DJ Kri fala sobre o Região Abissal, primeiro grupo de rap brasileiro a lançar um disco

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Noisey

DJ Kri fala sobre o Região Abissal, primeiro grupo de rap brasileiro a lançar um disco

Nos tempos áureos da São Bento e do início da cena hip hop nacional, uns moleques da Bela Vista gravaram o clássico empoeirado 'Hip Rap Hop' — e curtiam Racionais "antes da coqueluche".

A Bela Vista fica no centro de São Paulo, mas tem ares de quebrada. Lá na esquina da Major Diogo com a Brigadeiro Luís Antônio nasceu o Clube do Rap, espaço contemporâneo à Estação São Bento muito importante para a primeira geração do hip-hop. Lá também era a morada do Região Abissal, primeiro grupo brasileiro a gravar um disco de rap.

Dispensado das coletâneas Som das Ruas, com Ndee Naldinho, Sampa Crew e Os Metralhas, e Hip-Hop Cultura de Rua, que lançou Thaíde & Dj Hum, Código 13 e MC Jack, o Região Abissal resolveu botar na rua o álbum Hip Rap Hop, com hinos do alto-astral como "Litoral" e "Alô Papai". O grupo se desmembrou e virou posteriormente o também clássico Athalyba e a Firma. Trocamos uma ideiona com Delclécio Marques, o DJ Kri, que foi da equipe da Zimbabwe, fez parte da primeira bateria mirim do Vai-Vai e é um dos líderes e fundadores do Região Abissal. Falamos sobre hip-hop nacional, gravadoras e outras tretas. Ouve aí o álbum completo pra embalar:

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Noisey: Você nasceu na Bela Vista?
DJ Kri: Nasci aqui na Bela Vista.

É Bela Vista ou Bixiga?
É que Bixiga é um apelido carinhoso na verdade. No começo da população do bairro existia uma doença de pele que dava aqui na parte baixa do bairro. A galera nobre morava na parte de cima ali, Rua dos Franceses, Rua dos Ingleses, e a galera mais humilde morava mais aqui pra baixo. O pessoal aqui embaixo pegou essa doença de pele que dava umas pipoquinhas pelo corpo. Aí o pessoal lá de cima começou a chamar o povo daqui de "bexiguento". Entendeu? Aqui na verdade era assim. Um bairro de descendência italiana com negros. Aí a partir dos anos 80 começou a chegar o pessoal do Nordeste.

E quais são suas memórias musicais dessa época?
Comecei a tocar aqui, né? Tive esse privilégio de ser um bairro central e boêmio. Sempre teve casa noturna, sempre teve boate. Quer dizer, a gente sempre teve contato com pessoas do teatro principalmente, porque aqui sempre rolou esse movimento teatral. A música também sempre esteve presente, principalmente ali nos barzinhos da Santo Antônio. Eu vi o Benito di Paula ali, vi o Wilson Simonal. Esse pessoal tocava no III Whisky, era aquela boate que o pessoal saía das outras e ia cair lá. O samba sempre esteve presente por causa da Escola de Samba, mas tem também as músicas brasileiras misturadas com o internacional black. Aquele pessoal tipo The Supremes, Four Tops que eram as músicas que rolavam nas festas da minha família. Então eu vim naquela batida mesmo de Jorge Ben, Tim Maia.

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E você toca algum instrumento? Tem alguma formação?
Não tenho formação de instrumentos, mas tenho base ritmica da bateria do Vai-Vai, porque fui da primeira geração de bateria mirim ali.

Qual foi a primeira vez que você encostou num toca-discos?
Olha, tem uma parte da minha família que é da Zona Norte, lá da Vila Nova Cachoeirinha. É uma famíla grande. Sempre tinha o DJ da época que já chegava com a vitrola e começava a tocar. Eu tinha essa mania. A galerinha chegava e queria saber onde tava a turminha pra brincar, ficar no corre-corre. Eu não, queria saber onde tava som. Já encostava do lado do cara ali e ali ficava a noite inteira até ele me dar a oportunidade de pôr a minha. Eu era um co-pilotozinho.

Quando você olhou um cara discotecando e pensou 'é isso que eu quero ser'?
Tudo partiu de um filme, o Beat Street . Chegou esse filme no Brasil e a Rayovac fez uma promoção que você levava pilha usada e trocava por um ingresso. Então a nossa vida era ficar caçando pilha na rua o dia inteiro pra assistir ao Beat Street, e assisti ao filme umas dez vezes. Tinham partes do filme que a gente se identificava muito. Em uma delas tinha um show de novos talentos e eu e esse meu amigo, o Gilberto, tivemos uma ideia. "Pô, po que a gente não tenta lançar esse show de novos talentos também?" Aí a gente lançou o Clube do Rap aqui na Bela Vista. Era num bar na esquina da Major Diogo com a Brigadeiro [Luís Antônio]. A gente fazia esse encontro lá toda segunda-feira, e já rolava a São Bento na época.

