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VICE Sports

É possível curtir a Rio 2016 sem se sentir um babaca?

Perguntamos ao historiador do esporte David Goldblatt como devemos lidar com uma competição repleta de problemas e que parece querer nos ocultar o pior lado a todo custo.

Aquele abraço! Foto: Antônio Lacerda/ EPA

À medida que o custo das Olimpíadas cresce a ponto de parecer uma farsa teatral, a preocupação com direitos humanos nas nações-sede se deteriora (alô, Rio de Janeiro, aquele abraço!) e, claro, cada vez menos países demonstram vontade de receber o evento. O Comitê Olímpico Internacional (COI) está numa encruzilhada. Precisa definir os novos rumos da tumultuosa história das Olimpíadas para que o evento não perca seu apelo, sua razão de existir.

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Nas últimas semanas, o presidente do COI, Thomas Bach, veio a público para admitir que a competição precisa se renovar. "Precisamos mudar porque o esporte é tão importante hoje que não dá para ignorar o resto da sociedade", disse, no lançamento da Agenda 2020, um conjunto de diretrizes que visa reformar as Olimpíadas. "Não vivemos numa ilha, vivemos no meio de uma sociedade moderna, diversa e digital. Precisamos nos envolver com essa sociedade com um diálogo respeitoso."

Para entender melhor o que precipitou a reviravolta radical do COI e avaliar se as promessas de igualdade, transparência, respeito pelos direitos humanos e pelas comunidades marginalizadas são viáveis para o novo movimento olímpico moderno, seria preciso consultar uma enciclopédia robusta. Por sorte, o historiador do esporte David Goldblatt escreveu justamente esse livro: The Games:A Global History of the Olympics [Os Jogos: História Global das Olimpíadas, em tradução livre, sem edição em português].

Goldblatt articulou a obra sem o aval higienista do COI e logo de cara retratou o fundador do comitê, Pierre de Coubertin, como um "oportunista, um megalomaníaco cheio de devaneios", e não como não como um servidor dedicado à visão olímpica. Com um vasto leque de fontes primárias e secundárias que abrangem 150 anos de jogos, ele costurou uma história verossímil das Olimpíadas como empreendimento falho e cuja existência merece uma séria reavaliação.

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Depois de escrever quase todo o livro, deu um passo para trás e descansou durante uma semana para organizar melhor os pensamentos e redigir o capítulo de conclusão. "Quanto mais eu me aprofundava, mais obscuras ficavam as minhas conclusões, e sobrava cada vez menos espaço para defender os Jogos", ele me contou recentemente no conforto de seu lar, em Bristol, na Inglaterra

Com as Olimpíadas Rio 2016 prestes a começar — uma das edições mais problemáticas da história dos jogos em termos socioeconômicos —, conversei com Goldblatt sobre a longa trajetória do evento até a crise atual e perguntei como nós, fãs de esporte e decência humana, devemos lidar com a versão moderna dos Jogos Olímpicos.

O papo rendeu mais de uma hora. Esta entrevista foi editada por motivos de concisão e clareza.

VICE Sports: Trabalharei na Rio 2016, mas cheguei ao fim do seu livro e me perguntei: o que vou cobrir, afinal? Um desastre socioeconômico? Um evento esportivo? Um programa de TV?

Goldblatt: Eu, particularmente, estou nesse embate. Eu sabia o caminho que queria tomar quando comecei o livro, mas quanto mais eu me aprofundava, mais obscuras ficavam as minhas conclusões, e sobrava cada vez menos espaço para defender os Jogos. Percebi, também, como o COI é ágil em se adaptar aos ventos dominantes, encontrando novas justificativas, novos aliados e novas promessas para estampar as Olimpíadas.

Não sei se você leu a Agenda 2020, mas as passagens mais rebuscadas do texto — e isso me cheira a intervenção de Bach [presidente do COI] — são precisamente sobre esse assunto. E cá estamos nós, né. O que podemos fazer? Até quando?

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Thomas Bach, presidente do COI, resonsável por uma tarefa pouco invejável: conduzir o COI a uma nova era. LAURENT GILLIERON // EPA

Parece que os Jogos já não buscam gerar impactos positivos e miram mais em virar tópico popular. Ninguém mais se importa com essa promessa, né?

