Torcedores contam por que deixaram as organizadas

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VICE Sports

Torcedores contam por que deixaram as organizadas

Ex-organizados relatam quando tiveram o estalo de trocar a vida de porradaria por uma rotina mais suave.

Começam os campeonatos, iniciam as tretas de torcedores. Dentro e fora do estádio. É assim desde meados da década de 70 e se agravou a partir de 1988, quando Cléo Sóstenes Dantas da Silva, presidente da então denominada Mancha Verde, foi morto em frente à sede da agremiação.. Ele foi a primeira vítima fatal da guerra. Nos anos seguintes, o número de mortos e de batalhas campais se acumularam com tréguas esporádicas. O último caso emblemático de violência aconteceu na madrugada de 2 de março: Moacir Bianchi, amigo de Sóstenes e ex-presidente da Mancha, foi morto com 22 tiros. A polícia investiga a participação do Primeiro Comando da Capital (PCC) na ação.

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Movidos pela paixão (pelo time, pela torcida, pela adrenalina), esses fãs se entregam de corpo e alma. Com o passar do tempo, porém, muitos passam a enxergar os perigos inerentes a essas manifestações de massa. Passam a se descolar. Em alguns casos o motivo é o medo da morte ou de ser preso. Em outros, a pressão da família ou torcida organizada passa a ficar incompatível com as outras atribuições como estudo, trabalho ou filhos. Fomos conversar com alguns ex-torcedores organizados espalhados pelo país para saber o que os motivou a deixar de frequentar essas agremiações. Afinal, valeu a pena?

"Quem ficou, morreu ou foi preso"

Banha, ex-Torcida Jovem, do Flamengo

Hoje historiador formado pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), José Francisco de Moura abandonou a Torcida Jovem, do Flamengo, em 1990. Banha, como era conhecido, comandava um dos grupos mais violentos à época, como admitiu em reportagem publicada no jornal "O Dia" em 1988.  Na ocasião, afirmou que o lema da torcida não era provocar. "Mas se provocado, não pode correr. Quem deixa o companheiro sozinho pode ser expulso", falou.

Procurado para falar sobre sua trajetória após deixar a Jovem, Banha afirmou que o assunto não o interessava. "No Rio, havia até mesmo uma espécie de sindicato, a Astorj, onde as organizadas se uniam para fazer ações em comum", comentou. "O mundo mudou. O que vejo hoje é apenas bandidagem. Como não sou bandido, saí. Quem ficou, morreu ou foi preso."

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Seu afastamento foi tamanho que diz ser impensável ir a um estádio assistir a uma partida de futebol. "Não tenho nenhuma vontade. Aliás, sou da geração do Zico e me tremo todo quando vejo alguém dizer que Guerrero é craque." Para ele, a única maneira de fazer o torcedor é sepultar as uniformizadas. "Se acabarem com essas torcidas, a violência vai diminuir."

Crédito: Cassio Tisséo

"Minha mãe sofria quando eu ia ao estádio"

Leandro*, ex-Fúria Independente, do Guarani

Leandro* precisou apanhar para deixar a torcida organizada. Não, não foi durante uma briga entre rivais. Foi em casa, da própria mãe. "Ela estava tão desesperada, preocupada comigo, que veio para cima com tudo. Atirou tudo o que estava na frente, até com enfeites ela me acertou", conta o jovem de 24 anos, ex-integrante da Fúria Independente, do Guarani. Abaixo, ele conta a respeito de sua relação com o futebol e com a organizada.

"Foi meu tio que me deixou vidrado no Guarani. Não conheci meu pai, então, esse tio me fez amar o futebol. Ele sempre me levava aos jogos e aos treinos. Respirava aquilo. Embora fosse apaixonado, ele não era de organizada, mas eu conheci muita gente e acabei entrando. Ali, encontrei minha turma. Fazíamos tudo juntos, estávamos sempre na quadra da organizada. Os dias de jogos, claro, eram os mais emocionantes. A gente bebia e fumava maconha. O pessoal do som animava o trajeto todo. Sempre tinha a adrenalina de uma treta também. Participei de algumas, mas a maior foi em 2014, contra torcedores da Ponte Preta [clube da mesma cidade]. Até um hospital foi atacado. Passou na TV e tudo mais. Minha mãe ficou furiosa naquele dia. Disse que não me queria mais na organizada. Discutimos muito. Falei que era adulto e que ia aonde queria. Ela não deixou barato. Veio para cima de mim, chorando e muito nervoso. Atirou tudo o que via pela frente. Até enfeites de casa. O desespero dela foi tão grande que, no dia seguinte, eu falei para ela que não iria mais. Que ela estava certa. Minha mãe sofria quando eu ia ao estádio. Acabei indo mais algumas vezes escondido, por mais um ano. Hoje não vou mais. Tenho muitos amigos ali, mas já quase não encontro mais ninguém. Não sei dizer se sinto saudades. Foi bacana, mas hoje estou mais tranquilo. Isso é muito bom. Assisto os jogos pela TV e acompanho as notícias sobre o Guarani pela internet. Já está bom assim. Quem sabe um dia, se as coisas estiverem mais calmas, eu volte."

