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Creators

A incrível história dos desenhos do Hospital No. 3

Em 1970, um portfolio de quase 300 desenhos foi encontrado no lixo. Levaram 41 anos para descobrir quem era o artista que os desenhou.

Da Coleção de John Foster

A história do artista James Edward Deeds tem, no mínimo, três começos diferentes e absolutamente nenhum final. É, portanto, uma história difícil de contar, mas parece haver um consenso de que o número dois é o melhor lugar para começar. Começamos com um menino, que catou um caderno de uma caçamba de lixo em Springfield, Missouri. O portfólio continha 283 páginas de ilustrações, que representavam cenas pastorais repletas de peculiaridades fascinantes, como gatos selvagens e pavões de proporções improváveis, desenhos intricados de barcos e trens e uma ilustração de um time de baseball completo. Mas os mais impressionantes eram o retratos de mulheres, repetidos inúmeras vezes, com olhos grandes e vestidos da era Eduardiana, de cabelos repartidos, cheios e escuros. O portfólio não era assinado, mas em cada página havia impresso: Missouri State Hospital No. 3.

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O menino que encontrou as ilustrações no lixo não quis ter seu nome atrelado à história, que se tornava cada vez mais conhecida, mas guardou-as por 36 anos antes de finalmente apresentá-las ao mundo por meio do eBay – um mercado de arte que, em 1970,  jamais imaginaria que viesse a existir.

Antes de nos atermos ao mercado de arte, ao misterioso artista desconhecido e às páginas de um portfólio que, em algum momento, foi jogado no lixo para depois ser exposto e vendido por US$ 16.000, vamos voltar um pouco mais em nossa história: os desenhos são de James Edward Deeds, cujo nascimento, em 1908 na Zona do Canal do Panamá é, obviamente, o primeiro começo. Edward, como era chamado, era o mais velho dos cinco filhos de Ed e Clara Deeds, que posteriormente se mudaram com a família de volta para o Missouri. Edward era um jovem doce e socialmente desajeitado, sem nenhum jeito par aa vida na fazenda, segundo sua sobrinha Julie Deeds Phillips. Apesar das imagens de um idílio rural tão frequente em seus desenhos, o temperamento de Edward pendia para as artes. Adorava ir ao cinema e ouvir música. “O trabalho na fazenda não era para ele”, conta Deeds Phillips ao Creators Project. “Não era isso que o fazia feliz.” Edward frequentemente se desentendia com o pai, descrito pela família como um homem duro. Após uma discussão na qual Edward supostamente ameaçou seu irmão, Clay, com uma machadinha, Ed Deeds mandou seu filho de 25 anos para a Missouri School for the Feeble Minded.

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A filha de Clay, Julie Deeds Phillips, acredita que a gravidade do incidente foi exagerada, de modo que Edward fosse então mandado embora. Afinal de contas, Edward era um brincalhão, e a ameaça poderia muito bem ter sido uma brincadeira. Mas em 1933, um homem chefe de família podia fazer com que um membro de sua família fosse condenado sob os pretextos mais inconsistentes. Clay não tinha medo de seu irmão, assim como sua esposa, mãe de Julie, Martaun Deeds, e visitavam-no regularmente nas instituições em que passaria o resto de sua vida.

Silver.Smith. Cortesia Princeton Architectural Press

Edward passou menos de dois anos na School for the Feeble Minded, até ser transferido para o Missouri State Hospital No. 3, onde passaria os 40 anos seguintes. Lá foi diagnosticado com dificuldades de aprendizado e esquizofrenia, diagnósticos que suas sobrinhas sobreviventes não acreditam ser condizentes com o homem que sua família conheceu. Em 2011, Susan Scheftel, professora de psicologia da Universidade de Columbia, diagnosticou postumamente Deeds com desordens do espectro autista, tendo como base o exame de sua obra detalhada e extremamente repetitiva. O State Hospital foi construído durante uma reforma no tratamento de doenças mentais no século XIX, mas suas condições haviam se deteriorado na época em que Deeds foi paciente. O hospital, projetado para abrigar uma comunidade autossuficiente, em que os moradores se aproveitariam dos benefícios do ar fresco e do trabalho honesto, em 1930 se encontrava superlotado, com mais de 400 pacientes. Sem segurança contra incêndios, condições sanitárias e equipe suficiente. Havia supostos abusos e agressões contra pacientes, um deles morto durante a estada de Deeds.

