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Entrevista - Lourenço Mutarelli

Se você não conhece a obra de Lourenço Mutarelli, vamos te contar mais ou menos qual é a do cara. Ele começou sua carreira fazendo quadrinhos pouco convencionais, com traço perturbador e histórias incômodas.

Se você não conhece a obra de Lourenço Mutarelli, vamos te contar mais ou menos qual é a do cara. Ele começou sua carreira fazendo quadrinhos pouco convencionais, com traço perturbador e histórias incômodas – ganhou vários prêmios por isso. Vale fuçar sebos atrás da revista Animal, melhor título de HQs que o Brasil já teve, e onde ele publicava uma página regularmente. Sua estréia, nos zines Over-12 e Solúvel, sobre os quais ele fala na entrevista a seguir, duvidamos que você encontre (as tiragens foram de 500 exemplares), mas se achar, escaneia e manda pra gente, por favor!

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Bom, após o sucesso da adaptação de seu livro O Cheiro do Ralo para o cinema, ele decidiu abandonar os quadrinhos. Passou a se dedicar exclusivamente à literatura e começou a escrever uma obra mais insana que a outra até ser descoberto pela Cia das Letras. A editora lançou A Arte de Fazer Efeito Sem Causa, Miguel e os Demônios e relançou O Natimorto, que também virou filme, desta vez pelas mãos de Paulo Machline e estrelado pelo próprio Mutarelli. Recentemente, Mutarelli voltou aos quadrinhos com uma série de cartuns semanais para o Estadão e promete um novo álbum para 2011. Ele falou um pouco sobre esses novos projetos em sua própria casa, onde fomos atacados por gatos e bebemos MUITO café!

Vice: Você sempre faz apologia ao cigarro em seus trabalhos. Todos os seus personagens principais fumam (exceto nas peças de teatro). Qual o papel do cigarro na sua obra?
Mutarelli: Fumar faz parte da minha vida, eu brinco às vezes de que eu existo pra fumar, pois acordo pensando nisso. Mas hoje em dia, como a crítica tá pesando demais em cima disso, percebi que meus desenhos não têm mais tanto cigarro. Mesmo antes das leis, o pessoal tava pegando muito pesado com os fumantes. Uma vez, veio a Folha fazer uma entrevista comigo, fizeram umas fotos, mas tiveram que voltar no dia seguinte pra refazer tudo, pois tinha um cigarro aparecendo ao fundo de uma das fotografias. O pessoal exagera, tiraram até um outdoor do Tom Jobim com um charuto de perto de uma escola. Até o cartaz do filme da Coco Chanel, que no mundo todo mostra a Audrey Tautou com um cigarro na mão, aqui no Brasil tá com uma caneta que eles colocaram no Photoshop!

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Você trabalha com quadrinhos, cinema, literatura, teatro e até mesmo como ator e é coerente em todas essas atividades. Como você consegue transitar por áreas diferentes e manter o estilo?
Acho que tem a ver com o processo criativo, a origem de onde eu bebo minhas inspirações. Por mais que eu pegue referências externas pra escrever alguma coisa diferente, acabo trazendo isso para o meu próprio universo – principalmente para impressões da minha infância, que foi pesadona. E porque meu trabalho é sempre muito verdadeiro, não tem como fugir de mim.

E agora que você tem um editor, como é a sua relação com ele?
Tem sido muito boa, pois consegui me impor. No começo, não fazia isso e sempre tinha alguma coisa que eu não concordava e ficava um anticlímax. Hoje em dia, estou muito afinado com ele, pois o trabalho do editor é como o de um montador de filmes – vamos interromper um capítulo aqui e passar essa parte pra cá. Esse é um processo menos febril de fazer as coisas. Voltar ao texto depois de um tempo traz um amadurecimento pro trabalho.

Mas não teve um trabalho em que essa relação se tornou quase impossível?
Acho que foi um livro que não saiu ainda, mas tá previsto só pro ano que vem: Amores Expressos – de viagens. Tive muito problema, eu e o editor discordamos muito e até hoje não estou certo do resultado. Eu estava inseguro, pois foi quando vivi meu primeiro bloqueio criativo e recebi um critica pesada do livro A Arte de Fazer Efeitos Sem Causa.

