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Tecnologia

O Steve Fuller fala para os humanos do futuro

Alô Terra do ano 3012.

Steve Fuller é um professor de sociologia interessado em saber como a evolução tecnológica pode aperfeiçoar o corpo e a mente dos humanos, o que nos poderá levar a viver num mundo cheio de super-humanos, como o Robocop, mas sem o desejo de brutalizar criminosos. Há todo um movimento que pensa assim e acredita neste futuro chamado transhumanismo. A ideia geral é a de que a tecnologia nos pode ajudar a viver mais tempo, ser mais fortes, mais rápidos e mais inteligentes e, de um modo geral, tornar-nos seres humanos melhores do que os patéticos mortais que somos hoje em dia. Talvez num futuro próximo as desigualdades de raça e riqueza sejam substituídas pelas desigualdades entre aqueles que têm apetrechos tecnológicos e aqueles que são apenas sacos de carne e sangue. Talvez o pessoal passe a ir ao médico para actualizar o software, à semelhança do que fazemos hoje com os nossos computadores, ou para fazer uma cirurgia plástica ao cérebro. Talvez não consigas arranjar emprego porque um cyborg tem um CV melhor do que o teu. Parece ficção científica, mas, se os transhumanistas estiverem certos, poderá ser realidade. VICE: O teu novo livro chama-se Humanity 2.0. Achas que, como espécie, precisamos de nos actualizar?
Steve Fuller: Vamos colocar as coisas desta forma: os seres humanos são diferentes das outras criaturas pela necessidade aparentemente interminável de actualização colectiva. Em muitos casos, nós nem necessitamos dessas melhorias para sobreviver como espécie. Por exemplo, sem as vacinas, o homosapiens ainda estaria por cá, embora, provavelmente fossemos em menor número e com vidas mais curtas. No entanto, temos necessidade dessas actualizações para nos definirmos como espécie — para criar alguma distância entre nós e os outros animais, ou seja, nós somos os animais que tentam compreender e controlar não apenas o ambiente físico imediato, mas tudo. Os seres humanos têm vindo a actuar sobre esta ideia — ou fantasia — pelo menos nos últimos 400 ou 500 anos.

A sério? A maioria das pessoas assume que o transhumanismo surgiu com a ficção científica.
Esta ideia foi lançada por pessoas como Galileu e Newton. Eles pensavam utilizar a ciência e a tecnologia para fazer juz à noção bíblica de que fomos criados "à imagem e semelhança de Deus" e, portanto, deveríamos ter poderes divinos como Ele. E, apesar de vivermos em tempos laicos, ainda alimentamos esse tipo de pensamentos sobre nós mesmos. Basta pensar na quantidade de pesquisa médica dedicada a prolongar a vida activa por tempo indeterminado, independentemente das consequências para as outras espécies (com experiências com animais, por exemplo) ou para o ambiente. Em que tipo de upgrades estás a pensar? Disparar raios laser e essas coisas?
Por upgrade quero dizer não apenas o gadget mais recente ou drogas que melhoram a nossa capacidade cerebral, mas upgrades no sentido mais amplo — incluindo coisas que melhoram os nossos corpos e o nosso ambiente, mas que tomamos como garantidas. Por exemplo: óculos, livros, vitaminas, etc. Quando Gutenberg mecanizou a produção de livros no século XV, as pessoas ficaram logo impressionadas com seu potencial de aumentar a capacidade cerebral como um dispositivo de descarga de memória. Séculos mais tarde, por volta do XVIII, os filósofos do Iluminismo saudaram Gutenberg. Entre uma época e outra, os jornais tornaram-se o ramo de comunicação social da revolução de Gutenberg que conduziu às revoluções americana e francesa. Avançando para o nosso tempo, e substituindo Gutenberg por, digamos, Steve Jobs, podemos pensar como as redes sociais de hoje aceleram o ambiente político. De um modo geral, a nossa capacidade de melhorar os nossos corpos só recentemente começou a alcançar o passo da nossa capacidade de melhorar o nosso ambiente. Li-te em algum lado a mencionares a "cosmética neurológica". Isso significa que seremos capazes de aprender kung-fu através de implantes de memória?