Acho que isso aconteceu em partes porque o modelo de relacionamento entre a nação-sede e o COI foi construído na era de Antonio Samaranch [presidente do COI de 1980 a 2001], quando ninguém dava a mínima. Não há floreios ideológicos por trás do evento. Querem apenas que as pessoas deem de ombros e foquem nos jogos.

Bach e algumas figuras mais progressistas do COI — também não cabe a nós pintar todos eles como uma massa amorfa de ignorância e reacionarismo — notaram que há um problema. Eles enxergam o problema e estão tentando agir, com a Agenda 2020, para mudar o processo de escolha das sedes dos jogos futuros e encorajar a reutilização de recursos, mas estão presos a um modelo que foi desenvolvido para apresentarem espetáculos colossais.

Lembro-me de Samaranch no fim de todos os eventos (exceto Atlanta), dizendo: "melhor Olimpíada de todos os tempos!" Assim era o ciclo festivo da era Samaranch. Uma vacuidade ideológica cada vez maior. E caso alguém quisesse injetar algum tipo de mobilização social, não teria instrumentos para tanto.

O que quero dizer é: mesmo em um mundo de relações internacionais e cultura global, temos pouquíssimos momentos de reflexão sobre a humanidade atual, cosmopolita e, mesmo que sejam limitados, isso já é muito bom e profundo. Então, quando falamos em um evento desse porte, desmembrá-lo e destrui-lo seria uma decisão e tanto. É muito mais difícil desconstruir coisas do que construir. Sou um pouco conservador quanto a isso, e acho que as Olimpíadas ainda têm lá sua importância global.

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Outro ponto é que o evento não precisa ser mais organizado desse jeito. Por que sempre concentram tudo em uma cidade só, por exemplo? De qualquer forma, as competições de vela não costumam ser na mesma cidade. Waymouth não ficava em Londres. Então, por que não optam por uma rede de cidades, sabe? Assim, não precisariam construir tanta coisa. Esses são os custos mais elevados do evento todo. Além de segurança, que hoje custa cerca de 2 bilhões de dólares, e da produção dos jogos, digamos que custe mais 2 bilhões — metade desse valor poderia ser coberto com a venda dos direitos de transmissão. Um evento muito mais modesto e muito mais popular é possível.

Não precisamos de padrões absurdos assim, essa escala toda. A cerimônia de abertura é um ponto curioso. Há quem tire sarro daquela dramaticidade toda, mas a cerimônia tem mais espectadores do que os cem metros rasos de atletismo. Os comunistões da China gastaram 150 milhões de dólares com a abertura. No livro, escrevo que é como produzir Avatar para uma única exibição. Os brasileiros estão trabalhando com cerca de cinco milhões de dólares. Então, sabe, mesmo com austeridade, é possível. Dá para fazer.

Acho que outro ponto a se considerar, a respeito das Olimpíadas, é a ideia de que mais esportes na televisão incentivam as pessoas a se movimentarem mais, e assim o mundo fica mais saudável, certo? Bom, todas as evidências apontam para o contrário. Inclusive, em Londres, que levou as metas mais a sério do que qualquer outro país, os números de pessoas ativas caíram.

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Um negócio que adorei descobrir com o livro foi a flexibilidade intelectual do fundador das Olimpíadas, de Coubertin…

Ah, sim, ele foi oportunista, um megalomaníaco cheio de devaneios. Digo, é um cara extraordinário, e sinto pena dele, de certa forma. Mas, certamente, os biógrafos do COI não ajudaram muito ao maquiá-lo tanto assim.

O interessante é que, em primeiro lugar, ele tomou uma posição clara em relação aos esportes, isso antes de por as mãos nos jogos. A Olimpíada é uma espécie de segunda fase. A primeira fase foi sair da Escola dos Jesuítas e se perguntar: "Porra, e agora, que que eu faço?" Servir no exército? Hum, não. Estudar Direito? Não. Serviços internacionais? Também não. Acho que vou ficar por aqui mesmo, na faculdade de ciências sociais, cursando algumas aulas aqui e acolá." Então, ele fez uma viagem com o colégio, onde leu o livro "School Days", de Tom Brown [um romance de 1857 situado na famosa Rugby School, escola inglesa de elite] e foi tomado por uma forte onda de cristianismo e ficou fascinado com a ética esportiva das escolas inglesas do fim do século XIX, emprestada das faculdades de alto escalão dos Estados Unidos.

