Eis o Filho da Luz: o homem que tatuava suas vítimas

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Crime e Castigo no Brasil

Eis o Filho da Luz: o homem que tatuava suas vítimas

Febrônio Índio do Brasil foi o primeiro criminoso a ser julgado como louco no país.
LF
ilustração por Luiza Formagin

A repórter Marie Declercq é fascinada por histórias de crimes bizarros. Começou com os romances de detetive, mas depois ela sacou que a realidade sempre vence a ficção no quesito crueldade. A cultura da violência do Brasil infelizmente é um terreno fértil, e aqui você vai conhecer os crimes mais bizarros e brutais da história do país.


Em um lugar ermo vi aparecer uma moça branca de cabelos louros e longos, que me disse que Deus não morrera e que eu teria a missão de declarar isso a todo o mundo. Deveria nesse propósito escrever um livro e tatuar meninos com o símbolo d.c.v.x.v.i., que significa Deus vivo, ainda que com o emprego da força. Vi um dragão, um monstro enorme, de cabeça comprida, coberto de pelos longos de cor vermelha de fogo que, ao começo, procurou conquistar-me, oferecendo dinheiro, glória, colocações, se abandonasse a missão de que fora incumbido e não escrevesse o livro.

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Apareceu-me aquela mesma moça branca de cabelos compridos, que me mandou adquirir uma espada para lutar com o dragão. […] O dragão transformou-se num boi, que logo que me vê procura alcançar-me e matar-me. Quando o avisto, trato de pular a uma árvore. Sinto que a árvore cresce, quando ele se aproxima, e diminui quando se afasta.
Trecho extraído do ensaio “Eu sou o Filho da Luz” publicado na Revista Fon-Fon em setembro de 1927. O texto é um relato de Febrônio Índio do Brasil, acusado de estrangular e estuprar dois jovens no mesmo ano.

Antes de se tornar uma espécie de bicho-papão da década de 1920, a história de Febrônio Índio do Brasil já tinha passagens macabras. Até ser preso em 1927, após ser acusado pela morte de uma criança de 10 anos e um jovem de 20, seguia a vida de andarilho e fazendo bicos, além de aplicar golpes e se passar por médico ou dentista em algumas cidades.

Febrônio nasceu em 1895 em São Miguel de Jequitinhonha, Estado de Minas Gerais. Segundo ele, foi o segundo de 14 filhos do casal Theodoro Simões de Oliveira e Reginalda Ferreira de Mattos. Os poucos relatos de sua infância são sobre o temperamento violento de seu pai, o “Theodorão”, lavrador e açougueiro, um alcoólatra que batia na esposa e nos filhos.

O temperamento irascível do pai foi um dos motivos que fez Febrônio sair de casa aos 12 anos na companhia de um caixeiro-viajante. Nas suas viagens chegou a ser alfabetizado e trabalhar como copeiro. Ele se alfabetizou na cidade de Diamantina (MG), trabalhou em casas de família em Belo Horizonte e chegou até o Rio de Janeiro onde supostamente começou a delinquir.

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Os primeiros registros policiais vieram por volta de 1917 dos mais variados motivos: fraude, roubo, vadiagem, suborno, furto e chantagem. O que mais impressionou as autoridades foi a infinidade de nomes e origens que falseava ao ser registrado na delegacia. Foi em 1920, encarcerado na Colônia Correcional de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, que Índio recebeu a visão da mulher branca e de cabelos compridos. Nasceu ali o Filho da Luz.

Quando saiu da Colônia de Ilha Grande seus crimes e golpes começaram a tomar formas mais sinistras. Montou uma espécie de cooperativa com um dentista misterioso chamado Bruno Ferreira da Gabina (cujo nome chegou a ser apropriado pelo próprio Febrônio em algumas de suas passagens criminais), chegou a matar um paciente e também foi visto com crianças em situações esquisitas. Bruno desapareceu após encontrar em contato com a mãe, alegando ter encontrado a verdadeira religião. A polícia não conseguiu provar, mas restou a suspeita que Febrônio matou Bruno e assumiu sua identidade para aplicar golpes.

Difícil saber se as histórias contadas por Febrônio e pelos jornais mantinham algum compromisso com a verdade, mas além dos crimes cometidos anteriormente, foi acusado de ser encontrado cozinhando um crânio humano furtado no Cemitério do Caju (Febrônio disse que furtou para estudos médicos). Em 1926, Febrônio foi preso na mata do Corcovado, próximo a um precipício. Denunciado por pedestres que andavam por lá, foi visto nu, com uma faixa amarela amarrada na cintura e com uma espada em mãos. Segundo os relatos de Febrônio, ele estava ali a pedido de Lúcifer, o Príncipe das Trevas, para um duelo.