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Essa crítica tem alguma relação com aquelas pessoas que tinham preconceito por você ter começado nos quadrinhos?
Exatamente, era um cara que odiava quadrinhos, um dos críticos da Unicamp. Ele falava que o meu livro era um quadrinho ruim e ficava atacando muito as HQs, mas o Arte não tem nada a ver com quadrinhos e mesmo que tivesse era outra coisa. E o engraçado é que eu tava vendo os cálculos e tinha cinco anos que não fazia quadrinhos. Eu precisava reapresentar o meu trabalho com quadrinhos, pois como eu passei para uma editora grande tem muita gente que não conhece os meus quadrinhos. Inclusive porque estou com um problema com a Devir, pois eles seguraram os direitos das obras que publiquei por lá e elas estão sumindo.

Por sinal, as duas partes de A Soma de Tudo já viraram raridade.
Agora estão sumindo O Dobro do Cinco e O Rei do Ponto também, mas só porque foram reeditados e as duas últimas partes não. A Companhia quer publicar isso em um volume só, com as quatro partes. Mas não tá rolando, tá difícil a negociação com a Devir.

Mas o que aconteceu? Você não tinha um contrato de cessão de direitos?
Não tem contrato, esse é o problema. Tem que jogar meio pesado. Eu assinava um recibo todo o mês do que eles me pagavam, que não era nada de mais. Eu trabalhei lá por mais de 10 anos, fazendo ilustrações pra livros de RPG e os álbuns. Tenho feito ilustrações muito esporadicamente, eu parei por um tempo, e só pego quando é algo que me interessa. Eles comparam o quanto recebi durante 10 anos com o quanto meu trabalho vendeu. A Devir fala que devo uma puta grana para eles e que só liberam os diretos das minhas obras quando eu pagar. Esse é o preço, eu saí de lá e devo 70 mil reais pra eles. Isso foi o que eu ganhei por fazer quadrinhos.

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Como é pra você interpretar o seu próprio texto, como fez na adaptação para o cinema de O Natimorto? Qual a diferença entre ver alguém fazendo isso (como o Selton Melo em O Cheiro do Ralo) e você mesmo estar ali no papel?
Não era o personagem que eu imaginava e sim o que o diretor imaginou, e tem diferenças. O livro também foi adaptado pelo Mário Bortolotto para o teatro e manteve o humor, mas o diretor Paulo Machline optou por suprimir isso no filme. O humor está lá, mas não dá tempo de você absorver.

Eu estava relendo o Sequelas, que tem quadrinhos do início da sua carreira, como o material que você publicou pela editora Pro-C do Marcatti. Numa das introduções você dizia que tinha grande influência do romantismo. Isso continua te influenciando?
Era o romantismo mais Lord Byron, essa coisa mais sombria, e caminhou pra uma coisa mais gótica, principalmente no traço de Transubstanciação, Desgraçados… Eu gostava da temática, do tipo de atmosfera e da melancolia. Fui influenciado por caras como Augusto dos Anjos, Baudelaire, Álvares de Azevedo - aquele tipo de leitura que pega o adolescente problemático, naquela fase sombria da pessoa.

Então, agora, um pergunta clichê! Quais as suas influencias atuais de quadrinhos, cinema e literatura?
Alguns autores que sempre me nortearam foram Kafka, Dostoiévsky, Augusto dos Anjos e Machado de Assis. Foram uma grande influência pessoal e do meu trabalho. Felizmente, continuamos lendo e isso vai mudando. Na época do Arte, eu estava completamente influenciado pelo William Burroughs, acabei mergulhando na obra dele de forma muito intensa. Eu não tinha nenhum livro meu, mas estou comprando alguns por que estou sentindo vontade de me influenciar em mim mesmo. Estou sentindo que me distanciei demais de mim mesmo e vou tentar pegar uma influência minha.

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Eu adoro o Lynch e os filmes dos Irmãos Cohen que são os que mais me levam pro cinema. Só não gosto muito dos trabalhos deles que são metidos a engraçados, mas gosto muito de Queime Depois de Ler e uma comédia romântica deles.

Voltei a ler quadrinhos quando a companhia me mandou suas publicações, como Chinês Americano, Breakdowns, Retalhos… fazia muito tempo que eu não lia quadrinhos. O que mais me impressionou no Retalhos é o cara precisar de tantas páginas pra contar uma história tão simples, deve ser por que esse quadrinho é mais feminino.