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Gilberto é o Giba do Região Abissal?
É ele mesmo.

Mas nessa época você já discotecava? Quando começou a fazer bailes?
Eu fazia som de pista. Nessa época já tinha rodada em várias pistas de dança. As primeiras casas que toquei foram aqui mesmo na Bela Vista, isso em 78, 79. Eu tinha uns 15, 16 anos e já fazia as minhas domingueiras por aqui.

O que você botava pra galera dançar?
Nessa época era mais funk music. O final da disco music e o começo da funk music. Era o som que rolava aqui na quebrada.

Foto por Felipe Larozza/VICE

E como nasceu o Região?
Rolaram várias festas do Clube do Rap de e numa segunda-feira teve uma reunião com o pessoal da [gravadora] Eldorado, porque eles estavam a fim de lançar uma coletânea de rap. Nisso já tava rolando uma reunião simultânea no Clube da Cidade que era do pessoal do Som das Ruas, que era uma outra coletânea lá do pessoal da Chic Show. Nós acabamos ficando de fora dessa coletânea da Eldorado, porque desde aquela época já começaram os bolinhos. Nós ficamos chateados no dia, mas tudo bem. Teve uma reunião lá na [Avenida] Paulista, em frente ao Objetivo, e no final não ficou muito legal, mas tudo bem.

Mas como vocês foram tesourados de duas coletâneas e lançaram um álbum na mesma época?
Então, tinha um produtor da gravadora Continental chamado Ricardo Lobo que morava em frente a minha casa. Eu sempre ia na casa dele trocar ideia de música e tal. Aí ele falou: "Pô, vocês não tão afim de fazer uma demo pra eu levar lá na gravadora sem compromisso?" Aí a gente fez. Eu chamei outro amigo meu, que morava aqui na Rua Santo Antônio, o Marcelo Maita que hoje é tecladista do Clube do Balanço. Chamei o Giba, chamei mais o Athalyba e juntamos em sete caras e fizemos essa demo e eles aprovaram.

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E qual foi a música?
A gente fez o "Litoral" e "Alô, Papai" que eram as mais popzinhas do disco. Aí foi até benéfico pra gente, porque enquanto o pessoal tava saindo em coletânea nós estávamos lançando o primeiro solo.

O Hip Rap Hop saiu pela Continental e é o primeiro disco de um grupo de rap no Brasil, certo?
Aquele é o primeiro álbum solo.

E como surgiram as bases?
Como a gente não tinha muita experiência de estúdio e também eles não sabiam como lidar com essa história de sampler na época, a gente usou mais ideias nossas de levadas de baixo e de teclado. A gente fez o disco inteiro só com teclado e bateria eletrônica, não usamos nada mais do que isso.

Mas não tem samples?
O que a gente usou foi voz.

Mas como vocês cortavam?
A gente tinha um baita sampler à disposição, mas o pessoal da gravadora não sabia lidar com isso, então eles ficavam meio que boicotando a gente de pegar trecho de música pra fazer. Eles queriam que a gente produzisse mais as nossas ideias mesmo, entendeu?

Por um lado isso pode ser interessante, não?
É, a gente começou assim. Com as nossas próprias ideias mesmo. Trechos de músicas que a gente gostava e não podia samplear a gente reproduzia, por exemplo.

Eu vejo o discurso de vocês muito mais leve e mais alto astral. Como era isso?
Na verdade o rap no começo não tinha uma proposta radical. Os temas eram livres, você falava do que você queria, você curtia o que você queria. Não tinham regras. A partir dos anos 90 com o estouro do Racionais se criou várias regras que não existem até hoje, mas na cabeça dos caras existem. Ficou um lance meio que dividido, mas isso é de grupo pra grupo. Hoje em dia você tá vendo essa rapaziada nova provando o contrário, ninguém tá mais nem aí com isso.

