FYI.

This story is over 5 years old.

Noticias

Os Libaneses Estão Matando Uns aos Outros Por Causa da Síria

A maioria dos confrontos acontece entre as milícias sunitas pró-revolução e forças do distrito pró-Assad de Jabal Mohsen.

Combatentes na Brigada Firuq de Souq al-Qmar. Eles me disseram que a guerra nunca vai acabar e que estão orgulhosos de lutar por Tabbaneh. 

Trípoli, a segunda maior cidade do Líbano, é conhecida principalmente por sua rica história e arquitetura, pelos doces, pelo fato de não ser a Trípoli da Líbia e — mais recentemente — por surtos de conflitos sectários. O destino ideal para quem quer escapar da rotina tendo uma semana de violência e baklava. Desde o começo da revolução na Síria, batalhas violentas estouraram em várias partes da cidade. A maioria dos confrontos acontece entre as milícias sunitas pró-revolução e forças do distrito pró-Assad de Jabal Mohsen.

Publicidade

Como a Síria fica a poucos quilômetros de Trípoli, milhares de refugiados sírios de vários grupos étnicos e religiosos se espalharam por toda a fronteira do Líbano em busca de segurança, o que começou a desestabilizar ainda mais a situação aqui. Trata-se de um país que já oscilava constantemente na ponta da faca de conflitos sectários e, depois de 15 anos de guerra civil que deixou centenas de milhares de mortos, o Líbano conhece os problemas da Síria bem até demais.

De fora, o Líbano pode parecer um país estável e funcional. Mas, na realidade, o estado é profundamente dividido e as feridas do caos da guerra civil ainda estão abertas na psique do povo libanês. Ex-chefes militares — muitos dos quais ainda mantêm visões racistas e inflamatórias — são agora líderes políticos e religiosos, e ainda há uma profunda desconfiança entre muitas das 18 seitas religiosas reconhecidas do país. Conflitos armados entre comunidades diferentes viraram lugar-comum durante a última década, e os assassinatos brutais de figuras públicas incineraram qualquer noção que o Líbano tinha dos princípios de uma democracia funcional.

Funeral sunita em Trípoli de um dos combatentes mortos na Síria. 

Os distritos de Bab al-Tabbaneh e Jabal Mohsen são vizinhos. As comunidades ali se enfrentam há gerações, e a rivalidade começou antes mesmo do começo da guerra civil libanesa no começo de 1975. Os alauítas de Jabal Mohsen são defensores firmes de Bashar al-Assad, o homem que eles veem como o líder de sua comunidade. Seus vizinhos principalmente sunitas de Bab al-Tabbaneh e a maior parte de Trípoli não compartilham desse entusiasmo.

Publicidade

Numa rodada recente de combates, 17 pessoas foram mortas, incluindo mulheres, crianças e idosos. A violência começou depois que notícias se espalharam sobre 20 combatentes sunitas do norte do Líbano que haviam cruzado a fronteira para lutar contra as forças de Assad, só para serem mortos logo em seguida numa emboscada.

Vídeos foram divulgados nos quais os corpos desses homens eram supostamente esfaqueados pelas forças do regime, desencadeando reações violentas da comunidade sunita de Trípoli. Os conflitos começaram entre os alauítas de Jabal Mohsen e os sunitas de Bab al-Tabbaneh, com granadas lançadas por foguetes e tiroteios de metralhadora por toda a região enquanto os milicianos dos dois lados se enfrentavam.

Uma casa destruída em Jabal Mohsen.

Andando pela área, um dos combatentes de Tabbaneh se apresentou como Sheikh Shadi e disse que vinha lutando contra a população alauíta de Jabal Mohsen há anos. Cada área de Tabbaneh é controlada por milícias separadas que geralmente lutam juntas, mas não dividem uma liderança em comum. Muitos dos combatentes nos batalhões de Shadi disseram que os confrontos vêm acontecendo há anos e que não imaginam o conflito acabando. Muitos também disseram que os combatentes mortos do outro lado da fronteira na Síria são “como nossos irmãos” e que “o conflito deles é o nosso conflito”.

É importante notar que ambas as áreas são incrivelmente empobrecidas. A maioria das famílias vive abaixo da linha da pobreza, com quase nenhum acesso à educação, e os homens envolvidos nos conflitos são jovens — frequentemente menores de 17 anos —, muitos deles não compreendem as implicações de suas ações. Garotos em ciclomotores passam em meio a tiros de metralhadora e cartazes de jovens “mártires” durante os confrontos para entregar sacolas plásticas cheias de munição e comida para seus irmãos mais velhos e amigos nas linhas de frente.