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Ectlectrc Pencil. Cortesia Princeton Architectural Press

Mas, apesar dos horrores que o circundavam, este era o local em que Deeds produziu seu famoso portfólio. As obras em si parecem estar pouco relacionadas a sua vida no State Hospital. As pessoas que retratou estão vestidas de acordo com o estilo da década de 1900, uma época de que Deeds mal poderia se lembrar, e as imagens não sugerem nada de confinamento, solidão ou agressões. Em vez disso, se passam em um mundo próprio permeado de ternura, repleto de damas gentis, cavalheiros educados, natureza verdejante e animais amigáveis.

“Uma grande parte dessa história permanecerá um mistério”, diz Richard Goodman, que escreveu a introdução de The Electric Pencil: Drawings from Inside State Hospital No. 3, novo livro com reproduções dos desenhos de Deeds. A família de Deeds sabia que ele desenhava, mas não conversava sobre o assunto com ele. “Eles não conversavam sobre coisas desse tipo, ‘Tio Edward, por que você desenhou isso?’ ”. O hospital onde Deeds passou quase toda sua vida adulta foi demolido, deixando poucos indícios de como era sua vida.

Now. And. Herafter. CortesiaPrinceton Architectural Press

Apesar do mundo agradável que Deeds retratou, há em seus desenhos algumas pistas relacionadas à sua vida no hospital. Três obras contêm as letras ECT, que, segundo  Brynnan K. Light-Lewis, que em 2012 escreveu uma tese sobre a vida e a obra de Deeds, podem se referir a eletroconvulsoterapia, também conhecida como tratamento com eletrochoques. A ECT foi introduzida no Nevada State Hospital No. 3 durante a estada de Deeds, e era administrada duas vezes por semana em pacientes regulares. Quando, nas visitas mensais que faziam, a família de Clay encontrava Edward logo após o tratamento, encontravam-no desorientado e confuso. Deeds nos deixou uma dica comovente sobre seu tratamento no hospital – um retrato de um homem de chapéu, com os dizeres “POR QUÊ, DOUTOR.” Acho que [a arte] era um mecanismo de defesa”, diz Light-Lewis. “Ele criou um mundo para si mesmo — uma fuga.”

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Hello.Kid. CortesiaPrinceton Architectural Press

Dentre os repetitivos retratos de homens e mulheres de olhos grandes e cabelos escuros, há alguns consideravelmente diferentes. Em um deles há os dizeres “CAMP CLARK”, e seu realismo é singular. Trata-se de um retrato do ex-presidente da Câmara e candidato à presidência dos Estados Unidos em 1912, James Beauchamp “Champ” Clark. A pesquisa de Light-Lewis indica que o desenho foi copiado diretamente de uma foto de Clark. Essa obra é importante não apenas por seus próprios méritos, mas pelo que diz a respeito do restante da obra de Deeds. Ela sugere que seus outros retratos foram produzidos a partir de sua própria mente e memória, em vez de imagens de referência, além de provar que conseguia produzir retratos muito mais realistas, tendo escolhido não fazê-lo.

Com a idade, a artrite passou a limitar a produção de Deeds, que deu seu precioso portfólio para sua mãe, que, por sua vez, o deu para seu irmão, Clay. O caderno foi parar naquela caçamba de lixo em Springfield depois de a família de Clay se mudar e deixar acidentalmente o objeto no sótão. Aos novos moradores, Clay disse que poderiam dispor dos objetos do sótão como bem entendessem. Os Deeds ficaram desolados com o desaparecimento de sua querida herança, o portfólio aparentemente perdido para sempre.

Deer. Boy. Cortesia Princeton Architectural Press

Durante anos, o portfólio estava a apenas alguns estados de distância, no Texas, sob posse do homem anônimo que o resgatou do lixo quando era criança. Em 2006, o homem anunciou o objeto no eBay, que foi rapidamente adquirido por um livreiro de Lawrence, Kansas, que também quis permanecer em anonimato.

