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Música

Entrevistei o patrão da Dub Store Records

Uma das maiores lojas de música jamaicana do mundo.

Naoki Ienaga também pagou o custo para ser o patrão. Proveniente de um Japão nem por isso muito compatível com a música da Jamaica, Naoki Ienaga decidiu desafiar todas as barreiras culturais e começou por importar para o seu país discos raros, que ia comprando em sucessivas viagens até Kingston. O profundo interesse pelas raízes do reggae (ska, soca, calipso, etc.) levou-o, mais tarde, até à porta de alguns dos mais respeitáveis produtores jamaicanos. Nessas investidas, Naoki Ienaga, tal como qualquer empresário mais aventureiro, recebeu a sua dose de recusas e de cepticismo em relação ao que ambicionava: trazer para o Japão a mais rica música jamaicana e transformar isso num negócio viável. Mas Ienaga insistiu e foi até Brooklyn, em Nova Iorque, ao encontro de Sir Coxsone Dodd (um dos maiores pensadores do reggae a par do seu rival Duke Reid) para cumprir uma missão que, logo à partida, não se adivinhava fácil: tentar negociar os direitos de distribuição da gigante Studio One. Foi, aliás, dos encontros com Sir Coxsone Dodd que Ieanaga trouxe a escola necessária para que fosse possível ter no Japão uma casa de discos, que os vende, que os reedita com categoria e que ainda trata do agenciamento dos principais valores musicais da Jamaica. Ficavam, assim, consolidadas as fundações para que a Dub Store Records crescesse até ao ponto de ser hoje uma referência incontornável para alguém interessado em investir nos ritmos vindos da Jamaica (também conhecidos por riddims, o termo para o acompanhamento instrumental das canções de reggae e dancehall). O que, de início, parecia uma combinação pouco natural, transforma-se no sonho de qualquer colecionador, quando, nos lançamentos da Dub Store Records, passam a estar sobrepostas toda a riqueza dos grandes catálogos jamaicanos (Studio One, King Jammy’s, Crystal Records) e o apurado critério dos japoneses no que respeita a conceber reedições (nisso são líderes incontestáveis). O reggae e a sua face inversa dub (géneros indissociáveis a partir de certa altura) encontram, então, a excelência que merecem na Dub Store Records. Na conversa com Naoki Ienaga, cedo nos apercebemos de que a sua ligação ao reggae incide principalmente na investigação da sua génese e dos seus arquivos históricos — até porque a actualidade do género está entregue a uma série de bandas geralmente miseráveis. E essa vocação arqueológica de Ienaga leva-nos a brilhantes reedições de álbuns tão importantes como Guitar in Ernest, de Ernest Ranglin (lenda do jazz jamaicano e arranjista determinante), Calypsos Down Jamaica Way, de Count Owen and His Calypsonians ou Take It Easy, um clássico rocksteady assinado por Hopeton Lewis — “Let the Little Girl Dance” é intemporal e irresistível. Os restantes destaques da Dub Store Records serão abordados em duas paragens necessárias na entrevista com Naoki Ieanaga, o patrão da música jamaicana na Ásia, a partir de agora em discurso directo. VICE: É evidente que a Dub Store Records procura abranger a música jamaicana dos últimos 50 e tal anos, mas existe alguma era que te fascine particularmente? E até que ponto serás um geek dessa época favorita?
Naoki Ienaga: Gosto mais dos anos 60 e 70 do que do período mais tardio. Sou louco pelo início dos anos 60 e acho que conheço o ska como poucas pessoas no mundo. Como dirias que a tua ligação à Studio One evoluiu desde o início? Quais foram os momentos mais marcantes desde que a Dub Store Sound Inc. passou a ser a agência oficial da Studio One, no Japão?
