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Australia

Abdul Abdullah Fotografa o Isolamento do Islã Australiano [Entrevista Exclusiva]

"O que não quero é suscitar compaixão. Foda-se a compaixão."

The Wedding (Conspiracy to Commit), Abdul Abdullah, 2015

Do lado paterno, a família de Abdul Abdullah remonta a seis gerações australianas “de raiz”. Do outro lado, o da sua mãe, carrega raízes malaias e muçulmanas. Em sua participação recente na edição do TEDx na Austrália, o fotógrafo e pintor explicou como é viver em um país cujo ambiente político não é tão favorável a quem pratica o islamismo. “Nunca pude me sentir como um australiano”, diz. “Não sou um estereótipo australiano, as notícias daqui não abrangem o meu mundo.”

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É quase um eufemismo. Em meados deste ano, o movimento xenofóbico de direita Reclaim Australia organizou comícios por todas as principais cidades do país e seu grupo no Facebook, com mais de 30 mil membros, incentivou a cultura de ataques a refugiados. Situações como essa Abdullah teve que lidar durante toda a vida. “Eu tinha 14 anos de idade quando houve o ataque às Torres Gêmeas e, da noite para o dia, os muçulmanos passaram a ser percebidos como uma ameaça existencial”, disse em entrevista ao The Creators Project. “Cresci com as pessoas me dizendo que eu era um dos caras maus e que eu não era bem-vindo no país onde nasci.”

Sem nenhum outro recurso, Abdullah expressa sua frustração, dor e incredulidade por meio da arte. Captura a impressão de nacionalistas cheios de ódio e versões que remetem à essência de suas vítimas, por meio de retratos elaborados. Para capturar a atitude certa, ele mesmo se fotografa com frequência. Os elementos visuais de que se utiliza variam e vão desde a bandeira australiana e vestimentas matrimoniais tradicionais da Malásia a uma máscara de macaco que foi usada como teste de maquiagem no filme Planeta dos Macacos, de direção de Tim Burton, lançado em 2001. Além de um macaco de verdade chamado Aki.

Ao construir essas cenas elaboradas, Abdullah cria questionamentos subjetivos de suas próprias opiniões, com a esperança de despertar uma reação igual ou oposta. “Revelo minhas opiniões com a esperança de me engajar e examinar a do outro”, explica. Semana passada, foi inaugurada uma exposição sua na CHASM Gallery, no Brooklyn, e aproveitamos para conversar com Abdullah sobre como ele se tornou um artista ativista, como conheceu seu macaco e como foi crescer como muçulmano australiano.

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The Creators Project: Você já transitou diversas vezes pela pintura e pela fotografia ao longo de sua carreira. Que conceito ou questionamento sua exposição na CHASM  empresta ou impõe à fotografia?

Abdul Abdullah: A pintura e a fotografia têm ambas conotações históricas e entendimentos que se prestam a ideias particulares e, às vezes, muito específicas. No caso de Coming to Terms, eu quis explorar as qualidades específicas do cinema. Espero que o público leia as imagens de uma maneira que se relacione à sua própria experiência com o cinema e com a narrativa, coisas com as quais ele játenha alguma familiaridade.

Vocêpoderia nos contar um pouco sobre o seu processo de criação?Como isso acontece, desde a concepção da ideia a de fato encontrar ou fazer as máscaras e o figurino para a sessão de Coming to Terms?

 Tive a ideia inicial após ler um artigo que citava alguém que justificava e racionalizava os a morte de crianças e jovens, já que “se tornariam terroristas quando crescessem”. Essa projeção, seja de criminalidade ou de maldade, desumanizou um inimigo imaginado, e criou espaço para sua exploração, opressão e assassinato, eliminando qualquer possibilidade de empatia com ele.

