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Ilustração: Cassio Tisseo

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Antes de ser ministra, Damares tentou impedir aborto em paciente com câncer

TJ de Goiás analisou laudo médico e autorizou jovem evangélica a interromper a gravidez para fazer tratamento em 2013, mas Damares entrou com processo para anular a decisão judicial.

O mundo da goiana Jéssica da Mata Silva, de 27 anos, desmoronou em 2012. Na época, ela estava recém-casada e fazia curso técnico em enfermagem, quando foi surpreendida por um diagnóstico de câncer. Em 1º de novembro daquele ano, a jovem passou por uma cirurgia para retirada de um tumor maligno do pulmão. Depois disso, ela também deveria fazer radioterapia e quimioterapia para se curar. Foi então que Jéssica perdeu o chão pela segunda vez. Descobriu que estava grávida – e o tratamento é contraindicado durante a gestação, principalmente nos três primeiros meses, podendo causar aborto e malformação no feto.

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Em 6 de março de 2013, o Tribunal de Justiça de Goiás autorizou Jéssica a abortar para fazer o tratamento. Cerca de uma semana depois, a pastora e advogada Damares Regina Alves tentou anular a decisão do TJ por meio de uma medida liminar no Superior Tribunal de Justiça. Damares é hoje a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e disse, em dezembro do ano passado, que queria o “Brasil livre de aborto”. O que não se sabia até então é que isso seria válido até para situações em que há risco de morte para a gestante.

O processo aberto por Damares correu em segredo de justiça. Por telefone, conversei com Jéssica semana passada, e ela afirmou que, mesmo sendo a principal interessada, não ficou sabendo da ação da pastora. Tampouco sabia quem é Damares. "Não, não sei. Ela é o quê? Juíza?". Quando falei o atual cargo da advogada-pastora no governo Bolsonaro, Jéssica se espantou. "Nossa! Bom, eu acho que ela não é humana. No meu caso, não é que eu queria fazer um aborto. Era por causa da doença. Acho que ela não tem ninguém na família que já passou pelo problema do câncer. Desejo que ela nunca passe por isso."

Juízo final

Jéssica teve um tipo raro e grave de câncer de pulmão, chamado sarcoma alveolar de alto grau. Junto com o tumor veio um dilema. A gravidez e o tratamento eram como água e óleo. Se esperasse a gestação se desenvolver antes de começar o tratamento, a doença poderia evoluir e sua vida estaria em risco. Por outro lado, a radioterapia e a quimioterapia provavelmente trariam complicações para o feto.

Sem falar especificamente do caso de Jéssica, a médica Clarissa Baldotto, diretora da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, explica os perigos envolvidos. "Em geral, nesse período do primeiro trimestre é quando está ocorrendo a formação de vários órgãos e do sistema nervoso central. Então, nesse período existe o risco de malformação grave." Por isso, afirma a oncologista, o tratamento pode inclusive causar aborto.

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Interromper a gravidez é crime no Brasil. Dá cadeia tanto para a mãe, quanto para quem provocou o aborto. No entanto, o Código Penal autoriza o procedimento em dois casos. Primeiro, na hipótese de risco de vida da própria gestante. Segundo, se a gravidez é fruto de estupro. Além disso, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em 2012, que é permitido abortar em caso de feto sem cérebro.

Sem condições financeiras para contratar um advogado, Jéssica recorreu à Defensoria Pública. O defensor Emerson da Silva Paiva entrou com pedido de aborto terapêutico à Justiça, porque entendeu que a vida da cliente estava em risco por causa do câncer. Um juiz de primeira instância negou a interrupção da gravidez. O caso foi parar no Tribunal de Justiça de Goiás.

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Fotos: Jéssica da Mata Silva/ Instagram

A relatoria do caso no TJ goiano coube à desembargadora Avelirdes Almeida de Lemos. A magistrada citou no processo o laudo elaborado pelo médico Allison Bruno Barcelos Borges, que trabalhava no Hospital Araújo Jorge, onde Jéssica se tratava em Goiânia. Segundo o radioterapeuta, a paciente estava com cerca de seis semanas de gravidez e "o tratamento apresenta uma alta chance de provocar aborto ou, mais frequentemente, malformações graves (neurológicas, cardiológicas e de membros), tornando-se, por isso, a gestação uma contraindicação absoluta de qualquer tratamento radioterápico. Portanto, a paciente necessita iniciar o tratamento o mais breve possível, devido à alta chance de recidiva do tumor."

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A desembargadora autorizou o aborto. "Ressalto que, independentemente de minhas convicções religiosas e morais, mas atenta a princípios fundamentais expressos na Constituição Federal e ao fato de que a manutenção da gravidez implica em risco de morte ou de sérias complicações tanto para a gestante quanto para a criança, a autorização do aborto é medida imperiosa, máxime por ser a única", escreveu a relatora.

Na mesma semana, Jéssica se internou num hospital do SUS para abortar. "Fiquei internada nove dias. Eles induzindo Cytotec (nome de um remédio que provoca aborto), só que não fez efeito. Aí me levaram para o centro cirúrgico para fazer curetagem (procedimento que consiste em raspar a parede do útero para interromper a gravidez)."

Enquanto Jéssica estava internada, Damares Alves entrou com uma medida liminar no STJ para anular a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás. O principal argumento da advogada-pastora era de que o feto estava "ameaçado no seu direito de ir e vir e, mais que isso, em seu direito à vida." Para a religiosa, "a simples presença da criança no útero não traz qualquer ameaça à vida da mãe", e que "tampouco o aborto serviria para 'curar' o tumor da mãe, sendo errôneo denominá-lo aborto 'terapêutico'".

