'Frostpunk' trata pessoas com deficiência como seres humanos complexos

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'Frostpunk' trata pessoas com deficiência como seres humanos complexos

Em vez de apagar ou desumanizar pessoas amputadas, o game polonês ‘Frostpunk’ dá destaque às suas experiências.

Era o 41º dia e uma nevasca fazia as temperaturas despencarem a 110 graus negativos, as minas nos limites de New London quase desmoronam com o frio. Trinta voluntários se oferecem para descer aos níveis mais baixo e substituir os suportes hidráulicos que mantém os túneis abertos. Sem carvão para alimentar o gerador gigantesco no coração da vila, cada um de seus cidadãos congelaria em horas. Envio os voluntários. Todos os trinta morrem.

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Verifico a lista de cidadãos de New London em busca de um nome em específico, mas não o encontro ou porque morreu ou porque o aumento no número de refugiados chegou a indecifráveis seiscentas pessoas. Verifico a lista de amputados – nada novamente, talvez por causa de sua prótese, quem sabe?

Após os funerais – garantidos por lei no 17º dia – clico no cemitério para checar os falecidos. E lá está ele: Gideon Fleet, sem nenhuma família, falecido aos 37 anos.

Eu tinha 19 anos quando me alistei na Força Aérea e destruí minha tíbia e fíbula, deixando-as em frangalhos. Meu suboficial, supondo que havia sido só uma distensão, me mandou caminhar até a clínica mais próxima, a uns três quilômetros de distância. Por mais que não demonstrasse sentir dor, a forma como caminhava, com dificuldade, o irritava – talvez achasse que eu estava fingindo? – e enquanto mancava pelo asfalto, tentando me manter de pé, ouvi seus gritos clamando para que me apressasse, gritos que me acompanharam até que sumi de vista. As radiografias mostraram que meus ossos tinha se despedaçado em pedacinhos que me fizeram pensar em um saco de Doritos derramado.

Do nome à idade, Frostpunk gerou aleatoriamente cada aspect de Gideon Fleet, como qualquer outro cidadão de minha colônia. A maioria das pessoas em Frostpunk são tratadas como abstrações, frágeis engrenagens em uma máquina dedicada a manter uma comunidade inteira viva com a chegada de uma era do gelo apocalíptica.

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Quando me deparei com Gideon pela primeira vez, fiquei arrepiado. Um evento pipocou na tela com algumas artes, texto e uma escolha simples: Gideon precisaria de uma amputação por conta do frio, mas ele na verdade preferiria morrer. Meu papel era dizer ao médico para amputar o membro afetado ou deixar a gangrena levá-lo junto da vida de Gideon. Por si só, o fato já havia me lembrado de outras obras de ficção pós-apocalíptica, onde gente com deficiência é encarada como fardo a ser eliminado, sem nenhuma opção além do suicídio ou abandono no futuro.

Decidi confiar em quem escreveu o jogo: a história resultante poderia ser ofensiva ou poderia explorar o modelo social da deficiência, que identifica como a estrutura social deixa as pessoas de fato debilitadas. Afinal, eu criei este momento quando permiti cirurgias invasivas no 6º dia e Frostpunk é um mundo que define seus cidadãos através do trabalho, de forma semelhante ao nosso.

Histórias envolvendo deficiência e estar debilitado me atingiram nos pontos mais baixos de minha vida, basta lembrar das cirurgias que não deram certo e os benefícios que me foram negados. Ou da briga em que me meti com outro fuzileiro que parou quando ele pisou em minha perna, ainda inchada – seja lá que som eu fiz naquele momento, fez o cara congelar, abaixar os punhos e me perguntar se estava bem. Eu lido com narrativas ligadas ao tema de forma resguardada. Muitas decepções, muita porcaria desumanizadora.

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Após minha escolha, Gideon Fleet optou também por viver. Em um evento seguinte, ele me agradeceu e descreveu-me o novo significado que havia descoberto para sua vida após um período enlutado. Me senti grato pois sua história continuaria, além de estar surpreso com a narrativa. No 13º dia entrou em vigor a lei das próteses e uma fábrica foi construída para fabricá-las. Gideon voltou ao trabalho em uma nova mina de carvão, a mesma que estaria sob risco de desabamento pouco menos de um mês depois.

Perna do autor em 2015, cinco anos depois de receber alta, antes da cirurgia de remoção do pino de titânio.

Por mais que não esteja em boas condições, ainda tenho o membro onde todos aqueles ossos quebraram. Me viro com bengalas em vez de próteses para me locomover. Quando conversei com Harrison Barton, designer de narrativas assim como eu, ele desabafou sobre algumas frustrações com histórias em que próteses são substitutos perfeitos de membros. “Se você não lembrar as pessoas de que estas próteses são ferramentas com limitações, elas não percebem”, comentou. Falamos sobre histórias e personagens que gostamos (Furiosa!) e do que não gostamos também. Falamos sobre o futuro.

Gideon Fleet não era o único amputado em New London, e entre os doentes, ele era só mais um de centenas. Os gravemente adoentados em Frostpunk são os primeiros a protestar, os mais ferozes. Dezenas destes tomam as ruas do lado de fora do gerador, exigindo mais postos médicos, enfermarias, todos aquecidos, equipados e com equipe à disposição, ou então encontrarão um novo líder.