Nessas imagens, usei toucas e máscaras como significantes dessas percepções e projeções negativas, e o casamento, um ritual relativamente universal celebrado pelas culturas, como algo que representa união e otimismo em relação ao futuro. A máscara de macaco que usei na série anterior, chamada Siege, era na verdade um usada em testes de maquiagem para o filme de Tim Burton Planeta dos Macacos, de 2001. As roupas de casamento vêm da Austrália e da Malásia. Meu tio mais novo trabalha com organizações de casamento lá, e também me apresentou ao macaco Aki.

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The Lies We Tell Ourselves to Help Us Sleep[As mentiras que contamos a nós mesmos para dormir ànoite], Abdul Abdullah, 2015

Uma pergunta paralela: Arrumar um macaco é tão difícil quanto parece ser?

[Risos] Sim, foi um pouco difícil. Quando fui para a sessão de fotos, não tinha muita noção do que aconteceria, nem tinha expectativas muito altas. Ele vivia em um vilarejo na Malásia perto da casa da minha mãe. O veterinário do meu tio o havia encontrado abandonado ainda bebê, e ele passou a viver com eles em sua casa. No começo ele não gostava de mim, mas depois de um dia ele começou a se acostumar. Ele gostou muito do fotógrafo com quem eu trabalhava, David Collins.

O que você conversa com seus modelos?

The Lies We Tell Ourselves to Help Us Sleep [As mentiras que contamos a nós mesmos para dormir à noite] éum autorretrato. Exceto pela série Wedding, meus projetos fotográficos são essencialmente autorretratos. Com ideias e situações difíceis como essa, sou muito sensível às necessidades de meus temas, e não quero que haja nenhum sentido de exploração. Épor isso que eu apareço como tema a maioria das vezes, embora isso não seja óbvio. Não gostaria de pedir a ninguém algo que eu mesmo não faria.

Bride [Noiva], Abdul Abdullah, 2015

Como foi a realização da série Wedding [Casamento]?

As discussões de que participei na Malásia foram particularmente interessantes para mim. Ao mesmo tempo que o país écomposto basicamente de três grupos étnico religiosos mais ou menos do mesmo tamanho, a religião oficial é o Islã. A experiência de um muçulmano jovem na Malásia é muito diferente da experiência de um muçulmano jovem na Austrália, onde somos minoria. Expliquei a eles minha situação na Austrália e lhes mostrei algumas imagens e vídeos dos protestos de Cronulla e dos comícios organizados pelo Reclaim Australia. Não foi muito difícil explicar de onde eu vinha. Os próprios modelos eram amigos de meu primo Husni. Era pra ter sido uma prima e o namorado dela, mas tivemos problemas de organização. Minha impressão foi que eles acharam a sessão toda muito bizarra e engraçada. As imagens são muito sérias, mas nós estávamos nos divertindo muito no estúdio.

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As duas sessões aparentes de fotos de Coming to Terms[Encarando], a do macaco e a do casamento, parecem duas entidades distintas na exposição, mas com elementos similares. Como elas se relacionam para você?

De certa maneira, o componente do casamento na série évoltado para projeções e percepções externas, enquanto o componente do macaco émais voltado para a autorreflexão. Para mim, há um diálogo definido entre os dois componentes da exposição. Cada componente significa encarar as diferenças.

As fotografias com o macaco parecem uma continuação da sue série Seige, do ano passado. Você relaciona as duas como parte da mesma narrativa ou elas são completamente distintas?

Essas fotografias com o macaco funcionam como um epílogo da série Siege. Elas são propositalmente menos agressivas e representam algo mais terno. Vestir aquela máscara em um vilarejo na Malásia – com suor escorrendo pelo pescoço e olhando nos olhos do macaco e vendo neles o meu reflexo – foi uma experiência surreal. Não muito longe de onde estávamos trabalhando, estava um bando de bodes. Foi incrível.

Restitution (of Self)[Restituição (do Eu)], Abdul Abdullah, 2015

O tema de alienação e preconceito que hánas fotos de Wedding evocam sua crítica recorrente ao tratamento do Islãno mundo ocidental. Vocêpoderia nos contar um pouco sobre suas experiências como muçulmano na Austrália?

