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Entretenimento

O Senhor Cérebro

Júlio Bressane só faz o que quer, mesmo que a gente não entenda nada (mas, nesse caso, esse é um problema nosso, e não dele).

Sempre maldito, Júlio Bressane não consegue parar de filmar. Há quase 40 anos, criou uma produtora, a Belair, como fruto de um mal estar. Era um foda-se para o sistema, uma revolta na tela e no set feita em parceria com o também diretor Rogério Sganzerla. Os filmes que eles produziram, com baixo orçamento e poucas diárias de filmagem, acabaram interditados. Foram proibidos pela ditadura.  Fodidos pela repressão e alheios a essa merda que engessou nossos criadores por mais de uma década, os dois viraram marginais, aos olhos da política, e acabaram na Europa, vivendo e filmando por um tempo. Aos 63 anos, o diretor acaba de lançar A Erva do Rato, longa em que coloca Alessandra Negrini, sua atriz-fetiche, em cenas pesadas com um roedor—tentando recriar, visualmente, partes do universo do escritor Machado de Assis.  Júlio Bressane só faz o que quer, mesmo que a gente não entenda nada (mas, nesse caso, esse é um problema nosso, e não dele).

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Vice: Que lembranças você ainda tem da Belair?
Júlio Bressane: Bom, em 1969, fiz o Matou a Família e Foi ao Cinema e O Anjo Nasceu. Estava no Festival de Brasília e me encontrei com Rogério, que tinha levado A Mulher de Todos para lá. E criamos a Belair como produto de uma insatisfação, um mal estar com aquele momento. Era uma reação à política e aos procedimentos políticos. A burocracia andava dominando e, na verdade, envenenou tudo. O que você vê hoje, por exemplo, é uma esterilização da imagem artística.  E com a produtora vocês fizeram alguns projetos…
Isso foi em janeiro, fevereiro, março de 1970. Ela durou poucos meses e fizemos alguns longas que acabaram nem sendo exibidos. Nós tínhamos um plano, um projeto, de fazer 20 filmes. Nossa proposta era a de uma retomada. Recriamos, para a nossa cultura, aquelas produções com orçamento baixo e tempo curto de realização que já existiam desde o cinema mudo. E tinha tudo para ser uma ação bem sucedida. E mais, era uma alternativa para o temperamento do público que teria um opção. E o que aconteceu? 
Nada disso se deu, dois filmes foram interditados e os outros sofreram com a censura. O próprio Matou a Família ficou preso por 20 anos. Então fomos para a Europa, eu, o Rogério e sua mulher, a Helena Ignez. Lá, terminei Cuidado, Madame. Logo depois encerrou-se a Belair.  No exílio você finalizou o Madame e filmou outros…
Aquele foi um momento muito importante na vida de quem saiu do Brasil. Surgiu ali a possibilidade de fugir um pouco de uma mediocridade e, com isso, iniciar um esforço de autotransformação. Pelo menos foi o que tentei fazer.  Nessa época, vocês ficaram conhecidos como cineastas marginais. De que forma isso foi ruim? 
Esse rótulo foi feito para matar nós todos. E, de alguma maneira, eles conseguiram. Foi um epíteto completamente artificial para afastar essa mentalidade que criamos. Acabamos envolvidos em uma guerra econômica, uma marginalização dos meios de produção. Fomos tirados da jogada apenas por uma vocação cangaceira, criminosa.  O que realmente pegou?
Acabamos fazendo longas que intensificavam processos visuais (como A Família do Barulho, Sem Essa, Aranha, Betty Bomba A Exibicionista, Cuidado Madame) que faziam movimentar a ideia invisível. Fomos atacados por essa patologia da maldade que alijou um processo criativo.  Para uma nova proposta artística, esse boicote foi bastante desanimador, não? 
Foi uma coisa que nos enfraqueceu muito. O Rogério, por exemplo, foi visto como um criminoso, mas ele era um gênio com um cinema muito sofisticado e popular, mesmo com todas as dificuldades de produção. Se não tivesse essa corda permanente envolta do pescoço, teria desenvolvido muito o cinema brasileiro como um todo.

Mas essa revolta cinematográfica da época ainda continua em você?
Sigo nela de maneira involuntária. Tenho necessidade do cinema. Mas não quero ir contra a maré, é intuitivo mesmo. Você ainda assiste muita coisa?
Muita. Temos esse cinema que está ai, uma espécie de pele de rinoceronte na tela. A questão artística, como uma experiência de pensamento, desapareceu. Não existe mais sensibilidade em coisa alguma.  Mesmo assim, está lançando A Erva do Rato.
É quase um milagre ele sair nessas condições. E tive mais repercussão na Europa do que aqui, lancei no Festival de Veneza e depois na França. Lá a diferença é que é possível dirigir para um determinado público. Aqui é tudo ou nada. Ou tem 100, 200 cópias e ele fica uma semana em cartaz ou lança em uma sala só.  O Erva está saindo com quantas cópias?
Em São Paulo é uma cópia só.  Nesse filme, você reinvestiga a obra do Machado de Assis—sua primeira imersão nesse universo foi em Brás Cubas, de 1985. Vê muitas imagens no que ele escreveu?
Minha leitura do Machado do Assis é bem antiga e permanente. Para A Erva do Rato, tirei dois traços duradouros, engramas de dois contos dele, A Causa Secreta e Um Esqueleto. Fiz uma ficção em que eles estão presentes, mas não adapto propriamente os textos. É claro, quando você toca um símbolo forte como o Machado, naturalmente aquilo contamina tudo. Procurei, de algum jeito, o estilo dele—uma certa maneira enganosa de realismo, uma simplicidade aparente das relações e dos sentimentos, um sabor de romance de lágrimas.  Gosto particularmente do diálogo em que os dois personagens sem nome (interpretados por Selton Mello e Alessandra Negrini) conversam sobre o fato de ter um espectador na sessão de fotos que eles estão prestes a realizar. Fala do fim do cinema ali…
É uma fantasia da própria arte, um comentário sobre o desaparecimento do cinema. Em todo o mundo só se discute “o naufrágio do espectador”. O público não quer mais isso, não tem mais dinheiro. Não tem mais tempo, não tem mais cultura para isso e não tem mais gosto. Venceu a civilização do trabalho. Você se especializa no seu trabalho, é consumido por 10, 12, 14 horas por dia, vive em função daquilo e recebe um salário. (Ele interrompe a resposta e diz:). Olha, preciso sair agora, `as 7 horas, tenho uma pessoa aqui me esperando. Será que a gente consegue terminar isso…. Última então. Você foi do cinema marginal à marginalização do cinema. Como se vê dentro da produção atual?
Considero minha própria existência um verdadeiro milagre. Se não é um milagre é algo muito parecido com isso. Alguma coisa entre costurar o impossível com o irrealizável. Sou assim.