritou com uma tosca bandeira do Partido dos Trabalhadores enfiada no ânus de personagem criado por ele, prostrado na capa do jornal satírico, e veiculado pelo grupo contra o governo Revoltados ON LINE. "É claro que a gente fica puto, ainda mais quando é para uma causa que não apoia", falou.

Ao ter desenho alterado, Adão ameaçou até virar petista.

Neste caso, contou a advogada, bastou uma notificação extra-judicial para que a reprodução ilegal parasse de ser feita. Em outra oportunidade, Adão já tinha observado uma tirinha criada em 2000, então segundo mandato segundo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), virar numa intervenção contra Dilma. Ele apenas xingou muito no Twitter e deixou para lá. "Da próxima vez que essa escumalha do 'Partido Anti-PT' roubar um desenho meu e mudar o texto, juro que vou virar petista!", "ameaçou" de forma bem humorada.

Aliás, dar um pequeno (e justificável) chilique nas redes sociais ao se deparar com uma criação vandalizada tem sido o principal modo que os chargistas passam a borracha por cima da situação. Ir atrás dos infratores dá sempre muito trabalho, ainda mais para quem só quer desenhar.

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