Publicidade

Dr. Abdullatif Saidi.

Conhecemos um médico do hospital público de Trípoli chamado Dr. Abdullatif, que vivia em Riva — território bem no meio dos conflitos. O doutor Saidi me mostrou o apartamento todo perfurado por balas que ele divide com a esposa e os dois filhos.

“Todo mês temos uma batalha aqui, todo mês um novo problema”, ele disse. “A guerra entre sunitas e alauítas, a guerra entre Jabal Mohsen e Tabbaneh.”

Ele diz que só vê a situação piorar: “Temos muitos feridos, muitas mortes; 15 mortos este mês e 100 feridos. Os combatentes são jovens e não sabem nem por que estão brigando. Eles veem isso como autoproteção. Cada vizinhança vê a outra atirando contra ela, então atira de volta. Não é nada além disso”.

Chegar a Jabal Mohsen foi quase uma experiência de outro mundo. Não há muita coisa para distinguir os bairros rivais — os dois são profundamente pobres e apresentam as cicatrizes da luta intensa —, no entanto, há cartazes e murais de Bashar al-Assad por toda parte, pendurados entre as barreiras precárias armadas para as lutas. É como andar por uma mini Síria, isolada da Trípoli cada vez mais antirregime apesar de estar bem no coração da cidade. Outra diferença é que as pessoas de Jabal Mohsen estavam mais ansiosas para falar com a gente e ter suas fotos tiradas ao lado dos cartazes de Assad, os homens que ele chamam de “al-Ra'ees”, “o Presidente”.

A praça entre Riva e Jabal Mohsen, que se tornou um campo de batalha de metralhadores e lançadores de foguete entre os dois distritos. 

Publicidade

Um homem com duas lágrimas tatuadas embaixo do olho direito veio mancando até nós e recontou a história do como foi atingido na perna durante uma luta, mostrando orgulhosamente sua cicatriz de batalha. Apesar do fato de os moradores do distrito dormirem amontoados num único cômodo rezando para que um foguete não atinja suas casas, os jovens envolvidos no combate pareciam completamente alheios aos estragos que estavam causando em suas comunidades.

Chegamos numa pequena clínica no centro da cidade, que nos disseram ser a única estrutura médica em Jabal Mohsen e que, sozinha, tinha que tratar dos 60 mil residentes do distrito. Lá encontramos Mohammed, que trabalha como diretor assistente da clínica.

“Não durmo há três dias”, ele disse. “Os confrontos começam principalmente quando temos notícias sobre pessoas mortas em Tal Kalakh na Síria. Aí começam os tiroteios, e mesmo que eles não queiram acertar a gente, somos atingidos porque estamos num terreno alto. Notificamos o exército de que estamos sob ataque, e o exército não faz nada substancial. Seis pessoas daqui morreram nos últimos dias — três adultos e três crianças, incluindo um bebê de três meses.”

“Aparecemos na TV declarando que não temos nada a fazer quanto às mortes de libaneses na Síria e que não somos nós que estamos matando eles. Ninguém ouviu. Ninguém pode controlar isso, nem mesmo Bashar al-Assad. Se meu irmão é ferido, eu definitivamente tenho que me enfurecer e começar a atirar.”

Publicidade

Escombros em Riva, Trípoli. 

Diferente dos grupos fragmentados de Bab al-Tabbaneh e áreas próximas, Jabal Mohsen é uma comunidade unida, com todos os combatentes obedecendo a mesma liderança. Rifaat Eid, chefe do Partido Democrático Árabe, é seu representante e um dos aliados mais fiéis de Assad dentro do Líbano.

“Rifaat deu ordens para aumentar a agressividade contra Tabbaneh. O exército percebeu isso, então se mobilizou e, quando o exército se mobiliza, todo mundo volta para casa”, me disse Mohammed. “Por isso acreditamos que o exército está aqui para nos proteger, porque somos uma gota e ele é o oceano.”

Apesar do fato de estar falando com o diretor assistente do hospital que também parecia estar pesadamente envolvido nos conflitos, o que indiretamente continuava trazendo mais pacientes para ele, simpatizei com Mohammed. Os alauítas de Jabal Mohsen têm visões muito perturbadoras sobre o regime sírio e a revolução, no entanto, eles também são uma pequena comunidade fechada numa área onde não existe nada além de hostilidade contra eles.