Ele era bem ativo em círculos esportivos, organizou e realizou torneios de rugby e afins até 1891. Um dia, ele viu William Penny Brookes montar uma feira rural bem diferente para a classe operária, os Jogos Olímpicos de Wenlock. Os dois papearam e foi aí que ele ficou atiçado com a ideia dos jogos. Inclusive, não sei se você se lembra, mas antes dele começar o projeto, uns caras da França que eram influentes nos meios culturais, esportivos e políticos lançaram a ideia: "Que tal uma Olimpíada?" Ao que ele respondeu: "Que é isso! Que ideia ridícula!"

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Não precisamos de padrões absurdos assim, essa escala toda

Enfim, o papo com Brookes deu liga e amarrou vários aspectos da vida dele. A ética das escolas inglesas de elite, o sonho dele de deixar a França um pouco mais britânica e americana nesse quesito, seu internacionalismo. O espírito cosmopolita dele não era muito profundo, mas era bastante sincero.

A verdadeira força motriz foi o ideal de ética das escolas inglesas, reviver os jogos olímpicos com base nisso. Sabe, ele sempre curtiu o lado espiritual e religioso da coisa. Isso não aparece nos livros da história olímpica. O aspecto dos jogos antigos que de Coubertin resgatou — ainda que não muito, e ele inventou boa parte desse causo — foi a experiência religiosa para aqueles que estavam presentes. A proposta era se divertir, acompanhar corridas, encontrar colegas e, claro, louvar Zeus. Isso tinha um significado profundo para os participantes. O atleticismo fazia parte de uma experiência espiritual, religiosa. E de Coubertin imaginava os jogos olímpicos como uma espécie de renascimento, um neo-helenismo, uma forma de culto semirreligioso entre cavalheiros atléticos. E esse é o cerne da visão dele. Sua maior motivação era encontrar um lugar no mundo para celebrar isso. E ele descreveu os jogos como uma exibição de virtudes masculinas, com o aplauso discreto das mulheres como recompensa.

E claro, no começo, a Olimpíada era um evento majoritariamente branco e masculino…

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E de classe alta! Dá-lhe amadorismo! As pessoas ainda pensam em amadorismo como uma categoria moral, mas vale lembrar que o amadorismo, nesse caso, era uma questão de exclusão da classe operária. A Regata Real de Henley [corrida anual de remo no Rio Tâmisa] serviu de modelo para o COI de Coubertin no quesito governança. Ele adorava a Regata Real de Henley e disse que o COI buscava trabalhar com o mesmo princípio: um núcleo de pessoas que sabe o que está fazendo no centro, um segundo anel concêntrico de acólitos aprendizes, e uma penumbra externa de poeira estelar, formada por aristocratas e príncipes, cujos nomes ficam bonitos no cartaz. E segundo esse modelo de amadorismo, inspirado na Regata Real de Henley, aqueles que já haviam ganhado dinheiro com remo ou realizado trabalho braçal não podiam participar. Sério! Era onde ele mais se sentia em casa. Um mundo muito branco mesmo, e muito elitista.

Em termos de mudanças, nos jogos de Los Angeles de 1984, as mulheres ainda representavam apenas 20% dos atletas, e no início dos anos 90, o COI começou a se mobilizar por igualdade de gênero no evento e quadro de medalhas. Estamos bem próximos da paridade de gênero. Quanto a etnias e raças, as mudanças foram instituídas a conta-gotas até a década de 20, e então as primeiras nações de fora da Europa e América do Norte começaram a ganhar medalhas: o Japão, o time indiano de hockey, as primeiras delegações chinesas. Mas, claro, só na época da descolonização, entre as décadas de 60 e 70, é que a proporção mudou mesmo. Pois é. A Olimpíada só começou a representar, de fato, o mundo que se propõe a representar nos anos 80.

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As Olimpíadas estão mais diversificadas do que nunca, fato que não agradaria muito seus fundadores. Kyle Terada-USA TODAY Sports

No livro, você escreveu: "Os jogos de Los Angeles [1932] e Berlim [1936] foram o ápice da evolução das Olimpíadas como evento de mídia". Achei isso muito interessante porque esses dois eventos não poderiam ter sido mais diferentes, em termos ideológicos — o corporativismo e a expropriação de terras de Los Angeles versus a grande produção da Alemanha nazista. Ainda assim, o COI acatou as duas sedes, e aceitou sugestões de ambas para o futuro das Olimpíadas.