Percebemos também que A Arte de Fazer Efeito Sem Causa, além de uma clara influência de William Burroughs, é norteada pela tomada da loucura que existe na obra de H. P. Lovecraft.
Teve uma época que eu li muito Lovecraft e outros escritores do gênero, mas eles levam muito para o terror. Eu prefiro usar uma ambigüidade de terror no meu trabalho, só não deixo muito óbvio como muitos gostam. Esse o livro pegou terceiro lugar no Portugal Telecom (prêmio que paga uma bolada pra grandes obras).

Parece que seus trabalhos estão ganhando uma boa evidência no cinema, você sabe explicar esse fenômeno?
Eu trabalho pra RT Features, que é uma empresa que banca o desenvolvimento de alguns trabalhos e ficam com os diretos de audiovisual (cinema e tal). Ou seja, existe uma tendência maior de alguns livros virarem filmes e me garante uma tranqüilidade financeira. Esse quadrinho que vou fazer, eles estão bancando e a Cia publica.

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E essas tiras que você está produzindo para o Estadão?
Eu estava negociando a produção dessas tiras há tempos e a única imposição que fiz foi para que o jornal me desse um espaço para publicar gente nova que nunca publicou e eles aceitaram. Criaram uma curadoria e vão criar um blog para o pessoal mandar o material. Vamos escolher os cinco melhores e vamos abrir um espaço para o que receber mais votos – nem que seja para publicar por uma semana. Tem um pessoal que monopoliza o espaço, que são bons ninguém discute, mas eles podiam abrir espaço pros mais jovens. Eu acho que dá para ajudar o resto do pessoal. Quando eu comecei tinha um monte de revistas em banca e já era difícil conseguir um espaço para publicar – agora que não temos revistas, eu quero ajudar as pessoas.

Qual o seu grau de envolvimento nas adaptações do seu trabalho?
Basicamente nenhum. Em O Cheiro do Ralo, eles me convidaram pra participar do roteiro, mas eu queria ganhar um dinheiro fácil que nunca tinha ganhado na vida. Eles que adaptassem e fizessem o que quisessem. No Natimorto, eu estava mais perto por que eu tinha um diálogo mais próximo com o diretor Paulo Machline. Às vezes, eu comentei o roteiro porque eu gostei, mas apenas fiz alguns comentários positivos. Por sinal, esse último filme deve sair em circuito comercial, mas vai ficar no máximo uma semana em cartaz. Outro que pode ser adaptado é “A Arte”, mas não sei se está andando. Havia algum interesse. Um produtor falou que o filme tinha que ser meio naturalista para dar um efeito legal quando chegasse a loucura do protagonista. Pra mim, isso faz sentido. Pois nas duas adaptações que eu tive, houve uma preocupação com o figurino e a ambientação que levam o expectador para outro lugar que não é a realidade. O Cheiro do Ralo desde o começo, por idéia do Heitor, foi feito para ser mais aberto ao público e não muito fiel à atmosfera do livro. O filme foi muito bem e me deu muito retorno, pode ser que tenha feito todo esse sucesso graças a liberdade que dei para os caras. O bom é que me abriu portas pra escrever pro teatro, pra atuar,o contato com a Cia das Letras e aumentou meu interesse de escrever livros. Porque pra fazer quadrinhos tenho que entrar lá (no quartinho onde ele trabalha e ninguém pode entrar, nem mesmo para limpar) e trabalhar no mínimo 10 horas por dia, mas pra escrever faço pela manhã e de tarde posso fazer outras coisas. Ou seja, posso viver.

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Será que a adaptação da HQ Dobro do Cinco vai sair um dia? Depois que saiu o trailer, a galera ficou enlouquecida pra ver essa história na telona, mas parece que é impossível.
Sim, ele tá engavetado. A idéia inicial era fazer um série para TV a cabo, mas a HBO e a Fox não curtiram por achar muito bizarro. Virou a idéia de fazer um longa, porém é muito caro. Acho que uma hora pode acontecer, mas nesse momento tá engavetado. E olha que o trailer não tá inteiro, eles não botaram as partes que estavam em 3D, pois o Rafael Grampá fez o conceito visual das ruas igual ao meu desenho, sem ponto de fuga, é uma coisa linda, pois é hiper realista, só que tem um caos ali. Eles acham que não tá pronto ainda e resolveram não colocar essa sequência inicial que mostra o escritório do Diomédes e o carro dele, tudo em 3D.

