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O guia VICE da saúde mental

Ter cuidado com a linguagem relacionada com as doenças mentais não é o ‘politicamente correcto levado ao extremo’ - é humanidade básica

"Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo" escreveu o filósofo Austríaco Ludwig Wittgenstein.

Imagem via SBS

Não é preciso muito para que a água deixe de ferver. Quando John Stewart anunciou que deixaria o The Daily Show no início deste ano, alguns salientaram que o programa era agora tão interessante como um vídeo de 'fails' do George W. Bush.

O mesmo pode ser aplicado ao interminável debate sobre o "politicamente correcto" e se estamos, ou não, a levá-lo ao extremo. Apesar de todo o apoio e petições em honra do Jeremy Clarkson, é muito difícil encontrar novos argumentos. De um lado temos pessoas furiosas com a ideia de que estão a ser censuradas; e do outro pessoas enfurecidas pelo uso de linguagem insensível e odiosa.

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No entanto, quando se trata de pensar sobre o melhor para a sociedade, a frustração criada pelos mesmos assuntos uma e outra vez não é realmente relevante. Por mais cansado que estejas deste debate, a necessidade de utilizar uma linguagem ponderada e sensível sem perder a liberdade de expressão, é uma preocupação com a qual nos deparamos constantemente.

Sobretudo quando se trata da forma como devemos falar e escrever sobre saúde mental.

Tanto o acto de intimidar como o de descriminar aparecem frequentemente de forma verbal ou escrita e, em 2013, a pesquisa da YouGov descobriu que "as pessoas com problemas de saúde mental são amplamente vistas como o grupo mais descriminado da Grã-Bretanha." Durante a semana em que esta pesquisa foi publicada, os trajes de carnaval relacionados com doenças mentais ou manicómios foram retirados de todas as lojas a nível nacional.

"Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo" escreveu o filósofo Austríaco Ludwig Wittgenstein. Num mundo que nos permite em qualquer momento o uso indiscriminado de linguagem através da internet, as suas palavras nunca foram tão relevantes. "A Linguagem é a forma que usamos para codificar coisas. Se modificarmos a linguagem, então modificamos as percepções," diz James Leadbitter, um artista e activista que foi diagnosticado com transtorno de personalidade limítrofe e que também é conhecido como 'vaccum cleaner

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Uma das principais queixas dos que sentem o politicamente correcto a ser levado ao extremo é que a sua linguagem está a ser policiada. Se dizes às pessoas como devem usar as palavras, elas não vão reagir da melhor maneira. A ideia seria pensar na forma como o uso da linguagem afecta as pessoas.

Por mais longe que vá a nossa imaginação ao pensarmos que somos o resultado de "lunáticos", "histéricos" e "imbecis" do século XIX, ou os "spazzes" e os "spackers" dos tempos mais recentes, podemos ver que não é preciso ir tão longe. A estigmatização da doença mental continua a desencorajar pessoas a procurarem ajuda ou a falarem abertamente sobre as suas experiências. "Foram precisos 12 anos de problemas evidentes para ir a uma consulta e, realmente, penso que a linguagem teve um papel crucial nessa situação. Eu próprio acho que tenho preconceitos sobre a saúde mental:" disse-me Jan*, que foi diagnosticado com fobia social.

Um estudo de 2007 realizado com crianças em idade escolar constatou que "a procura de ajuda por parte de doentes mentais ainda jovens pode ser melhorada através de intervenções que tanto abordem a sua falta de informação factual sobre a doença mental, como as que conseguem reduzir as suas fortes reacções emocionais negativas em relação às outras pessoas com transtornos mentais ". O estudo também descobriu que as crianças usaram palavras como "perturbado", "maluco", "retardado" e "def" - entre outras - com relativa frequência.

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Não temos de ir às escolas para encontrar este tipo de linguagem a ser cuspida como se fosse lançada por canhões de água contra manifestantes pacíficos. Depois de descobrirem que Andreas Lubitz, co-piloto do avião Germanwings que caiu nos Alpes, matando 149 passageiros, tinha um histórico de depressão, a manchete do Sun rugiu: "Homem Louco aos comandos". Enquanto o "the Mail" perguntou: "Mas porque razão foi ele autorizado a voar?" Há sempre alguém que confunde uma terrível tragédia com uma oportunidade de promover a sua marca pessoal. Piers Morgan insistiu que ninguém devia ser autorizado a pilotar um avião se está a tomar medicação para a depressão. "Francamente, eu não me importo se o co-piloto de 28 anos, Andreas Lubitz, estivesse louco, triste ou fosse má pessoa", escreveu.

Pessoas como o Piers Morgan assumem e consagram esta ideia fatalista na linguagem que estão a usar: como que a depressão vai permanecer contigo para sempre e que vai marcar-te como alguém incapaz de fazer seja o que for, o resto da tua vida. Assim como alguns insistem que todos os muçulmanos deviam desculpar-se ou explicar as acções dos extremistas islâmicos que nunca conheceram, Morgan e outros da sua laia, usam a linguagem para demonizar uma grande, e infinitamente variada, parte da sociedade. O resultado é claro, um aumento exponencial do estigma.