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Quando o Partido Republicano tentou ferir a Lei dos Americanos com Deficiência através da resolução H.R. 620, ativistas com deficiência se jogaram ao chão dos gabinetes de seus representantes. Poucos meses haviam se passado desde a tentativa de remoção de benefícios e proteções do Medicaid para condições preexistentes. Meu senador do Arkansas ajudou a elaborar tal projeto; seu gabinete em Springdale sentiu toda a raiva e força daqueles que seriam afetados.

O que o senador não compreendia quanto à nossa raiva, Frostpunk compreende através de suas mecânicas. O descontentamento pode ser equilibrado através de dois métodos principais: o processo demorado de instalação de instituições públicas de suporte aos marginalizados ou através de mentiras e opressão fascista. A ira dos manifestantes só pode ser acalentada com enfermarias ou prisões.

Haviam outras formas as quais Frostpunk teria me permitido construir New London, por meio de outras visões. Em outra partida, os adoentados descansavam em casas de cuidados gélidas enquanto grandes autômatos de vapor mineravam carvão para suas fornalhas. Sem cirurgias perigosas, nada de próteses. Mesmo em um mundo tão frio em que pessoas podem morrer congeladas ao lado de um gerador gigantesco, Frostpunk ainda oferece estruturas de apoio para pessoas com deficiência.

Durante a Game Developers Conference, um jogo que escrevi foi indicado à determinada categoria e eu estava empolgado em trabalhar ali no estande. O evento organiza os estandes em fileiras, como se fosse um balcão de bar, com uma cadeira para os jogadores e sem nenhuma chance de acomodar um desenvolvedor que não tem como ficar de pé. Tive que cair fora, envergonhado. E ainda assim, dei sorte. Cherry Thompson, defensora do direito à acessibilidade, descreveu em detalhes como alguns poucos estandes eram acessíveis a cadeirantes.

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Quando conversei com Cherry, tentamos pensar de bons exemplos de representatividade de deficientes em games, mas logo a conversa se voltou pra cinema e TV. Veio à tona a frustração com curas rápidas, em que a deficiência do personagem é revertida. “Independente de serem exoesqueletos ou medicações, este parece sempre ser o objetivo de quem escreveu o roteiro”, comentou Cherry. Mesmo em situações onde tal tecnologia existe, é decepcionante quando os games tem tanta pressa em deixar o tema para trás.

Ao conversar com outros sobre o tema, começo a perceber que talvez não tenhamos dados suficientes para chegar a qualquer conclusão; cada crítica é seguida de comentários louvando o fato de que ao menos a coisa existe. “Eu preferiria que os criadores continuassem tentando e errado do que não tentar nada”, disse Cherry. Quando mal existem exemplos a serem discutidos, o primeiro passo a se dar é a visibilidade, o que acaba afetando a discussão também, quando não há espaço à mesa para pessoas como nós.

Assisti ao funeral de Gideon Fleet e seus colegas com a câmera de Frostpunk aproximada o máximo possível do cemitério, distante da visão quase que divina da câmera comum. Os cidadãos de New London passavam pelas lápides com lamparinas brilhantes rumo ao mausoléu improvisado. Gideon havia feito os reparos necessários na mina e salvado a colônia. Surgia ali uma ponta de esperança, algo em falta em meio à crise, salvando a mim do frio também.

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Nossas vidas são belas contradições, dignas de inclusão em espaços, histórias, sociedades. Criadores nem mesmo tem que acertar tudo ao retratar tais vidas, até mesmo porque não podem; a deficiência é algo complexo demais para ser acomodada em uma lista e a empatia por si só não é o bastante, não sem parar pra ouvir e contar com uma imaginação das mais criativas, não sem inclusão e acomodação. Deixe a câmera focar ali um tempo, não só cortando a cena e pronto.

Gostaria que Frostpunk fosse ainda mais além. Quero um cenário em que o objetivo explícito é construir uma utopia congelada de trabalhos braçais automatizados e cuidados paliativos. Quero eventos em que cidadãos rejeita próteses, em que estas quebrem e apresentem defeitos, em que suas experiências com doença e deficiência sejam tão díspares quanto as nossas. Quero complexidade.

Ainda melhor, quero que mais games além de Frostpunk façam isso, para que o fardo não fique nas costas de uma só obra que pode ser encarada de maneira totalmente diferente por alguém com as mesmas experiências que eu. Muitos games no mercado estão prontos para serem analisados sob a ótica da deficiência, mas poucos a abordam.

No 43º dia, após a morte e funeral de Gideon Fleet, herói de New London, a nevasca chega ao seu ápice. As estufas congelaram e estão inoperáveis, os operários da serralheria se recusam a sair de casa por medo do frio. Ainda assim, os cidadãos mantém as enfermarias em funcionamento com temperatura adequada, usando aquecedores internos e reforçado o isolamento nas paredes, cientes de que qualquer um entre eles pode acabar parando lá a qualquer instante.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

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