Não, é mais subtil e mais como uma cirurgia plástica no carácter. A ideia é permitir que mais dopamina flua nos nossos nervos para nos tornar mais afinados — digamos, no contexto da realização de alguma tarefa que exija concentração ou numa entrevista de emprego. O efeito acabaria por desaparecer e tu terias de voltar para outra afinação química. A ideia é que, uma vez que a cosmética neurológica esteja banalizada, as pessoas cujos empregos dependem de raciocínio rápido podem, periodicamente, submeter-se a uma espécie de lifting intelectual, enquanto vão envelhecendo. Qual o caminho para o qual a actual evolução tecnológica nos leva nesse futuro transhumano?
Na última década, as agências nacionais de ciência de ambos os lados do Atlântico têm vindo a prosseguir este objectivo, sob a agenda das "tecnologias convergentes”. Por exemplo, os nanobots podem ser libertados na corrente sanguínea para desentupir os depósitos de gordura nas artérias e depois dissolverem-se assim que o trabalho ficar feito. Isso iria reduzir a incidência de doenças do coração, permitindo-nos trabalhar e curtir mais e melhor. Isso poderia aumentar a produtividade e economizar nos pagamentos de pensões ao mesmo tempo. Então qual achas que será a aparência dos seres humanos, digamos, daqui a cem anos?
Além de um esbatimento maior das questões raciais, será também mais difícil distinguir os seres humanos de outros animais, por um lado, e de andróides por outro. No primeiro caso, poderemos ter de lidar com animais — possivelmente animais de estimação — que foram quimica ou geneticamente melhorados de forma a adoptar características mais amigáveis. No outro caso, temos a perspectiva de pessoas que serão modificadas de tal forma que, além do cérebro, pouco de seu corpo biológico original irá permanecer — tendo sido substituídos todos os órgãos e membros por outros mais resistentes. Se os seres humanos começarem a usar a tecnologia para melhorar seus corpos e mentes quanto tempo é que demoraria para isso estar coberto pelo Sistema Nacional de Saúde?
Uma vez que grande parte deste material estará comercialmente disponível, após passar por testes básicos de saúde e segurança, será importante que o governo comece a pensar quem é mais provável que a procure. A principal coisa a ter em atenção será quando o padrão de performance começar a mudar de tal maneira que alguém com um tipo de deficiência consiga obter e manter um certo trabalho sem nenhum melhoramento tecnológico. Quando se chegar a esse ponto, o reforço deve ser disponibilizado pelo SNS, como já se faz com óculos e aparelhos auditivos. Quais são, para ti, as desvantagens de aperfeiçoar os nossos corpos e mentes com a tecnologia? Poderá levar a uma sociedade dividida e abrir uma caixa de Pandora de novos preconceitos entre seres humanos aperfeiçoados e não aperfeiçoados?
Sim, definitivamente. Isso poderá levar a novas divisões de classe, embora não exactamente ao longo das mesmas velhas linhas industriais. É por isso que eu disse, em resposta à última pergunta, que o governo precisa de acompanhar a aceitação social das novas melhorias e, quando necessário, torná-las disponíveis a todos para evitar o surgimento de divisões de classe. Mas, além disso, há uma profunda ansiedade no horizonte, associada ao que o teórico e activista da deficiência Gregor Wolbring chama de "capaz-ismo" — isto é, todos nós vamos começar a pensar em nós mesmos como estando sempre atrasados porque estaremos com medo de não ter o último aperfeiçoamento num mundo cujas expectativas de realização individual são susceptíveis de aumentar ao longo do tempo. O que dirias às pessoas que pensam que o transhumanismo é apenas um bando de fantasias sci-fi?