Comecei este negócio do reggae através da venda de discos raros — explorava a Jamaica em busca de velhos discos, trazia-os para o Japão e vendia-os, então, para todo o mundo. Certo dia fui até aos escritórios da Studio One, em Brooklyn, para conhecer Sir Coxsone Dodd. Ele era totalmente diferente de todos os produtores jamaicanos. Tinha uma postura muito mais semelhante à de um produtor de jazz ou soul. Ele foi bondoso para comigo e, quando lhe perguntei se poderia fazer o agenciamento oficial da Studio One no Japão, ele respondeu: “Tens de ser um homem de negócios muito maior do que és nesta altura, mas estás sempre convidado a voltar quando isso acontecer.” A partir daí, passei a vender os lançamentos da Studio One em quantidades significantes e não apenas este ou aquele disco. Foi, então, que ele se tornou no principal mentor do meu negócio. Se Sir Coxsone Dodd não se tivesse envolvido na minha vida, tenho a certeza de que já estaria na bancarrota. Além de ser uma lenda incrivelmente diversa do reggae, Derrick Harriott também gere a sua própria loja. Já tiveste a oportunidade de visitá-la? Aprendeste com ele algumas lições para lidar com a Dub Store Records?
A loja de Derrick Harriott é um ponto de encontro para muitos artistas — ele está sempre lá a aproveitar a vida e em comunhão com montes de gente. É um dos mais amigáveis produtores jamaicanos que conheço. Também me ensinou muita coisa, mas falámos mais sobre a situação actual de Kingston. Por favor, visita a loja dele quando fores à Jamaica. Vais perceber do que falo. Derrick Harriott é, certamente, uma figura central da Crystal Records. Ainda existe muito para cavar no catálogo da Crystal e lançar na Dub Store?
Acho que tratei muito bem do catálogo, mas ainda me interessa explorar os out-takes e material inédito do arquivo de Derrick Harriott. A modesta fama internacional de um figurão como Derrick Harriott só mostra como ainda hoje são muitos os notáveis do reggae com o seu nome abafado pela popularidade impressionante de Bob Marley. Em todo o caso, o legado e as qualidades várias de Derrick Harriott não escaparam ao pente fino da Dub Store Records, que tem vindo gradualmente a reeditar muitos dos singles da Crystal Records — na qual Harriott era, naturalmente, o produtor residente. Derrick Harriott não só produzia, como também cantava (foi, aliás, pioneiro em acumular de ambas as funções) e o alcance das suas melodias é precisamente o que faz de “The Loser” um daqueles temas reggae que será apreciado até ao fim dos dias (e adaptado vezes sem conta também). Enquanto produtor habitual dos Chosen Few, Derrick Harriott conseguiu também fundir os recursos do reggae e do funk numa só ciência cheia de groove que terá em “Do Your Thing” um dos seus expoentes máximos (reparem em como os sopros e a guitarra psicadélica de fundo transcendem o reggae). Num registo semelhante, ainda que muito mais frontal, “Am I Black Enough” é outra malha incontornável dos Chosen Few. O que tens feito pela redescoberta do trabalho de Kiddus I é de valor também. Embora ele seja uma verdadeira força do roots reggae, diria que é escasso o público europeu que o reconhece. Isto também acontece no Japão? Esta recuperação de Kiddus I na Dub Store Records surpreendeu algumas pessoas que pouco sabem sobre ele?
As pessoas conheciam Kiddus I somente do filme Rockers, porque ele era um dos principais dinamizadores do meio e nem tanto um rosto da frente. Conheci o Kiddus I nos anos 90: ele estava a falar de política e pareceu-me um tipo verdadeiramente duro. Ofereci-me para recuperar todo o seu arquivo, de modo a ir revelando a sua carreira musical aos poucos. Ele começou por adoptar uma posição bastante protectora em relação ao material, mas tornámo-nos bons amigos e, a partir de certa altura, estávamos em total sintonia. Viajei até casa de alguns amigos seus como os Inner Circle, na Florida, ou os Matumbi, em Londres, de modo a encontrar as suas gravações. Nunca esperei que tivesse tantas canções por lançar. É um tipo bastante interessante. Alguma história engraçada que possas contar do tempo partilhado com Kiddus I?