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Algumas letras de vocês desmistificam um pouco daquela visão de que o rap é machista. Vocês tinham um olhar muito maduro sobre a imagem da mulher. Como você o rap hoje em dia com relação à imagem da mulher?
A gente sempre fez, o Sampa Crew sempre fez. Tanto que a gente era até meio discriminado por causa disso, pelos temas que a gente abordava. Os caras achavam que a gente ia ser um pouco mais radical, mas não era essa a proposta. Esse lance da mulher, no rap hoje em dia tem aquela coisa de explorar um pouco a sexualidade. Às vezes eu acho que ultrapassa um pouquinho na forma de você dizer. Tem um monte de jeito de você falar. Às vezes a forma do cara escrever mesmo não rola muito bem.

Como era o papo com a gravadora naquela época? Tem uma geração que foi até os anos 90 que se acostumou a ser paparicado por elas. Como era pra vocês?
Era uma relação profissional leonina. Você tinha que assinar um contrato em que deixava quase sua vida lá. Pra não perder, você tinha que ceder. Não só o contrato, como várias outras coisas que rolavam. Tipo, lance de execução de música que a gente concordava e depois não rolava a música. Ou a música tava na programação de repente some e você não sabe o porquê. Sempre rolavam essas coisas que deixavam a gente meio na neura.

Mas vocês ganhavam uma grana mensal ali?
Não, era trimestral e male male, viu meu. Se eu falasse que podia comprar um disco importado com o que eu pegava de royalties da Continental é mentira.

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Bom, vamos falar de algumas faixas do disco. "Alô, Papai" é um som muito massa. Como rolou a base?
A gente ensaiava no quarto do Gilberto. Já tinha bateria eletrônica, aí chegava o Marcelo e começávamos a lançar uns grooves até colar.

Tudo na bateria eletrônica?
É. Quando a gente queria fazer um looping tinha que fazer com o gravador de rolo. Aí cortava a fita, emendava lá e às vezes ficava passando a fita no quarto inteiro pra dar o compasso todo.

Tem espaço pra romance. "O Amor Inovou" traz uma outra temática, que é encontrada também na molecada do rap de hoje. Por que é tão difícil falar desses temas no rap?
Por que não? Todo mundo na época esperava a hora da música lenta pra pegar as menininhas. A gente veio com essa herança.

"Cruz de Prata" entra num papo quase religioso. Como era essa questão pra vocês?
O Athalyba nunca foi muito ligado em religião. Eu espírita, Gilberto espírita. O resto dos caras também não eram muito ligados em religião. Era mais um lance de onda mesmo, tipo Zé do Caixão, do que qualquer outra coisa. Tanto é que o tema que a gente usou ali é do Space Ghost.

Em "Falso Inglês" rolou um embromation animal. De quem foi a ideia?
"Falso Inglês" é pura viagem mesmo. Nem ele sabe o que ele tá falando. Ali era pura brisa. Brisa da maconha?
Total.

Como era o esquema da banda? Era legalize?
Nós éramos os loucos dos grupos de rap. Sete caras, e sete caras que fumavam. Thaíde na época era santinho, o Jack era santinho. Pela música, pela arte. E a gente chegava escancarando no show. Camarim, aquelas coisas. Os caras ficavam até assim com a gente.

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"Litoral" é um dos sons mais legais dessa fase do rap. Por que não fazer um som sobre descer pra praia?
Essa música a letra é minha e do Guzula. Tava faltando a letra e a gente foi OBRIGADO a sentar e escrever. Não era a nossa. Eu sentei lá na casa dele, fumamos um e saiu.

Você já fez scratch no mar?
Não, ainda não tive essa experiência

"Sistemão" fala de drogas, AIDS, violência, marginalidade, entre outros temas. Como a gravadora ficou com esse som? Eles embaçaram?
Não, ela achou até do caralho a ideia da música pra dar uma quebrada no lance muito pop. Aquela música foi a primeira que a gente começou a cantar. Tanto é que participamos do Boca Livre com ela. Era aquele que tinha o Kid Vinil na Cultura. A gente participou de um concurso e fomos pra final.

Quanto vendeu?
Puta, não tenho base, cara.

Você tem ideia da tiragem dele?
Acho que foi 50 mil.

É uma tiragem boa, né? Já não era aquele tempo em que as gravadoras vendiam um milhão de cópias.
Não, já não era assim.

Aí o disco termina com "Qui Zica", que fala do laranja. Você encontrou alguns vacilers por aí?
Aqui na área sempre pintavam vários. Até o cara se inteirar da batida da música já tinha sido tirado pra caramba.

Foto por Felipe Larozza/VICE

No som do Região você vê muitas influências das equipes de bailes, né? Vocês pegaram muito essa fase?
Muito.

Como era essa relação? Como vocês conseguiram levar isso pro som de vocês?
O baile era nossa diversão na verdade. Quando a gente não tava fazendo baile aqui ia para o dos caras. Eu cheguei a ser DJ da Zimbabwe por um tempo nos anos 80.