Basta olhar para o quanto nos temos transformado a nós e ao nosso ambiente nos últimos 400, 500 anos. Considera os efeitos psicotrópicos a longo prazo da introdução da cafeína e das bebidas alcoólicas como parte regular da dieta ocidental. Não é por acaso que o período em que isso aconteceu é chamado de "Iluminismo”: o cérebro foi alterado em termos do seu carácter e velocidade de funcionamento, o que, por sua vez, definiu uma nova posição-padrão para a realização de qualidade da vida humana. Além disso, pensa como a introdução da aspirina no início do século XX alterou o nosso limite de dor, de modo a que, agora, mesmo um baixo nível de sofrimento é considerado inaceitável e requer tratamento. A extensão das nossas vidas com a tecnologia não vai intensificar o problema de termos um planeta superpovoado de pensionistas que podem aceder à internet apenas com os olhos enquanto andam por aí com pernas de fibra de carbono?
Não é assim tão óbvio que todos queremos viver muito tempo, especialmente se se tornar socialmente aceitável para as pessoas a ideia de "live fast, die young". Já vemos uma negligência — talvez até mesmo um abandono — do humano biológico por aqueles que passam a maior parte de suas vidas na frente de um computador. Obesidade e doenças cardíacas estão em ascensão. E, claro, há também uma infra-estrutura oculta com drogas experimentais e ilícitas associadas a esse grupo. Enquanto muitos têm tratado este desenvolvimento como uma patologia, pode ser simplesmente um efeito emergente da Humanidade 2.0 — ou seja, uma divisão de pessoas que desejam continuar a viver em perpetuidade (a agenda clássica transhumanista) e aqueles que querem deixar a sua marca logo quanto possível, sem qualquer preocupação com a longevidade. O desafio será o de colher os benefícios sociais daqueles que querem ser estrelas cadentes. Como estas pessoas deixarão pistas pelo ciberespaço, podemos pensar nelas como absorvidas pela realidade virtual, enquanto saem dos recipientes à base de carbono com que nasceram. Claro que não posso garantir que isso irá resolver o problema da população mundial — mas podes ter certeza que o problema da população vai ser visto tanto como uma questão de acelerar a morte como a inibição do nascimento. Bastante sombrio esse cenário. Achas que as tentativas de controlar a nossa própria evolução ao brincar com o genoma humano vão tornar uma parte significativa da população em mutantes?
Sem dúvida que haverá alguns desastres ao longo do caminho, alguns até muito sérios, que dizimarão muitas pessoas, embora esperemos todos que não seja nada do género do The Rise of Planet of the Apes. Eu acredito nisto porque, apesar dos melhores esforços dos ecologistas mais pessimistas, ainda tendemos a olhar apenas para os benefícios ao avaliar a ciência e a tecnologia. Por exemplo, não parámos a pesquisa genética após as atrocidades nazis. Pelo contrário, convencemo-nos de que os nazis eram maus, a sua ciência corrupta e de que precisávamos, simplesmente, de tomar medidas legais e políticas para garantir que algo semelhante nunca pudesse acontecer de novo. Uma grande parte do problema é que praticamente toda a gente agora está implicada no futuro da ciência e tecnologia. Não interessa a ninguém travar esse desenvolvimento. Quanto muito, as pessoas podem ser incentivadas a criar laços mais fortes com a ciência e a tecnologia através de uma espécie de "serviço nacional", por exemplo, através da participação em experiencias científicas e em painéis de avaliação de tecnologias. Se o transhumanismo for bem sucedido onde terminará? O que é nos impede de nos tornarmos num fantasma dentro da máquina?
Isso pode acontecer. Devemos lembrar-nos das raízes profundas do transhumanismo de hoje na história da filosofia ocidental e da teologia. A nossa característica mais distintamente humana — chama-lhe "mente", "razão", "consciência" ou "alma" — sempre foi retratada como uma luta contra as insuficiências do nosso corpo biológico para alcançarmos o nosso pleno potencial. No período moderno, os sonhos de abandonar as necessidades do corpo para alcançar objectivos espirituais deram lugar a sonhos de maior produtividade, ou seja, fazer mais com menos. Friedrich Engels previu acertadamente, no final do século XIX, a alvorada da nossa actual obsessão com o consumo eficiente de energia como a tentativa do materialismo simular o espiritismo através da definição de pura energia como "matéria desmaterializada”. Não será o transhumanismo simplesmente a colocação de um rosto humano nesse sonho?