“Temos orgulho e sabemos que Bashar al-Assad vai vencer, porque sabemos o que eles estão fazendo”, ele disse, parecendo não saber que o regime sírio está cada vez mais isolado e desesperado desde o começo da revolução. “Se você quer um furo, vá para as orações de sexta-feira pela área e ouça o que eles têm a dizer sobre os alauítas. Eles dizem que você pode estuprar mulheres e crianças alauítas.”

Publicidade

Tentei pressionar o homem em relação às notícias de massacres perpetrados pelos homens de Assad, o que ele rejeitou imediatamente como ações de agressores estrangeiros ou de fundamentalistas tentando derrubar o regime. Então perguntei sobre os bombardeios em massa contra populações civis e finalmente achei uma brecha no seu 100% de apoio a Assad. “Não concordamos com isso”, ele disse. “Mas continuamos com o regime porque as pessoas também estão atirando foguetes e morteiros contra nós. A Turquia está lutando dentro da Síria com o Exército Livre da Síria, e o Irã luta com o regime. É como a guerra libanesa. É uma guerra mundial.”

Mais combatentes de Tabbaneh.

Mais tarde conheci Nour Eid, o irmão de Rifaat, uma figura altamente importante na comunidade e diretor geral da clínica de Mohammed. Nossa conversa foi muito mais conturbada do que a que tive com Mohammed. De novo, encontrei um homem muito agradável que insistia que a maioria dos alauítas de Jabal Mohsen queriam viver em paz com os vizinhos e que eles são as vítimas da situação (o que foi o mesmo que ouvi das pessoas de Tabbaneh).

Nour e eu concordamos em muitos pontos — ele disse que a religião é “o ópio do povo”, atribuindo essa citação a um velho provérbio árabe e não a Karl Marx, e ele culpava o fundamentalismo por muitos dos problemas do mundo árabe. “Os líderes árabes continuam vivendo na era dos dinossauros, tudo o que importa para eles é sexo e vinho!”

Publicidade

Jovens fugindo dos tiros em Trípoli. 

Eu não queria ir embora sem pressioná-lo até uma grande verdade sobre o que estava acontecendo na Síria. Seu apoio a Assad era ainda mais forte e ele se recusou a aceitar qualquer uma das histórias de massacres. No entanto, depois de pressioná-lo sobre a destruição abjeta causada pela força aérea de Assad, ele finalmente me deu mais alguns insights sobre sua mentalidade.

“Você conhece a história de Ló?”, ele me perguntou. “Ló perguntou a Deus por que ele tinha matado as pessoas de Sodoma e Gomorra, incluindo mulheres e crianças inocentes. Deus o jogou no chão e fez um exército de formigas subir pelo corpo dele. Ao seu comando, Deus fez uma das formigas picar Ló. Ló deu um tapa no braço e matou muitas formigas e Deus perguntou por que ele tinha matado tantas formigas quando apenas uma tinha picado seu braço.”

Eu disse que aquela era uma visão profundamente perturbadora — que era a mesma justificativa que os israelitas usam para matar civis palestinos. Ele concordou, e a moralidade daquilo que ele tinha acabado de dizer não pareceu perturbá-lo, apesar de estar considerando a vida de milhares de civis como simples efeito colateral. O que mais me impressionou sobre Nour e Mohammed não foi o ponto de vista profundamente equivocado deles e suas visões delirantes do regime, nem a recusa em aceitar a realidade ou a reticência sobre a morte de inocentes, mas sim a aparente bondade e simpatia dos dois. É difícil entender palavras de violência proferidas por homens aparentemente tão amáveis.

A loucura de toda a situação se tornou flagrante quando chegamos à fronteira de Jabal Mohsen e Tabbaneh. Só uma estreita escadaria separava as duas comunidades, e no final da escadaria ficava uma escola primária no coração do fogo cruzado. A escola estava do lado de Tabbaneh e estava cheia de bandeiras e cartazes políticos. A doutrinação começa muito cedo no Líbano. Crianças dos dois lados são ensinadas a odiar as pessoas que vivem a alguns metros de distância, mas a verdadeira tragédia disso é que o ciclo perpétuo de ódio não mostra nenhum sinal de estar diminuindo.

Siga o Oz (@OzKaterji) e o Alex (@alexkpotter) no Twitter.