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A Política da Respeitabilidade de Bill Cosby se Alinha Perfeitamente à Cultura do Estupro

Quem culpamos por isso?
Foto via o usuário wacphiladelphia do Flickr.

Em 1994, Bill Cosby deu seu discurso mais famoso sobre política da respeitabilidade num evento de gala do NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor) que celebrava o 50º aniversário da decisão no caso Brown vs. Board of Education, que permitiu que alunos negros estudassem em escolas antes exclusivamente brancas. Seu agora infame "Discurso do Bolo Inglês" era um resumo longo e exaustivo de cada clichê "dê o fora do meu gramado" conhecido pela humanidade. Mas o golpe de misericórdia é a anedota que deu o apelido à invectiva:

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"As pessoas estão levando um tiro na cabeça por um pedaço de bolo inglês! Aí todos corremos indignados: 'A polícia não devia ter atirado nele!' O que diabos ele estava fazendo com aquele bolo inglês na mão?"

Por mais implausível que pareça, Cosby está sugerindo que garotos negros que roubam bolo de uma loja estão pedindo para ter o cérebro estourado, e isso foi só a segundo pior coisa que ele disse naquele dia. A pior foi que ele provavelmente tinha drogado e estuprado pelo menos 41 mulheres.

Muito antes desse discurso e das várias alegações de estupro, Cosby era tipo um santo na minha casa. Eu assistia The Cosby Show religiosamente quando era moleque e isso teve um impacto profundo em mim. Desde o primeiro episódio, em 1984, a série apresentou uma ideia de vida negra tão perfeita, tão sedutora, que mesmo eu, um garoto negro atolado numa cidade esmagadoramente branca da Pensilvânia, senti orgulho de ser quem era.

Em vez de ser um programa sobre raça, o Cosby Show era sobre excelência negra. Ele raramente mencionava brancos. Era sobre nós, não eles. E era assim na minha casa também, eu lembro. Quando eu era garoto, só ouvi uma mensagem sobre gente branca: "Você tem que trabalhar o dobro para ser considerado a metade". Era isso. Sucinto e ameaçador.

Carreguei essa ideia comigo enquanto crescia e saía para o mundo. Mas o tiro saiu pela culatra. Em vez de me fazer trabalhar o dobro, isso me deixou duas vezes mais constrangido e com metade da confiança em mim mesmo. E se eu só conseguisse trabalhar 1,75 vezes mais? Isso seria o suficiente para não me colocarem atrás das grades ou numa caixa de pinho sem razão? Na verdade, a principal coisa que lembro de pensar sobre gente branca quando era mais novo (que em retrospecto, era um lema para o mundo dos adultos), era: Se eles não vão deixar, por que tentar?

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Esse é o problema com a política da respeitabilidade, a ideologia de que as pessoas podem superar sua opressão sistêmica melhorando seu comportamento pessoal. Isso coloca a pressão no indivíduo, ele tem que ser tão incrível que vai derrotar um sistema criado para subjugar milhões. E se ele falha no impossível, é porque não era bom o suficiente. Em essência, isso é culpar a vítima.

O outro problema com a política da respeitabilidade é que você realmente acredita que cada indivíduo precisa, sozinho, derrotar sua opressão estrutural, assim você tem zero incentivo para derrubar a opressão em primeiro lugar. E depende de nós impedir isso. E se não conseguirmos, fodeu.

Isso funciona muito bem para o opressor. E se o opressor por acaso for parte do grupo de oprimidos, isso rende um cruzamento particularmente sinistro. O sentimento é algo como "Superei a opressão sendo incrível, então não entendo qual é o seu problema". É exatamente por isso que, quando Cosby fez seu "Discurso do Bolo Inglês", a multidão de Pessoas Negras Que Fizeram Grande Coisas do NAACP apenas aplaudiu e riu. Eles não mandaram Cosby sentar sua bunda de Tio Tom na cadeira e calar aquela boca de troll racista, porque em muitos casos, o meio de vida de boa parte do público se baseava em exaltar aquele mesmo individualismo mítico de Cosby.

O pernicioso conceito por trás da noção de opressão como um problema do oprimido também alinha a política da respeitabilidade de Cosby com o elemento "ela estava pedindo" da cultura do estupro. Pensando sobre essa ligação, não pude deixar de lembrar uma gravação de standup de Cosby de 1986, "Para quem tem filhos e quem não tem, vocês vão entender". Explicando por que ele não precisava falar com seu filho do mesmo jeito que falava com as filhas sobre anticoncepcionais, ele teoriza: "É trabalho da mulher se proteger. Ela é tipo um goleiro… Você tem que impedir que os outros marquem gol em você". O público urra, a esposa dá uma bronca em Cosby e ele eventualmente conversa com o filho sobre o assunto. É uma piada. Mas diante das acusações de estupro contra ele, é de arrepiar. Ele não podia ter deixado mais claro. Uma mulher precisa se proteger. O homem não tem obrigação de controlar seu comportamento. Por mais nojento que o trecho seja, assim como o discurso no NAACP, você consegue ouvir homens e mulheres concordando com ele na gravação. Eles provavelmente aplaudiram de pé e pediram bis.

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"Uma carreira baseada na ideia de realização individual deve ser legitimamente destruída por um fracasso individual."

Cosby vem pregando o evangelho da superação pessoal à opressão sistêmica (e culpando as pessoas que não conseguem fazer isso) sua carreira inteira. Então é difícil acreditar que ele culpa as mulheres por serem jovens, bonitas e estarem sozinhas na mesma sala que ele? É difícil acreditar que ele possa justificar seu suposto comportamento pela razão, muito simples, de que a mulher não conseguiu impedir que "ele fizesse o gol"? É difícil acreditar que ele faria o que está sendo acusado de fazer com 41 mulheres, enquanto simultaneamente ensinava 40 milhões de pessoas a melhorar sua moral?

Chamar Bill Cosby de hipócrita é não entender a coisa inteira. Para que isso seja hipocrisia, você tem que acreditar que ele se apresentava como uma coisa enquanto era outra. Você tem que acreditar que ele sabia e aceitava que o que tinha feito com essas 41 mulheres era errado. Mas não temos provas para apoiar isso.

A moralização de Cosby de dia e supostos estupros à noite não era hipocrisia. Era algo muito pior. A única maneira como ele poderia ter tanto sucesso em se apresentar como uma boa pessoa é porque ele acreditava que era mesmo uma boa pessoa.

Na cabeça dele, drogar mulheres para que elas não pudessem dizer não não fazia dele um cara mau. Essa é uma ideia doentia, algo que nos horroriza. Mas não é uma crença de um homem doente. É a crença de um homem em contato com a realidade. O problema é que não existe diferença entre ser um devotado pai de família, um pilar da comunidade – e um estuprador. Nossa cultura permite que você seja as duas coisas. Aí ela te convida para discursar e receber prêmios.

Se for ou não condenado como estuprador algum dia, Bill Cosby vai morrer pobre e odiado. E parece um bom fim para ele. Uma carreira baseada na ideia de realização individual deve ser legitimamente destruída por um fracasso individual. Infelizmente, a cultura que o aplaudia e pagava para que ele fosse seu herói, mesmo quando ele se comportava como um monstro, ainda está bem viva. Quem culpamos por isso?

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Tradução: Marina Schnoor