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"Cansei de perder empregos"

André, ex-Máfia Tricolor, do Grêmio

André, hoje com 27 anos, tinha 16 quando entrou para a Torcida Independente Máfia Tricolor, do Grêmio. Três anos depois, em 2011, estava no Olímpico durante o Grenal. A partida acabou com a vitória tricolor, mas também foi marcada pela violência da organizadas. Fãs pertencentes a Geral do Grêmio, torcida barra brava e com fama de violenta, entraram em confronto com torcedores da Velha Escola e da Máfia Tricolor. Resultado: além da pancadaria, 20 pessoas presas. André viu a confusão, mas afirma não ter se envolvido diretamente. "É um momento de um baita nervosismo. Gente correndo, gritos", conta. Apesar do episódio, não pensou em abrir mão de frequentar a organizada. "É uma família. Tem gente que começa a namorar ali. Outros conseguem empregos para os colegas. Tem esse lado que ninguém mostra." Não fosse a necessidade de ajudar a família em casa, André ainda estaria frequentando as arquibancadas da Arena Grêmio.

"Ia com muita frequência à torcida. Participava das atividades, ajudava com tudo o que fosse possível. Carregava equipamentos, comprava material. Estava sempre disponível. Mas isso me custou também alguns empregos. Como falta muito por causa dos jogos e das viagens, acabei perdendo três empregos. A situação em casa complicou depois que minha mãe adoeceu. Ela trabalhava como atendente em um hospital. E passou a sofrer com hérnia de disco. Teve de ser operada e ficou muito tempo afastada. Precisou se aposentar por invalidez. Foi o que me acendeu alerta de que precisava cuidar dela e, para isso, precisava ficar em um emprego. Sou técnico em eletrônica e trabalho em uma firma que presta serviços para outras. Não ganha uma fortuna, mas o que vem ajuda muito lá em casa. Tenho mais um irmão e meu pai.

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Somos bem unidos e gremistas. Ninguém fazia parte de organizada antes de mim. Quando disse que tinha entrado no grupo, meus pais foram contra. A imprensa só conta história ruim das organizadas. Ninguém vê o lado bom, das pessoas se ajudando, fazendo trabalhos sociais, cuidando dos mais jovens com projetos. É uma maneira de unir pessoas com interesse comum. E brasileiro é futebol, né? Está sempre falando disso. A gente não se cansa.

Se tenho saudades? Claro que sim. Nem sei dizer se sai totalmente. Às vezes vou aos jogos e fico com a torcida. Sou bem aceito. Só fiz amigos lá. Eles entenderam que não conseguia mais participar como antes. É normal. Acho que todo mundo tem um ciclo. Para uns chega antes. O meu caso foi uma necessidade. Tem gente que sai por medo também. Sair na rua com a camisa da sua organizada pode te transformar em um alvo. Então a pessoa vê que é muito arriscado. Eu só andava uniformizado nos dias de jogo. Não dá para arriscar, ainda mais se está sozinho. Infelizmente, a violência é muito grande. Mas a nossa sociedade é toda violenta, como a torcida não seria. Seria preciso dar mais educação para todo mundo. Acho que assim as torcidas ficariam mais pacíficas. Vai saber!"

Crédito: Cassio Tisséo

"Troquei a organizada pelas fraldas"

Clovis, ex-Camisa 12, do Corinthians

Clovis*, de 23 anos, passou três anos frequentando jogos do Corinthians em meio à Camisa 12. Até hoje, afastado há quase três anos, diz manter o entusiasmo de antes. "A gente constrói uma vida ali dentro, é uma família, embora sempre tenha umas discussões", afirma ele. Seu afastamento aconteceu após a namorada ter ficado grávida. "Eu pensava que conseguiria continuar indo com o pessoal, mas precisei fazer um corre. Estudava à noite e trabalhava de dia para sustentar minha menina." Abaixo, o depoimento do jovem:

"Ter filho mudou tudo. Era muito moleque. Tinha 19 anos quando minha namorada engravidou. Pensei: fodeu. Mas também queria muito ser pai. Minha vida acabou ficando do avesso. Ela veio morar comigo na casas dos meus pais, no Jabaquara [zona sul de São Paulo]. Eu trabalhava em uma lanchonete durante o dia e ia para a escola à noite. Acabou ficando difícil participar do dia a dia da torcida. Não tinha nem mais pique para ir aos jogos de final de semana. As pessoas dizem que em organizada só tem bandido, né? Tem muita gente legal e trabalhadora. Tem também quem adore um briga. Quando você está ali no meio, acontece uma coisa esquisita. As músicas, a vibração da galera. Tem muita gente que vira valentão quando está em turma. Normal, né?

Participei de algumas tretas. Mas não grande. Socos e chutes apenas. Se tem um treta com um companheiro, ele não pode ficar sozinho. Se você fugir da briga, estará marcado dentro da torcida. É a ética do grupo. Acho que entrava nessas brigas porque era muito moleque. Era mais pra zoar. Ainda bem que nunca me machuquei feio. Uns arranhões, uns ralados e alguns roxos pelo corpo. Já vi gente bem machucada, com nariz quebrado, braço fodido. Uma vez um camarada deu um murro em um palmeirense, numa treta no centro, e quebrou a mão. Os dedos ficaram todos todos. Acho que ele errou o golpe. Se fodeu.

Não sei se quero que meu filho frequente a organizada. Mas também fica difícil controlar. O que deixaria de jeito nenhum é ele torcer para outro time. Imagina ter um filho são-paulino ou palmeirense. Nem fodendo. Ele vai fazer quatro anos e já é doido pelo Timão."

*O nome foi trocado a pedido do entrevistado