São tantas as histórias, mas gosto mesmo é da maneira como conduz. Vi-o a guiar um Beetle Volkswagen dos anos 70. Acho que chegou a ter mais de 50 Beetles durante toda a sua vida. Parecem sempre um monte de lata, mas o gajo guia-os como se fosse o Steve McQueen. Que personagem cheio de talento… O que podemos esperar das compilações Jah Power, Jah Glory 1979-1982 e Universal Messenger 1983-2006, que estão agora a ser preparadas?
Montes de coisas inéditas, mas algumas delas já foram lançadas em 12 polegadas. A explicação para o estatuto relativamente discreto de Kiddus I resulta também da falta de interesse do próprio em manter uma carreira através da regularidade que isso implica. Frank “Kiddus I” Dowding é, além disso e tal como indiciado pelo testemunho de Ienaga, uma espécie de cantor de roots reggae sem merdas. Ou seja, as suas canções são politicamente conscientes e invocam os símbolos do Rastafarianismo — ao qual se converteu desde cedo — sem a repetição panfletária dos clichés de sempre (“Jah!”, “Bless” e afins). Graduation in Zion 1978-1980, a compilação exclusiva da Dub Store Records, abrange um período tão fértil como convincente no activo de Kiddus I. “Too Fat” (uma produção do cientista Lee Perry), “Security in the Streets”, “Fire Burn” ou “Give I Strength” são clássicos de Kiddus I por descobrir na compilação ou nas versões extensas da série de 12 polegadas que a Dub Store Records dedica ao Rasta. Em que ponto está o desenvolvimento daquele álbum instrumental de reggae que planeavam lançar em conjunto com a PK Records? É mais um daqueles discos fora de série que andam por aí perdidos e com pouquíssima informação associada?
Tentámos levar isso avante e chegámos até a ter um single de antecipação, mas o projecto acabou por ser descontinuado. Era insustentável falar com cada um dos produtores para ter a licença de uma ou duas faixas apenas. Existem algumas malhas da King Jammy’s que te pareçam recomendações obrigatórias?
São mais do que muitas as excelentes canções gravadas no estúdio de King Jammy, mas as melhores, talvez, serão os êxitos surgidos no início da era digital, como é o caso da essencial “Sleng Teng”. Existem muitas faixas raras disponíveis para ouvir actualmente, mas neste caso recomendaria mesmo os êxitos, que o foram com toda a justiça. Qual é a grande autoridade da música jamaicana a viver hoje em dia no Japão?
Não existe uma “grande autoridade”. Cada um tem o seu papel. Pelo que sei acerca das lojas de discos, parece que há sempre aquele espertalhão que insiste em comprar um objecto vintage (seja um poster ou um disco ultra-raro), que faz parte da colecção privada da loja e que não está à venda. Isso já aconteceu na tua loja? Que ideia tens dos colecionadores?
Juntar coleccionáveis é interessante e amealhar discos raros pode ser mais aditivo do que uma droga pesada. As pessoas que lidam com esses objectos raros, amam-nos mais do que amam os próprios familiares e é por isso que assumem uma parte tão importante das suas vidas. Muitas vezes guardam os mais desejados discos sem mostrar a ninguém. É demasiado perigoso exibir determinados discos impossíveis de encontrar perante colecionadores fanáticos. Alguma cena favorita do filme The Harder They Come?
Gosto da cena inicial, com o autocarro a chegar à baixa de Kingston, que ainda hoje continua igual. Não sei ao certo quais são as políticas do Japão a este respeito, mas quais são os melhores lugares em Tóquio para ouvir excelente dub e fumar uma erva?
É possível encontrar óptimo dub em alguns lugares ocasionalmente, mas isso não é muito comum para o público japonês. A maioria dos eventos são festas de dancehall com um artista japonês a tocar, o que pode ser muito interessante para o pessoal da Europa. É um espectáculo distinto. Não vês ninguém a fumar erva em público no Japão. Digamos apenas que isso pode dar bronca…