Como morre um meme
Flupy, famoso por vídeo em que arranha porta, enfrentou maus tratos de vizinhos antes do sucesso. Ele morreu quatro meses após virar meme. Crédito: Arquivo pessoal

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Como morre um meme

A trajetória de Flupy, o cão que faleceu meses após viralizar na internet, é uma emocionante fábula sobre o lado oculto dos virais.

Flupy morreu às três horas da tarde de uma segunda-feira de setembro de 2017, no piso de azulejo do banheiro da casa da família Arraes, na região metropolitana de Macapá, no Amapá. Talvez você não ligue o nome às quatro patas, mas o cão se tornara, meses antes do óbito, uma estrela da internet. Com arranhadas na porta, o cachorrinho protagonizou um divertido vídeo musical com milhões de visualizações ao lado de seu dono, Brussilo Arraes.

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Bruce, como Brussilo gosta de ser chamado, estava viajando no dia da morte do cachorro. Coube à esposa e aos quatro filhos cavarem a cova no quintal. Apenas os cinco, sem os milhares de likes, sem coroas de flores e nem alarde no sepultamento para um dos memes de 2017.

O vídeo protagonizado pelo vira-lata foi gravado em 2010, mas postado no YouTube por Bruce somente em 2015. O sucesso, entretanto, veio em 8 de maio do ano passado quando a página do Facebook O Brasil que deu certo descobriu o clipe, reproduziu e alcançou 1 milhão de visualizações. Quatro dias depois diversas páginas, entre elas BuzzFeed, VejaSP, Não Salvo, IG e Uai também publicaram.

Na filmagem amadora de 1 minuto e 31 segundos Bruce canta uma canção carinhosa para o cãozinho, que arranha a porta toda vez que ele tenta fechá-la. Com o pêlo mesclado entre o preto e o marrom, as orelhas caídas e um sorriso de cão sem dono clamando por adoção, Flupy desperta o carinho até dos mais frios corações.

A letra: Flupy você é o meu cãozinho, / Você é um cãozinho bonitinho / Mas agora você tem que ficar do lado de fora / Se você gosta de carinho / Arranha a porta só mais um pouquinho / Você é um cachorro especial / O carinho por ti é fenomenal / Você é um bichinho bem fofinho / Arranha a porta só mais um pouquinho / Arranha essa porta só mais um pouquinho / Arranha essa porta só mais um…. pouquinho. / Só mais um pouquinho.

Bruce dirigiu e idealizou o vídeo, além de ter escrito e cantado a música. A fotografia foi realizada com um celular por um de seus filhos, que tinha 7 anos em 2010, época da gravação. O cenário foi o barracão de fundo construído com madeira onde viviam, no bairro Paraíso, distante poucos quarteirões do Porto do Grego, banhado por um braço estreito do Rio Amazonas, defronte à ilha de Santana parte do arquipélago de Marajó, na foz do Amazonas no Atlântico.

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Fazia calor no dia do enterro. A temperatura chegou a 35°C, como é corriqueiro em Santana. A umidade do ar passou de 80%. Uma indiferença atroz ao final do inverno típica da região sobrepassada pela Linha do Equador.

“Minha esposa fez um vídeo do enterro dele”, lembra Bruce. A voz embarga e ele completa: “Foi forte aquilo.” Bruce tem 40 anos, estuda pedagogia, está desempregado e faz bicos como vigia, além de filmar e editar casamentos, batizados e aniversários. A família toda é tão ligada às filmagens que não deixou de registrar o enterro.

“Ele (Flupy) morreu e ficou com postura de herói. Estava com o peito estufado, o queixo para cima, como se estivesse de prontidão até o último segundo da vida tomando conta da família que amava”, descreve Bruce.

Nos cálculos de Bruce, o vídeo da canção deve ter sido visto por mais de 5 milhões de pessoas, considerando as diferentes versões postadas no YouTube e no Facebook. “Nunca imaginei que ia fazer esse sucesso”, afirma.

A mídia original ganhou inúmeras versões. Um dos fãs do vídeo foi o desenvolvedor de antivírus, Fernando Mercês. Ele gostou tanto que criou os acordes para a música, gravou um cover no violão e postou a homenagem no YouTube. Ao ser informado da morte do Flupy pela reportagem, ficou triste. “Eu vi um carinho muito autêntico entre o dono e o cachorro. Assisti dezenas de vezes. Ficava rindo e mostrando para todo mundo”, recorda.