As manchetes sobre Lubitz não são novidade. Quando, em setembro de 2003, Frank Bruno foi internado contra a sua vontade ao abrigo da Lei de Saúde Mental (Mental Health Act), a agora infame manchete da primeira página do Sun foi: "Bruno Maluco foi Internado" - um titular que Rebekah Brooks, a então editora, admitiu ter sido demasiado extremo depois de deixar o seu cargo.

"A linguagem é a forma que usamos para codificar coisas. Se modificarmos a linguagem, então modificamos as percepções" - James Leadbitter

Outras celebridades receberam um tratamento semelhante nos últimos anos. "Mas o que é que está a acontecer à Amanda Bynes," perguntou Gawker, e não nos surpreendeu já que são os cliques a pagar as contas e qualquer coisa que envolva loucura desperta sempre muita curiosidade. Britney Spears tem sido descrita como "maluca" e Danniella Westbrook parece ter tendência a participar nas "loucas discussões" que acontecem no Twitter. Ainda assim, estes exemplos são apenas a ponta do icebergue. Andrew Scull é um historiador de psiquiatria e autor, mais recentemente, do Madness in Civilization, um livro que explora a história cultural da loucura, desde a Palestina antiga aos dias de hoje. Ele disse-me que "a linguagem, aqui, é uma espécie de armadilha", porque, durante milhares de anos, "a loucura veio acompanhada de um estigma e esse estigma é um dos causadores de sofrimento." Manchetes como as do "Bruno Maluco" são, segundo Scull, bons exemplos disso. Várias culturas têm fomentado esse estigma vezes sem conta, dependendo das circunstâncias. "No início do século XVIII, existiam uma série de paródias e piadas à custa dos doentes 'histéricos' e das pessoas que sofriam de melancolia," diz Scull a título de exemplo. A história da terminologia usada em saúde mental também nos mostra que as palavras são usadas indiscriminadamente até que o seu uso atinge um ponto de inflexão e, em seguida, se torne inaceitável ou antiquado. O que é verdade para a linguagem quotidiana é também verdade para a terminologia médica. Falei com algumas pessoas com várias preocupações sobre os diagnósticos que foram recebendo ao longo dos anos. Muitas vezes, essas preocupações tinham a ver com a linguagem ou as suposições inerentes à linguagem. "Distúrbio" é uma palavra que aparece constantemente como um problema. Esquizofrenia é uma palavra que as pessoas vêm actualmente como altamente problemática. Um recente artigo do Daily Beast sobre esta questão foi ainda mais longe: "Considerando-se todas as palavras usadas para doença mental, tanto as usadas por médicos como as cruelmente insultuosas utilizadas pelo público em geral, é impressionante ver que a maior parte tem conotações com o estar estragado ou o desorganizado: demente, louco "crazy" (que significa "cracked" - em si um termo depreciativo), fora de si, com falta de parafusos, desequilibrado,… " Reivindicar certas palavras que têm um poder nocivo sobre nós, é uma das maneiras de as conseguir superar, como os Afro-americanos fizeram ao reivindicarem a palavra "nigger". O movimento de sobreviventes psiquiátricos vê os termos como "loucura" e "doença mental", como sendo aqueles que podem ser usados com orgulho. Amy*, que sofre de depressão, diz-me que, "muitas vezes eu uso a linguagem de uma forma bastante irreverente porque eu acho que a irreverência lhe retira o seu poder secreto." Ela admite que isso pode simplesmente significar que ela interiorizou os estigmas da sociedade, mas diz que "é bem melhor do que estar sempre sisuda". Leadbitter diz: "houve momentos em que estive muito doente e ter de ouvir o uso coloquial de palavras como 'mental', 'louco' e 'maluco' foi bastante doloroso," mas ele continua, "Posso reivindicar esta linguagem. Eu posso dizer, 'Sim, eu sou louco". Naturalmente, outros discordam, porque vêem estas palavras como uma evocação dos dias negros da época Victoriana. O importante é que as pessoas com experiência pessoal em problemas de saúde mental, e aqueles mais sensíveis às realidades envolvidas, continuam este debate. Uma das principais queixas dos que sentem o politicamente correcto a ser levado ao extremo é que a sua linguagem está a ser policiada. Se dizes às pessoas como devem e não devem usar palavras, elas não vão reagir da melhor maneira. A ideia seria pensar na forma como o uso da linguagem afecta as pessoas," diz Leadbitter. O que podes dizer entre amigos é, para não variar, muito diferente do que podes dizer entre desconhecidos ou em espaços públicos. Os meios de comunicação - com posições de poder na nossa sociedade, por mais problemas financeiros que possam ter - não podem tratar as primeiras páginas como se estivessem na privacidade das suas casas. Podemos ter medo do que as outras pessoas pensam e sentem. Podemos ter medo da nossa forma de pensar e de sentir. Podemos ver como as vulnerabilidades dos outros podem ser insuportáveis. Essas coisas podem ser todas verdadeiras, mas também é verdade que mostrar bondade e sensibilidade na linguagem que usamos não devia ser uma grave imposição - mas sim um requisito básico da nossa humanidade. * O nome foi alterado @oscarrickettnow