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“Vim do trabalho almoçar em casa um dia e decidi dar uma olhada no eBay, como eu faço frequentemente”, diz artista, designer e colecionador de arte John Foster ao Creators Project. “Eu estava ali, sentado em frente ao computador, comendo um sanduíche, quando vi vários desenhos que soube imediatamente que eram especiais.” Foster foi encontrar-se com o vendedor em Lawrence no mesmo dia, e comprou o portfólio por mais de US$ 10.000 à vista, usando o dinheiro que havia economizado para a aposentadoria com a esposa. Esta foi sua compra mais cara como colecionador de arte. “Financeiramente, não pude me dar ao luxo de manter grandes objetos de arte”, escreve. “Encontrei muitas coisas incríveis em minha vida, desfruto delas durante um tempo e, se recebo alguma oferta boa, não tenho problema nenhum em vender. Gosto da descoberta e da procura. Eu sabia que, quando vendi o portfólio, a obra iria a outros lugares. Eu só precisava deixar que fosse para a cidade grande — Nova York.”

The. Black. Snake. CortesiaPrinceton Architectural Press

Foster vendeu o portfólio para Harris Diamant, artista e colecionador de Nova York, que deu ao artista anônimo o apelido de “The Electric Pencil”, devido aos dizeres em um desenho que acredita ser um autorretrato. Diamant contratou um detetive particular para tentar descobrir sua identidade. Sem grandes resultados, em 2011 Diamant entrou em contato com o Springfield News-Leader, o maior jornal de Springfield, que publicou imagens de obras do portfólio, chegando enfim a Julie Deeds Phillips.

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Deeds Phillips não havia tido muito acesso ao portfólio anteriormente — era precioso demais para ser tocado por suas mãos de criança — mas sua mãe, Martaun, lamentava sua perda e contava a seus filhos sobre os desenhos de Edward. “Ela falava sobre como ele desenhava penas muito bem”, diz Deeds Phillips. Uma das imagens no jornal era de uma mulher com penas no chapéu. “Quando vi essas penas nos desenhos, pensei ‘meu Deus, são tão elaboradas. Devem ser de Edward.’”

Miss.Snider. CortesiaPrinceton Architectural Press

O anonimato do artista não foi empecilho para a popularidade do portfólio. Antes de Deeds Phillips ver os desenhos no jornal e entrar em contato com Diamant, ele já havia levado as obras de “The Electric Pencil” para a feira de arte Outsider Art Fair, em Nova York, onde foram representadas pela Hirschl and Adler Gallery. Finalmente o artista, cada vez mais famoso, ganhou um nome, embora quase 15 anos tarde demais para Deeds, que morreu de ataque cardíaco em uma casa de repouso em 1987. Mas a descoberta não é por isso menos emocionante, tanto para fãs de The Electric Pencil, que queriam saber mais sobre o enigma do artista, quanto para a família Deeds, que nunca imaginaria poder ver as obras de Edward novamente. No portfólio, há um presente especial — ao lado de uma das mulheres de cabelos escuros que Edward desenhou há os dizeres “MISS MARTIN”. Apesar do erro na escrita, as sobrinhas de Deeds reconheceram sua mãe Martaun, já falecida, que era cunhada de Edward.

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Chegamos enfim a um lugar claro o suficiente ser chamado de final, apesar de a história de James Edward Deeds jamais ter sido completamente revelada. “No fim, sempre vai ter algo que nos escapa a respeito desse homem”, diz Richard Goodman. “De certa maneira, é frustrante não sabermos tudo sobre ele, gostaríamos de saber sua história completa. Ele vai continuar um enigma.” Tudo o que podemos saber com certeza sobre Edward é o que sua obra nos conta: que, apesar de ter passado a maior parte de sua vida em instituições frias e, às vezes, cruéis, foi capaz de criar através da arte um mundo agradável para si mesmo. Em seu mundo, não havia violência ou indelicadeza, e estava profundamente ligado a uma nostalgia por uma época de que mal se lembrava. “Jamais poderemos entender tudo sobre suas obras”, continua Goodman. “Essa informação permanecerá com ele, e talvez isso não seja ruim.”

Clay Deeds (esquerdavisitando seu irmão, Edward Deeds. A família fazia a viagem com intervalos de algumas semanas, e frequentemente faziam piqueniques nos terrenos do hospitalCrédito: CortesiaJulie Deeds Phillips & Tudie Deeds Williams

The Electric Pencil: Drawings from Inside State Hospital No. 3, de James Edward Deeds Jr., com introdução de Richard Goodman e prefácio de Harris Diamant, foi publicado pela Princeton Architectural Press.

Tradução: Flavio Taam