O processo de Damares Alves no STJ pode ser lida na íntegra abaixo:

O ministro Campos Marques, relator do caso no Superior Tribunal de Justiça, votou contra o pedido de Damares. "À vista de todas estas circunstâncias, a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, ao menos neste primeiro exame, não se mostra desarrazoada, nem manifestamente ilegal a ponto de ensejar a concessão da medida urgente pleiteada, notadamente porquanto baseada em elementos concretos e dados técnicos de natureza médica", escreveu o magistrado. O julgamento foi em 19 de março de 2013. A maioria dos outros quatro ministros da Quinta Turma do STJ acompanhou o voto do relator, com exceção da ministra Laurita Vaz. "Compreendo as considerações dos eminentes colegas, mas prefiro, aqui nesse momento, respaldar o direito à vida do nascituro. Com essas considerações, voto pela concessão da liminar."

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Assim como a ministra Damares, Jéssica também é evangélica. De maneira geral, os cristãos consideram o aborto pecado. No entanto, ela acredita que não violou nenhuma lei divina por causa de sua condição de saúde. Além disso, a jovem afirma que recebeu apoio da família para interromper a gravidez para dar prosseguimento ao tratamento. Mesmo assim, a decisão pelo aborto não foi nada fácil. "Eu estava recém-casada, era o nosso primeiro filho. Então, foi muito complicado mesmo. Porque sou totalmente contra o aborto. Mas, no meu caso, como era doença, não tinha como… O doutor falou que não tinha 1% de chance da criança nascer."

Mesmo sabendo que dificilmente o feto sobreviveria ao tratamento, Jéssica sente o peso do aborto até hoje. "Quando lembro que era para eu ter um nenezinho de seis anos… sofro até hoje." Antes de se casar, ela teve um filho de um outro relacionamento. Atualmente, a criança tem dez anos.

Depois de alguns meses de tratamento, Jéssica havia terminado a quimioterapia e vinha se recuperando bem. Até que o câncer voltou. Segundo ela, já foram quatro cirurgias para a retirada de 32 tumores. Atualmente, toma quimio todos os dias durante duas semanas seguidas, intercalando com outras duas sem medicação.

Você deve estar se perguntando como uma pessoa como Damares, que não tem empatia nem por uma paciente com câncer, pode ser ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Pois é.

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Trajetória controversa

Damares Alves tem 54 anos e nasceu no Paraná. Ainda criança, mudou-se com a família para o Nordeste, onde morou na Bahia, em Alagoas e Sergipe. Também viveu em São Carlos, no interior paulista. A vida errante de Damares está muito ligada ao ofício do pai, o pastor da Igreja Quadrangular Henrique Alves Sobrinho, que fundou quase uma centena de templos em todo o Brasil. Damares seguiu os passos do pai e também se tornou pastora.

Formada em Direito e Pedagogia, Damares atuou em movimentos sociais voltados a crianças em situação de rua. Ela entrou na vida pública pelas mãos do tio, o ex-deputado federal e pastor Josué Bengtson, do PDT do Pará. Em 1999, o parlamentar convidou a sobrinha para trabalhar em seu gabinete na Câmara dos Deputados. Além de praticar nepotismo, Bengtson também enriqueceu roubando dinheiro público. Envolvido no escândalo da "máfia das ambulâncias", ele foi condenado no ano passado pela Justiça Federal a perda do mandato e dos direitos políticos.

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Damares Alves, a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos que buscou impedir um aborto de mulher que corria risco de morte. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Familiarizada com Brasília e militante evangélica, a pastora-advogada também foi assessora parlamentar de outros políticos da chamada bancada da Bíblia, como o deputado Arolde de Oliveira (DEM-RJ) e o senador Magno Malta (PR-ES). Damares se engajou para aprovação do Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que previa a prisão de quem fizesse "apologia do aborto" e pensão alimentícia às mulheres estupradas que optassem por não fazer o aborto permitido por lei. A proposta ficou conhecida como "bolsa estupro" e foi engavetada, apesar de contar com apoio do ex-presidente da Câmara, o também evangélico e presidiário Eduardo Cunha.

A pastora Damares também lutou contra a aprovação do Projeto de Lei da Câmara nº 3, de 2013, que determina que todos os hospitais do SUS sejam obrigados a prestar atendimento emergencial e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Grupos evangélicos temiam que o PLC 3/2013 aumentasse o número de abortos no país. Damares fez até um vídeo pedindo que a ex-presidente Dilma vetasse o projeto, mas a petista aprovou a lei integralmente.

Vítima de estupro na infância, Damares revelou que sofreu uma série de abusos de dois pastores da igreja que ela e a família frequentavam. Logo que foi indicada para assumir o ministério, ela disse que é contra mudança na legislação do aborto. Na ocasião, soltou a pérola de que "gravidez é problema que dura só nove meses".

A reportagem mandou uma série de perguntas à pasta chefiada por Damares. Entre outras questões, gostaria de saber por que a ministra tentou impedir o aborto de Jéssica e se repetiria tal atitude hoje em dia. A assessoria de imprensa se limitou a dizer por e-mail que o "Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos informa que não trabalhará por alterações na legislação relacionada ao aborto por entender que o tema é de competência do Congresso Nacional". Enviei uma outra mensagem, questionando se Damares não falaria sobre o caso de Jéssica. A assessora Raiane Lira me telefonou e disse que "o posicionamento é somente aquele que a gente já te enviou. Não tem nada mais a acrescentar além daquilo".

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