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Febrônio tatuava o mesmo desenho que carregava no peito nas vítimas escolhidas para um sacrifício em nome de Deus.

Coincidentemente ou não, foi em 1926 quando começou a escrever o seu livro Revelações do Príncipe de Fogo no qual relatou suas visões religiosas e de mundo. O livro é uma mistura do melhor do Misticismo Aleatório Brasileiro: trechos da Bíblia, princípios espíritas, ideias protestantes. Tudo isso o levava a conclusão que ele deveria sacrificar três crianças para livrar o mundo dos fins dos tempos.

Antes de praticar os sacrifícios, Febrônio chegou a tatuar três homens jovens. Um deles foi o Jacob Edelman, um jovem alemão cuja família veio ao Brasil fugindo da Primeira Guerra Mundial. Febrônio conheceu Jacob no hospício onde estavam antes internados e logo os dois começaram uma relação que suspeita-se ser amorosa.

Não se sabe ao certo pelas notícias e depoimentos na justiça, mas presume-se que foi pela influência Jacob que Febrônio começou a desenvolver uma admiração pela raça ariana e o povo alemão, expressados inclusive no seu livro. Quando os dois estavam já de alta do manicômio, Febrônio tatuou Jacob e um jovem de 17 anos chamado Octávio de Bernardi em um local deserto em Mangaratiba, município do litoral sul fluminense. No início de agosto, outro jovem, Manoel Alves, foi tatuado com as mesmas inscrições.

Dias depois, Febrônio iniciou seu ritual de sacrifício.

No dia 13 de agosto de 1927, Índio perambulava pela estrada que ligava Jacarepaguá com a Várzea da Tijuca. Passando pelas moradias simples da região, acabou puxando papo com um menino na frente de casa chamado João Marimba. Por ele ficou sabendo que o tio, Alamiro José Ribeiro, estava procurando emprego.

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Esperto, Febrônio disse que era motorista de uma companhia de ônibus carioca e estava atrás de alguém para fazer um trabalho simples. A família de Alamiro recebeu com alegria a notícia, já que o jovem de 20 anos tinha feridas nas pernas que o impediam de trabalhar. Com mais alguns minutos de conversa descolou uma janta na casa. Já com a noite comendo, disse que precisaria levar Alamiro até a companhia, já que este começaria logo de manhã.

Febrônio levou a vítima pra dentro da mata fechada quando a noite já predominava. Insistiu em um certo ponto para pernoitarem e assim tentou avançar sexualmente sobre Alamiro. Houve uma intensa luta corporal, mas Febrônio conseguiu estrangular o jovem com uma corda de cipó e tatuá-lo no tórax. Deixou Alamiro no mesmo lugar, com as roupas jogadas por cima do corpo nu.

Menos de uma semana depois foi a vez de João Ferreira, o “Jonjoca”, ser outra presa. Febrônio atraiu a criança de 10 anos sob promessas que ele trabalharia como copeiro para um oficial do Exército. Disse nome e endereço do oficial para a mãe do menino, que hesitou em deixar o filho tão pequeno acompanhar o desconhecido, mas foi persuadida pela prosa talentosa de Febrônio. Jonjoca foi morto da mesma forma que Alamiro, mas sem chances de travar uma resistência contra o ágil Febrônio. Seu corpo foi deixado no meio do mato, marcado pela tatuagem-talismã.

As mortes consistiam em um ritual completo. Febrônio usava um conjunto de agulhas amarradas por um barbante e usando fuligem molhada de tinta, mergulhava as agulhas e tatuava o mesmo desenho que trazia consigo. A sigla D.C.V.X.V.I. significa Deus, Caridade, Virtude, Santidade, Vida e Irmã da Vida. Para ele, era um talismã para que as vítimas renascessem depois.

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O corpo de Alamiro foi encontrado três dias depois e o crime bizarro conquistou os jornais. Não demorou para que “O crime da Ilha do Ribeiro” recebesse atenção completa da 4ª Delegacia, movendo dezenas de policiais para encontrar o culpado. Na cena do crime, Alamiro ainda tinha a corda de cipó enrolada em volta do pescoço e um boné jogado ao lado. Não demorou muito para que Febrônio fosse capturado por dois investigadores na Estação Barão de Mauá no dia 31 de agosto de 1927. O boné que esqueceu na cena do crime foi essencial para descobrir Febrônio, já que o mesmo havia roubado de um ex-companheiro de cela quando foi solto.