Eu tinha 14 anos de idade quando houve o ataque às Torres Gêmeas e, da noite para o dia, os muçulmanos passaram a ser percebidos como uma ameaça existencial. Cresci com as pessoas me dizendo que eu era um dos “caras maus”e que eu não era bem-vindo no país onde nasci. Sentia essa atitute sobretudo através de minha mãe, que era atacada e tratada como escória. Agora, com grupos como o Reclaim Australia,que avivam o anti-Islamismo, me sinto mais decidido a falar. Onde mais no mundo houve protestos contra muçulmanos como os que aconteceram em Cronulla em 2005?

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Que consequências isso teve em seu trabalho?

Essas experiências são o que me levam a fazer arte. Se eu conseguir trazer alguma mudança positiva, mesmo que pequena, então não consigo pensar em maneira melhor de se fazer arte. Meu trabalho se tornou cada vez mais político.

De que maneira?

Eu costumava pintar meus amigos e as pessoas de que gostava. Não me sinto necessariamente obrigado a fazer um trabalho político (eu posso estar me contradizendo completamente aqui, mas hoje éum dia diferente). Mas éque essas são as coisas que me movem. Elas são muito importantes para mim. Não consigo ficar parado, e quando sou obrigado a isso, fico triste. Tenho certeza de que muitas pessoas são assim, e, para mim, o que eu faço agora éprofundamente pessoal. É emocional, sensível, visceral. Se meu trabalho não fosse pessoal, se ele estivesse apenas trabalhando sobre um tema, ele seria completamente desonesto. Eu posso não conversar sobre isso de maneira casual, mas eu nunca me desligo disso. [Risos] Não vou para casa e me desassocio da política. Às vezes eu apenas sufoco um pouco isso.

Reconciliation (of Self)[Reconciliação (do Eu0], Abdul Abdullah, 2015

Como você espera que as pessoas reajam à série Coming to Terms?

O que não quero é suscitar compaixão. Foda-se a compaixão. Se o público puder se ver um pouco nesses trabalhos, então pode ser quehaja empatia, alteridade. Vi um trabalho maravilhoso de Howard Lester no Whitney Museum essa semana que mostrava os rostos de todos os soldados americanos que foram mortos em uma semana específica em 1970, durante a guerra do Vietnã. Ao ver o trabalho, você sentia empatia por eles e por suas famílias. Você simpatizava com eles e estabelecia uma relação com suas experiências. Mas e os milhares de vietnamitas que morreram naquela semana? Nenhuma menção. Quando assisto Sniper Americano, não sou um soldado americano, sou o garoto que pega o foguete.

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Foda-se a compaixão” é uma declaração corajosa, aliás.

Não diria que a compaixãome dá enjoo, eu sóacho que muitas vezes ela écolocada fora de lugar. Acho que ela é frequentemente impregnada de um blablablámaniqueísta que verticaliza as relações. O que me frustra principalmente éa crítica rasteira a quem fala sobre o racismo, machismo, dizendo que estão “mendigando simpatia”, agindo em prol de objetivos ocultos, ou simplesmente são “vitimistas”. Falar sobre coisas ruins e mostrar que elas são fruto do patriarcado imperialista e racista não é “mendigar simpatia”.

Não quero que a Oprah segure minha mão e me diga que vai ficar tudo bem. Não quero que ninguém tenha pena de mim, ou pena de ninguém de quem falo em meu trabalho. Quando falo sobre a experiência de minha mãe, não sinto pena dela de uma maneira externa abstrata, eu internalizo a dor e a compreendo. Eu crio uma empatia. Quero que as pessoas olhem para mim e para eles horizontalmente, olho no olho, no mesmo nível, e entendam de onde eles vêm. Então sim, foda-se a compaixão e foda-se o racismo.

Conciliation (of Self)[Conciliação (do Eu)], Abdul Abdullah, 2015

Acompanhe o trabalho de Abdul Abdullah em sua página.

Tradução: Flavio Taam