Digo, o evento de 1932 é muito interessante porque, seguindo a narrativa, é em 1936 que tudo muda. Sabe, em termos de ideologia massiva e nacionalismo intenso e projeção tresloucada de poder, e dinheiro também, claro, Berlim está em outro patamar.

O interessante é que ambos os casos ocorreram quando as indústrias culturais estavam se tornando globais pela primeira vez, e é isso que os une, de certa forma, apesar das diferenças ideológicas. Os dois governos entenderam muito bem a mídia de massa, como ninguém antes havia entendido. Isso não dá para negar: os nazistas manjavam muito de mídia de massa, e os organizadores dos Jogos de Los Angeles 1932 também.

Naquela época, o COI era muito mais pragmático que hoje. Não se importavam muito com os acontecimentos de Los Angeles, a meu ver. Acho que, antigamente, os aristocratas europeus eram meio esnobes com a América do Norte, mesmo dentro do COI. Já em 1932, todo mundo adorava os Estados Unidos, todo mundo amava Hollywood. Reza a lenda que, no meio do processo de seleção da sede, um aristocrata europeu perguntou a William Garland: "Por acaso, Los Angeles fica perto de Hollywwod?" Acho que não era mais uma questão. Dizem que reclamaram um pouco do montante de comercialização, mas nunca encontrei evidências disso. Ninguém faz caso disso. Ninguém chega à Coca-Cola e pergunta: "Isso lá é coisa que se preze?" Aparentemente, não é algo problemático.

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A Alemanha é outro papo. Muitas pessoas estão cientes das críticas ao COI por ter priorizado a grana, o fim do amadorismo, a chegada dos patrocinadores, a comercialização, o que é, basicamente, um fenômeno típico do fim dos anos 80 e início dos anos 90. Virou moda. Mas muito antes disso, o COI basicamente negociava na base do poder, lavava as mãos e alegava que as pessoas que cuidavam do evento tinham meios de manobra o bastante para expor seus ideais, por mais que o COI tentasse controlá-las. E, sinceramente, esse é o preço de seguir em frente. Porque, né, quem mais vai aturar uma Olimpíada? Não estou dizendo que alguém do comitê declarou isso de fato, com todas as letras, mas parece que foi essa a decisão e negociação que conduziram.

Até hoje, ouvimos o argumento de que foi uma boa ideia, sim, sediar os jogos em Pequim, em 2008, porque trouxe à tona uma sociedade fechada, encorajou a globalização e forçou o país, mesmo que por um breve período, a alinhar suas práticas com a "comunidade internacional". Falavam assim de Berlim também.

Portanto, tanto os jogos de Los Angeles 1932 quanto Berlim 1936 serviram de modelo para o futuro, e o COI pesou diversas variáveis. O COI é ágil e flexível e, acima de tudo, foca em garantir a própria sobrevivência, como toda e qualquer organização. Acho que não foi difícil para eles.

Pensando no livro como um todo, parece que o arco moral da história é uma ladeira abaixo. O empreendimento é cada vez menos perdoável, e isso está claro desde os jogos de Seoul, de 1988.

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É por aí mesmo, Aaron. Os jogos de Los Angeles de 1984 são considerados o modelo do futuro, pois transformaram as Olimpíadas, mas ninguém consegue repetir o que a cidade fez. Do mesmo jeito, Barcelona serve de modelo porque renovou a cidade e a colocou no mapa, mas é um caso à parte. Como você mesmo disse, a apática cidade de Seoul é que acabou se destacando por alinhar os jogos com um programa colossal, digo, um programa colossal de desenvolvimento urbano, realizado em grande medida de forma desumana e antidemocrática, subsidiado pelos cofres públicos. Seoul não deixou o setor privado participar muito. Os elementos de gentrificação que marcaram os jogos posteriories ainda não haviam entrado em jogo. Mas, sim, acho que você tem razão, a Guerra Fria praticamente acabou, e todo mundo, exceto a Coreia do Norte, dá as caras.

