Seria o trap a ponte entre o rap e o funk?

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Seria o trap a ponte entre o rap e o funk?

Filhos da mesma mãe separados na adolescência, rap e funk estão novamente se unindo graças ao sucesso comercial e artístico do gênero de Atlanta.
Amanda Jungles
ilustração por Amanda Jungles

Em meados dos anos 2000, o DJ e produtor norte-americano Afrika Bambaataa visitou o Complexo do Alemão pela primeira vez. Bambaataa foi levado a um baile funk pelo carioca DJ Marlboro e, ao chegar e ver as pessoas dançando o ritmo, seus olhos se encheram de lágrimas. Marlboro disse ao veterano: “Isso tudo foi você quem criou.”

Apesar de ser impossível apontar um só criador, não há como negar que funk e hip hop são filhos das mesmas mães. A black music, o freestyle, o funk norte-americano e a inovação tecnológica foram os elementos em comum que proporcionaram as bases para que os dois ritmos se erguessem — em tempos diferentes, em países diferentes. Não à toa, além de atribuir a fundação do ritmo a Bambaataa, DJ Marlboro também já afirmou que “Planet Rock” foi o marco-zero do funk carioca.

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Das batidas rítmicas e palavra-falada e rimada, surgiram funks batizados como “Rap do Silva”, “Rap das Armas, “Rap da Felicidade” — de começo, era difícil classificar exatamente qual era a diferença entre os dois ritmos. Essa linha tênue começou a se tornar mais espessa quando o funk e suas inerentes experimentações estéticas começaram a apontar para outros caminhos durante os anos 2000.

Como explica o musicólogo e pesquisador de funk Carlos Palombini, o funk carioca se origina da ressignificação e apropriação de uma grande quantidade de gêneros. "No final dos anos 2000, o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora conseguiu erradicar, se não o tráfico, os bailes de favela onde essa experimentação acontecia. Conquistar novos espaços se tornou uma questão de sobrevivência. Daí porque, em parte, ocorreu a aceleração dos processos de hibridização."

Dessa abertura, o céu foi o limite para o funk: se expandindo com força para outras regiões do Brasil, o gênero ganhou novíssimos contornos — daí o surgimento do bregafunk, o funk atmosférico de Belo Horizonte e o 150 BPM dos bailes do Rio. E isso proporcionou que, de alguns anos pra cá, o ciclo de ligações entre o rap e o funk tenha começado a se fechar com a ascensão de uma nova influência para os produtores e MCs principalmente paulistas: o trap rap.

O estilo de rap do sul dos Estados Unidos, filho do dirty south, erguido por rappers como Chief Keef e Waka Flocka Flame e popularizado por Migos, Travis Scott, Gucci Mane e lá vai pedrada, tem aparecido como influência clara para diversos MCs recentemente. Enquanto o autor do funk mais tocado no Brasil em 2017 MC Fioti se juntou ao frequente parceiro MC Lan sobre um sample de “Halftime”, do Young Thug, em “Quem Diria Ladrão”, este deu uma copiada na levadinha de “Wyclef Jean”, single mais recente do rapper, pra fazer seu “Maquiavélico 2”. A dupla também já publicou nas histórias do Instagram alguns teasers de uma parceria que samplearia o single “Look At Me!”, do rapper XXXTentacion.

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Seria impossível não citar, inclusive, a própria “Bum Bum Tam Tam”, hit gigantesco de Fioti que ganhou no mês passado uma versão com um verso do Future, certamente um dos maiores nomes do trap rap de Atlanta. “Baile funk sempre tem em todas comunidades, agora o rap sempre foi mais pelo centro, onde eu não ia muito”, me fala Fioti em entrevista por WhatsApp, contando que a distância física dos rolês de rap nunca foi um empecilho. "Sempre ouvi muito Racionais e muito NWA na minha infância, e me lembro de sempre querer conseguir fazer o que o rap internacional fez, que é sair um pouco da discriminação e se tornar acessível a todos."

Ainda em São Paulo, um grande entusiasta dos trap funks tem sido MC Pedrinho, que chegou até a lançar duas parcerias autotunadas com o grupo Pollo, “Hoje Eu Vou Ficar Louco” e “Fim de Semana na Quebrada”. O ponto de partida pra essa fase na carreira de Pedrinho foi a parceria com o MC e produtor Jhef, “Nois no Rolê”, que de novo colocou Young Thug no pódio de rapper mais sampleado do funk ao ser construída por cima da batida de “Harambe”.

Jhef, cabeça da empresa de produção e mixagem My House Produções, começou como cantor, beatmaker e participante de batalhas de rimas em São Paulo antes de mergulhar no trabalho de rapper e cantor de R&B. “Quando eu ainda era criança o irmão mais novo do meu pai ouvia muito rap nacional. Aos seis anos de idade, eu já tinha uma caixa com inúmeras fitas cassete do gênero. Com o passar do tempo, eu senti necessidade de me expressar e procurei conhecimento sobre como produzir uma batida, captar uma voz, e fui evoluindo aos poucos”, me conta o produtor por e-mail.