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A dura vida de Flupy

Faz 20 anos que Bruce saiu sua da cidade natal, Breves, no sudeste da Ilha de Marajó (PA) para ir morar no Amapá. Deixou para trás um relacionamento conturbado, pois a família dele não tinha uma boa relação com os familiares da namorada. “Uma história parecida com Romeu e Julieta”, compara Bruce, que prefere não entrar nos pormenores.

Logo depois de chegar em Santana conheceu a mulher com quem casou e teve quatro filhos. Em 2008, ao mudar de casa na cidade de Macapá, o cachorrinho da família, Fred, um vira-lata preto, foi dar uma volta no novo bairro, se perdeu e não retornou.

Para piorar a tristeza dos filhos com o sumiço do Fred, dias antes da mudança Bruce fez uma faxina, juntou o lixo com tralhas e colocou fogo em tudo. Porém, no meio do lixo estava um bichinho de pelúcia de uma das filhas.

O nome dele: Flupy. “Era um bicho rosa com o pelo caindo no olho”, recorda Bruce. A filha chorava sem parar e ele não sabia o que fazer para os outros filhos também voltarem a sorrir.

Nessa época ele foi trabalhar como caseiro de uma propriedade da Igreja Católica. “O padre que me contratou foi nos visitar e viu meus filhos chorando e perguntou o que que eles tinham”, lembra.

Ao saber da história do cachorro e do bichinho de pelúcia, o padre saiu e voltou 1 hora e 30 minutos depois com um filhote de cachorro malhado dentro de uma caixa de sapato. “Quando meus filhos viram, amaram”, recorda. “Para deixar minha filha mais feliz coloquei o nome dele de Flupy.”

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A filha com Flupy no colo. Crédito: Arquivo pessoal

Além do clipe com Flupy, Bruce calcula que já fez mais de 200 produções audiovisuais, como ele chama as filmagens de casamentos, batizados e aniversários, além das séries que dirige e publica em seu canal no Youtube.

Ele realiza oficinas com crianças e adolescentes em que ensina a usar câmera e técnicas de edição em vídeo no projeto social Jovens Artistas Cinematográficos de Santana (Jacs). “Não sou desses cheio de equipamento. Tenho só uma câmera simples e um computador”, diz. Entre as produções mais destacadas estão o filme A saga dos Zerinhos (com 2 horas e 6 minutos de duração) e a série As Aborrecentes, com 11 episódios.

Quando o maior sucesso da carreira de Bruce foi gravado, Flupy tinha apenas dois anos. O filhotinho cresceu e viveu nove anos com a família Arraes. “Era um cachorrinho especial”, conta Bruce, mais uma vez com a voz embargada. Ele lembra que, quando dava um pedaço de pão para o cachorro, ele agarrava com os dentes e rosnava se alguém chegava perto. “Depois ele comia o pãozinho e queria outro.”

A resistência do Flupy também é destacada por Bruce. “Ele passou por tanta coisa na vida”, suspira o dono. O cão resistiu a um atropelamento, uma facada, a terem colocado fogo no rabo dele e a algumas pauladas. “Fizeram tanta coisa ruim com meu cachorrinho”, lamenta.

Flupy não era muito de ficar em casa. Aproveitava as tardes quentes e úmidas de Santana para perambular pelas ruas. Sempre que via um automóvel ou motocicleta passando latia e saia em disparada atrás. “Uma vez um motorista jogou o carro em cima dele. Sorte que a roda não passou por cima”, lembra Bruce.

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O atropelamento provocou uma fratura exposta em uma das patas. Como não tinha dinheiro para levá-lo a uma clínica veterinária, Bruce tratou ele próprio do machucado. “Ele ficou com a pata mais fina, mas continuou andando normalmente.”

Outra vez, relata Bruce, Flupy voltou com o rabo queimado, pois jogaram álcool nele e depois atearam fogo, mas o vira-lata conseguiu escapar. “Ele nem era tão rueiro assim, mas quando queria sair, ele saía.”

Em outra ocasião chegou com um machucado provocado por faca e também levou uma paulada tão forte que ficou alguns dias sem conseguir movimentar as patas traseiras. Flupy sobreviveu a todos os ataques, mas morreu vítima de picadas de carrapato. “Eu sempre dizia para minha esposa: ‘Amor, esse cachorrinho é abençoado’”.

Depois da morte de Flupy, a família Arraes tem dois novos cachorros. Pitty, uma vira-lata amarela, e outro que lembra o antigo e recebeu o nome de Lupy. Mas Bruce não acredita que eles serão capazes de substituírem o antigo. “Sabe-se lá quando vou encontrar um cachorro com tamanha inteligência.”

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