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E como era?
Na época teve uma dissidência entre eles e parte da equipe ficou com um número de DJs e a outra parte com outro número. Aí o (Luis Antonio) Serafim me ligou e eu fiz várias festas com eles.

Era foda ser DJ da Zimbabwe?
Tocar com equipe de massa era diferente. Era uma vibe muito louca. DJ não era só DJ na verdade, o cara era tudo. Não tinha essa de você chegar encontrar a cabine montada e só tocar. Você tinha que carregar as caixas. Chegava cedo, descarregava o caminhão. ajudava a montar o PA, passar cabo. A hora do DJ na verdade era um descanso. Porque na hora que todo mundo ia embora você tava ferrado, porque tinha que desmontar tudo. Não era um lance fixo que as caixas ficavam lá a semana toda. Na outra semana você já tinha que estar montando o circo em outra quebrada.

E por que o grupo acabou?
Foi mais o lance de falta de interesse, eu acho.

Você acha que deu errado alguma coisa no meio do caminho?
Acho que foi lance de ego misturado com ciúme, misturado com falta de profissionalismo mesmo. Tinham uns que estavam pela diversão, pelas minas. Tinham outros que estavam levando a parada a sério.

E você tava como nesse bang aí?
Eu sempre fui um dos líderes, né cara. Então sempre quis ver o barato acontecer. Tanto é que todos eles tinham outros afazeres, eu não. A minha vida era aquilo. Se eu saísse do Região eu tava fodido, eles não. Um trampava de office boy outro de não sei o quê, então pros caras beleza. Até hoje é assim.

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Você teve outros trampos ou sempre viveu com o que ganhava na música?
Eu tive, mas nessa época mesmo. Trabalhei numas firmas e tal, mas depois desencanei total. Preferi sofrer.

Quem que você produziu?
Eu produzi o Sistema Negro, um disco do Sampa Crew também.

Aquele do Nelson Triunfo com o Funk Cia?
É.

E continuou botando som?
É, produzindo e tocando.

E onde você discoteca normalmente?
Ultimamente não tô mais de residente. Fiquei nove anos aqui no Teatro Mars, que fechou. E aí desde então toco ora aqui ora ali.

E por onde andam os integrantes do Região Abissal? Você tem contato?
Tenho, tenho. Mais com o Gilberto.

Mas não acabou tretado, né?
Não, não. Somos todos amigos.

Pra onde foram os caras?
Na Bela Vista não ficou mais nenhum. Moro em Santo Amaro, o Athalyba mora na Zona Leste, o Gilberto mora lá na Zona Sul também. O Adilson faleceu, o Guzula mora em Itapevi e o Bafé mora lá pra Zona Norte se não me engano.

E o Adilson morreu como?
Morreu de tiro.

Naquele segundo disco ele já não tava então?
Não tava nem ele nem o que fez "Falso Inglês", que já tava trampando fora também.

Foto por Felipe Larozza/VICE

Como era dividido o esquema do grupo? Você e o Giba faziam as bases e o resto cantava?
Era tipo jogral.

É meio que o esquema que a Cone Crew faz hoje? Um moleque solta as bases e os outros rimam?
É, isso mesmo.

E o que você tá produzindo agora?
Eu tô fazendo umas bossas eletrônicas, tô fazendo hip-hop também, R&B. Tô trampando bastante com o pessoal de Porto Alegre, que me identifiquei bastante. Tive morando pra lá um ano por lá. Conheci bastante gente, fiz bastantes amigos. Acho que depois de São Paulo é o lugar mais forte do rap. Tanto é que tem programa de TV local, tudo.

Você gravou um disco de R&B logo depois, né?
Fiz um disco com a Luna. Ela é a responsável pela letra da "Feminina". O Athalyba não admite, mas eu sei que é.

Caralho, você tá com um boné do Racionais na contra-capa.
Isso aí na época já deu a maior polêmica. Um boné do Racionais num disco de R&B. Eu pus de propósito, porque a minha relação com os caras vai além da música. Participei da primeira gravação do Racionais. Eu tenho uma história diferente com os caras, sou fã.

Como foi essa história?
O Racionais saiu de uma coletânea, né? O Consciência Black e eu e o Gilberto que produzimos essa coletânea lá em Campinas. O Racionais era um desses grupos. eu conheço eles desde o tempo do B.B Boys, que era a primeira formação. Eles eram frequentadores do Clube do Rap. Eu sou fã do trampo antes mesmo dessa coqueluche.

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