Vamos falar um pouco sobre Jesus Kid, que é um livro sobre um autor convidado pra escrever um roteiro, mas acaba escrevendo a história de como teve uma crise pra escrever esse roteiro. Este livro daria uma ótima adaptação pro cinema, mas é engraçado como não combina com o resto de sua obra.
Foi uma encomenda do Heitor Dahlia, que queria que eu escrevesse um roteiro pra um filme de baixo orçamento. Ele deu um argumento: a história de um escritor em crise baseada nos filmes Barton Fink e Adaptação. Falei que ia fazer como um romance e depois alguém adapta, pois tenho muita dificuldade de escrever roteiro, por que é muito técnico. O Heitor me ligava todo dia me pedindo mais alguma coisa e eu usava isso nas histórias. Foi muito prazeroso e divertido de fazer - e rápido. Teve um momento em que ele me ligou e falou: “eu estou pensando em usar o Selton nesse filme e ele é garoto propaganda da Elma Chips não tem como colocar umas batatinhas no meio do livro?” Eu começava a rir e colocava isso no livro. “Talvez, a gente consiga filmar num hotel que o cara não vai cobrar a locação e o filho do cara é halterofilista, não dá pra encaixar um halterofilista na história.” Foi nesse momento que estourou Cidade de Deus e ele falou: “não tem esse elemento social e de favela, não dá pra colocar?” E eu colocava e ia brincando com essas intromissões absurdas. Eu tinha muito desentendimento com o Heitor e lavei muita roupa suja com essa obra, mas ele acabou rachando o bico. Ele sabia que eu tava aproveitando tudo aquilo enquanto ia escrevendo, pois ele lia as prévias.

Falam que você era praticamente um beatnik e vomitava livros em menos de um mês. Isso é verdade?
Escrever Jesus Kid foi muito rápido, mas é a média de tempo que eu usava antigamente pra escrever meus primeiros livros que era de quinze dias. Só que não consigo mais fazer isso. O Natimorto, eu tinha umas 10 páginas engavetadas, ai fui convidado pra participar de uma coleção e levei 15 dias pra finalizar. O Cheiro do Ralo levou cinco dias pra ser escrito e mais 10 pra arrumar. Minha primeira peça foi escrita em 15 dias também. Depois disso, eu levo muitos meses agora. A Arte levei muito tempo e esse último que terminei agora levou um tempo bem maior. Você começa a se repetir se não tem um distanciamento, um cuidado. Então comecei a escrever aos poucos e voltar ao texto, preciso de mais tempo agora.

Não é querendo diminuir o livro, isso é um elogio, mas O Miguel e os Demônios é uma pornochanchada apocalíptica. Confere?
Esse também foi encomenda. A mesma coisa que o Jesus Kid, foi pedido um roteiro para um filme de baixo orçamento sobre um policial que se apaixonava por um travesti. Mas quando ele falou na hora eu lembrei de Traídos pelo Desejo, que é um filme bem legal. Quando vi Traídos pela primeira vez, eu não percebi que a “mina” era um traveco! Eu caí na do filme, pois o personagem é muito feminino. Pra mim foi uma surpresa. Sem falar que o ator Christopher Ryan é muito bom também.

Li uma entrevista em que você falava da influência da sua infância, família e do seu pai no seu trabalho. Pode falar um pouco sobre isso?
Aí vem a fonte da minha criatividade. Querendo ou não, eu volto sempre pra minha infância muito sombria que é da onde flui o que eu sou e o meu trabalho. Meu filho me mudou bastante e tivemos uma ótima relação na infância dele. Agora, ele tá na fase do distanciamento dos pais que é natural da adolescência. O interessante é que você vai por um caminho e começa a perceber que é o mesmo caminho que seu pai trilhou. Ele tava ouvindo algumas músicas que eram regravações de coisas que eu ouvia, mesmo eu não gostando do que ele escuta, mostrei as versões originais e ele achou legal. Ele está ouvindo essa black music contemporânea que eu acho muito ruim.

Assim se fecha o ciclo, a última pergunta é sobre música. Você disse que a música é a sua eterna companheira quando está desenhando. O que você está ouvindo?
Eu ouço muito música concreta, que chamam de erudito contemporâneo: John Cage, Glass… São as coisas que mais ouço. Não consigo escrever ouvindo música. Eu escuto um pouco de música e depois começo a escrever. Por outro lado, praticamente não desenho sem música e é muito bom pra mim, chega a ser relaxante. Fazer essa nova HQ – que vai me prender por pelo menos 10 meses – e as tiras, vou ter um bom distanciamento dos meus livros pra quando eu voltar estar pronto pra eles.