Não sei se é um momento simbólico exatamente, mas minha parte favorita das Olimpíadas de Seoul — não sei se cheguei a escrever sobre isso — foi a abertura. Você viu o momento em que acenderam a tocha?

Não.

Vale a pena assistir. Naquela época, a cerimônia seguia um protocolo, e a tocha vinha depois das pombas da paz. Quando acenderam a tocha olímpica, um bagulho industrial gigantesco com um elevadorzão, torraram cerca de 50 pássaros na hora.

A tendência agora é repetir o caso de Seoul. O preço está subindo. Os jogos de Munique, em 1972, foram bem caros, Tóquio 1964 também. Mas houve certo planejamento urbano, um consenso, diversos danos de guerra exigiam reconstruções em ambas as cidades, diferente de Seoul e, pior ainda, de Atlanta 1996, Sydney 2000 e Atenas 2004, e das olimpíadas de inverno dessa década. A Olimpíada está cada vez mais cara e extravagante, com cada vez mais consequências negativas.

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E O COI fecha os olhos. Com Juan Antonio Samaranch [presidente do COI de 1980 a 2001], era de se esperar, mas a tutela de Jacques Rogge [presidente de 2001 a 2013], que se vendeu como o homem da reforma, depois do escândalo de Salt Lake City, com o nível de governança que ele tinha em mãos, era para ser diferente. E foi justo no mandato dele que tudo degringolou de vez e acabou com 55 bilhões de dólares em Sochi. É o montante que o Reino Unido investe em todo o setor educacional da nação, para você ver. É uma loucura, não dá para acreditar.

Eu diria o seguinte: mais do que um arco moral, é uma narrativa política em que a Olimpíada sucessivamente enfrentou todo tipo de desafio e intempérie, seja a ameaça de um nacionalismo ou organização internacional; uma narrativa em que aceitaram o nacionalismo como simples fato da vida. E ainda negociaram com o poder do Estado! Depois apelaram para a comercialização, o profissionalismo e patrocinadores.

Agora o problema é a Olimpíada por si só. Eis a questão. Já fizeram vista grossa para tudo e todos, mas não podem ignorar a maior ameaça para a organização e para o evento — isto é, o próprio evento. Acho uma tragédia termos chegado a este ponto.

Aconselharia as pessoas a prestar atenção nas vozes da própria cidade do Rio, pessoas que trabalham e vivem nas favelas, que têm uma perspectiva local

O COI tomou as rédeas da representação do mundo através do esporte por conta de sua posição privilegiada de poder no começo nos anos 1800 e no começo dos anos 1900, e agora precisa lidar com o espólio da vitória. Isso não é um direito indelével; ninguém é intendente vitalício. É algo que precisa ser conquistado, não presumido. Os caras torraram os últimos tostões de capital moral e político, e agora ando com vontade de reivindicar. Dizer que nós queremos o esporte de volta, em vez de simplesmente dar as costas e sair andando.

Com os jogos do Rio prestes a começar, como você acha que os fãs deveriam lidar com as Olimpíadas, que está repleta de problemas, mas ainda é um espetáculo esportivo cativante?

Uma boa dose de ceticismo, um senso de humor esplêndido e uma noção profunda de história, creio eu, são os equipamentos essenciais para ligar a televisão. Acho que ainda não é hora do telespectador boicotar os jogos, embora acredite que talvez seja o caso da Copa do Mundo do Catar, em 2022.

Eu aconselharia as pessoas a prestarem atenção nas vozes da própria cidade do Rio de Janeiro, pessoas que trabalham e vivem nas favelas, que têm uma perspectiva local. Deem uma olhada no que o movimento local antiolímpico, o Comitê Popular, tem a dizer. Você pode concordar ou discordar, mas tente escutar o maior e mais diverso leque de vozes possível.

Também aconselho os fãs do esporte a não sentirem culpa, não carregarem esse fardo. Não acho que assistir ao evento seja conivente. Basta ter um olhar crítico, ler sobre o assunto e encorajar outras pessoas a refletirem junto. Como poderia ser a Olimpíada? Não precisa ser assim. Gostamos de alguns aspectos do evento, mas há mil pontos irritantes e incômodos e injustos. É o momento ideal para dizer: como podemos fazer diferente? Como seria a Olimpíada ideal? É hora de dar asas à imaginação.

Tradução: Stephanie Fernandes