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Depois de anos focado no rap, a ligação com o funk começou quando Jhef foi convidado pra compôr o primeiro single da YouTuber Dani Russo, “A Melhor do Baile”. “Isso ocasionou interesse em outros artistas do gênero, como MC Kevinho, para quem fiz duas composições que rodaram por todo o Brasil, e outros MCs consecutivamente”. Além de “Nois no Rolê”, Jhef também usou de sua influência no meio do funk para lançar a faixa “Enlouquecido”, que teve mais de um milhão de visualizações no canal da KondZilla.

Enquanto em São Paulo a influência do trap sobre o funk — e vice-versa — aconteceu de forma menos orgânica e mais lenta, em BH, onde essa via de mão dupla também existe, os rolês de rap e funk parecem caminhar mais juntos. MC Papo, conhecido por mesclar os dois gêneros desde o começo dos anos 2000, fala que ambos eram parte do dia-a-dia da juventude periférica da capital mineira.

"A gente curtia funk pra curtir nossas festas, pra dançar, pra socializar, mas dentro de casa a gente escutava um Racionais, um SNJ, um 509E, um Realidade Cruel, um Consciência X Atual e por aí vai", fala o MC, que conta que, do começo da década pra cá, essa relação ficou ainda mais estreita. "Enquanto o funk rolava mais na zona norte, a galera que fazia maior peso no rap era do centro-sul. A galera lá é mais ligada nessas coisas de São Paulo. E de uns cinco ou seis anos pra cá, essa galera começou a curtir funk. E aí o funk foi pra cidade inteira e começou a misturar com as outras tribos também."

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Essa aproximação possibilitou que a nova geração de MCs unisse mais seus interesses por ambos os gêneros — enquanto Clara Lima honrou a memória de MC Zói de Gato na faixa “Vida Luxo” de seu EP Transgressão (2017), Djonga convidou o funkeiro MC Rick para colaborar no legítimo trap funk “Me Orienta”, também do ano passado. Para Djonga, essa aproximação também representa uma mudança estilística no funk belo-horizontino. “[Aqui em BH] o bagulho sempre foi mais funk consciente, com a galera fazendo passinho. O Rick faz um som numa pegada putaria, com uns beat muito foda. Umas ideias pra frente, também, uma sagacidade pra compôr. Umas letras engraçadas”, fala o rapper, por telefone.

A observação de Djonga acende, também, outras coincidências entre trap e funk que vão muito além dos samples. As letras hedonísticas sobre sexo, tráfico de drogas e dinheiro da turma de Atlanta podem se relacionar diretamente com o funk putaria, proibidão e ostentação muito mais do que estas relembram os motivos conscientes de uma vasta maioria do rap nacional, por exemplo. Afinal, enquanto Brown fala dos que juntam dinheiro ou inimigos pela rua, Lan sabe que uns contam dinheiro, outros contam história, mas ele só conta tcheleka.

As misturas entre trap e funk não são novidade para uma galera beatmaker que foi extensamente acompanhada pelo THUMP de alguns anos pra cá. Tanto de São Paulo — como Bad$ista, Viní, Sants, Tropkillaz — quanto do Rio de Janeiro — como Carlos do Complexo — e até da Bahia, como bem exemplifica a trupe de Salvador que se denomina Trap, Funk & Alívio.

Essa troca entre os dois gêneros tem se tornado também uma forma de posicionamento de mercado. O papo já vem rolando há alguns anos, mas agora parece mais claro do que nunca que funk e trap se equiparam por ser os sons populares nas periferias de seus respectivos países; ambos um expurgo da juventude negra e pobre. Durante o lançamento da mixtape Calzone Tapes Vol. 2, The Boy, da Recayd Mob, comentou como ambos os gêneros ocupam lugares socialmente e mercadologicamente parecidos. “Assim como o trap é o carro-chefe da música internacional, o funk é o carro-chefe da música no Brasil. O funk manda”, disse. Djonga concorda: “É tudo música de preto. Feita de nós pra nós, e pra todo mundo também.”

Os números de ambos os gêneros musicais também falam alto. Enquanto em 2017 o hip hop se tornou, pela primeira vez, o gênero mais escutado do ano nos Estados Unidos (segundo os álbuns mais tocados, muito graças ao trap rap), o funk estoura hits cada vez maiores pelo Brasil e começa até mesmo a quebrar barreiras internacionais.

“Os dois [gêneros] hoje tocam em todas as classes sociais e são música que alcançam tanto a periferia quanto bairro médio-alto”, fala Jhef. “Vejo o trap e o funk assumindo o mesmo peso no mercado muito em breve.” Fioti completa: “O funk tem tudo pra ser o novo sucesso mundial, junto com o trap.”

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