Na delegacia, Índio não demorou em comprar o rótulo de monstro. Sorriu para as fotos da imprensa, contou sobre sua trajetória e sua cosmogonia mística que lhe rendeu um livro. Era o bicho-papão em carne e osso para a sociedade carioca. Suas falas eram regadas de delírios, insights religiosos e histórias duvidosas. Suspeitaram também do homem ter matado outras crianças desaparecidas na cidade, mas não conseguiram provar.

Febrônio confessou a morte de Alamiro, mas demorou quase uma semana para admitir a morte de Jonjoca. Ele manteve-se firme mesmo com os apelos da mãe da vítima para o assassino revelar onde estava o cadáver para enterrá-lo. Jonjoca foi encontrado Ilha do Ribeiro, o mesmo local onde Alamiro foi deixado.

No decorrer do processo criminal de Febrônio, a comunidade jurídica brasileira passou por uma inovação em termos de saúde mental. Doutores influentes da medicina expressaram suas opiniões sobre o estado mental de Febrônio e a urgência do assassino ser internado em um hospício – e não processado e encarcerado como um criminoso comum. Foi o triunfo da psiquiatria sobre a lei e em 1929, o criminoso foi finalmente internado em um hospital e foi avaliado à luz da psiquiatria e psicanálise (na época uma ciência bastante avançada) por Heitor Carrilho.

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Pela avaliação de Carrilho, Febrônio era um homem tomado pela loucura, o delírio e dono de uma sinceridade enorme sobre suas convicções místicas expressas no seu livro. “O que impressiona, desde logo, na psicologia de Febrônio é sua grande e evidente insensibilidade moral”, escreveu no laudo. “Está preso, responde a vários processos e, no entretanto, parece estar no melhor dos mundos. Ri dos seus companheiros de infortúnios, ridiculariza-os.”

O psiquiatra concluiu no laudo que Febrônio sofria de psicopatia constitucional, caracterizada por desvios éticos, perversões instintivas “expressas no homossexualismo” com impulsões sádicas. Por isso, ele deveria ser mantido no manicômio, já que não poderia viver em sociedade. Foi uma das primeiras decisões que acatou a psiquiatria e moldou como a justiça brasileira lida com casos de insanidade mental. Atualmente, se comprovado por meio de laudos médicos a inimputabilidade de um criminoso, este terá de ser internado em um hospital de custódia tendo seu estado mental reavaliado a cada ano para definir se poderá ser solto.

Febrônio prestando depoimento na delegacia após ser preso pela morte de Alamiro. Todos os documentos foram disponibilizados por Pedro Ferrari.

Segundo o doutor em História e professor na UnB Pedro Ferrari, Febrônio também foi condenado ao esquecimento, já que todas as cópias do Revelações do Príncipe de Fogo foram recolhidas e destruídas. No entanto, ele acabou chamando a atenção de artistas influentes como Mário de Andrade, que chegou a visitar o criminoso algumas vezes no manicômio. Inclusive, uma das poucas cópias disponíveis pertenceu ao próprio Mário de Andrade. Pedro digitalizou o livro inteiro com as anotações do escritor e disponibilizou na internet.

“O discurso do Febrônio nos laudos médicos, aparece ele construindo a ideia de que ele antes de ser preso era um homem branco, rico e poderoso e depois de ser preso o psiquiatra roubou a identidade dele. Guardou numa caixa no escritório e nisso Febrônio transformou-se em um homem preto, pobre e desgraçado. Minha hipótese pessoal é que a figura de Febrônio ajudou o Mário de Andrade a construir o Macunaíma”, explica.

Febrônio também virou marchinha de carnaval na época e história que as mães contavam aos filhos para fazê-los dormir na hora certa. Já internado, chegou a fugir uma vez por descuido dos enfermeiros, mas logo voltou ao hospital. Morreu em 27 de agosto de 1984 de enfisema pulmonar. Seu corpo foi inumado no Cemitério do Caju.

*Os documentos, recortes de jornais e outras informações foram concedidas por Pedro Ferrari, cuja tese de doutorado foi sobre Febrônio.

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