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VICE Sports

Caso Bruno expõe discrepância de gênero na cobertura de crimes no Brasil

Desde sua soltura, ex-goleiro do Flamengo voltou aos holofotes como se tivesse conquistado a redenção. O que isso diz sobre as diferenças de tratamento dado a homens e mulheres que cometeram crimes?

"Cala a boca, tô pensando em fazer igual o goleiro Bruno/ Falar que tu viajou e te mandar pra outro mundo". Essas frases, tiradas da música "A Raiva", lançada em 2015 pelo rapper carioca Shawlin e com mais de 600 mil visualizações no YouTube, são um exemplo de como o crime cometido pelo ex-goleiro Bruno Fernandes permaneceu no imaginário popular anos após seu julgamento.

Acusado pelo Ministério Público de estar envolvido no desaparecimento e morte da modelo Eliza Samúdio, sua ex-amante e mãe de um filho seu, o esportista foi condenado, em júri popular, a 22 anos e três meses de reclusão por homicídio triplamente qualificado (por motivo torpe, meio cruel e que dificultou defesa da vítima), sequestro e ocultação de cadáver. A sentença foi dada em 8 de março (Dia Internacional da Mulher) de 2013. Encarcerado desde 2010, Bruno recorreu da sentença e voltou à prisão preventiva para aguardar sua condenação em segunda instância, que seria definitiva.

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Quase sete anos depois do crime, em 24 de fevereiro de 2017, Bruno Fernandes retornou aos holofotes quando ganhou na Justiça o direito de acompanhar o andamento de seu julgamento em liberdade, por uma liminar do ministro Marco Aurélio de Mello do Supremo Tribunal Federal (STF).

O caso Eliza Samúdio ganhou extensa cobertura da mídia durante o processo, e a soltura de Bruno não foi diferente. O que chamou a atenção nas matérias veiculadas em grandes portais e redes de televisão sobre o Habeas Corpus concedido ao jogador, porém, foi o teor das manchetes e entrevistas: citando o crime como se fosse mero detalhe, grande parte dos textos focava na possibilidade de Bruno voltar ao futebol – segundo seu advogado Lucio Adolfo da Silva, o goleiro teria recebido propostas de nove clubes nacionais para jogar novamente, sendo dois deles times que disputam a série A do Campeonato Brasileiro.

Na última sexta (10), foi anunciado que Bruno assinou um contrato de dois anos com o time mineiro Boa Esporte, que disputa a segunda divisão do campeonato. A notícia foi acompanhada de fotos sorridentes do jogador e empresários do clube. O público, ao que parece, não compactuou com a ideia. Nos dias seguintes, pelo menos cinco patrocinadores abandonaram o time. A própria prefeitura de Varginha, cidade do Boa Esporte, também anunciou que é contra a chegada do jogador. Para completar, hackers invadiram o site do clube e, com a imagem de um jovem com máscara de cachorro, escreveram: "E aí, Bruno, já disse onde está o corpo de Eliza?"

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As reportagens acenderam nas redes sociais o debate sobre ressocialização de presos e as consequências de crimes de violência contra a mulher – o Dibradoras, coletivo de mulheres entusiastas de futebol e esportes no geral, publicou um apelo que tinha como objetivo lembrar os clubes, a imprensa e o futebol de que Bruno é culpado de assassinar uma mulher.

Bruno tinha, para uma imprensa espetacularizadora, a história perfeita de ascensão no futebol: uma origem pobre e órfã, uma trajetória difícil e um sucesso triunfal. Quando o desaparecimento e morte de Eliza vieram à tona, a tragédia foi vista pela mídia como uma oportunidade de dramatizar a narrativa do jogador. Um trabalho de conclusão de curso de comunicação social feito em 2011 resume bem: ao analisar matérias de grandes portais como R7, G1, Folha de S. Paulo e O Globo, o publicitário Luiz Eduardo Bragança Crisóstomo comparou a narrativa midiática de Bruno ao conceito da "jornada do herói" do antropólogo Joseph Campbell, calcado nas três fases de partida, descida e retorno. Como herói, Bruno teve uma escalada ao sucesso com sua carreira no esporte, um declínio com a acusação de homicídio e, agora, vive uma reascensão. Para Luiz, a soltura de Bruno agora significa uma possível redenção. "Desse modo, ele poderia começar uma nova jornada", diz.

As matérias veiculadas por grandes portais de notícias desde a soltura de Bruno sugerem, de fato, que uma nova jornada esteja sendo iniciada. No dia em que foi liberado da prisão, o R7 publicou uma galeria de fotos do goleiro em campo com a manchete "Saída da cadeia abre portas para Bruno voltar ao futebol". A Veja, alguns dias depois, veiculou reportagem em que eram analisadas as idades de todos os goleiros da Série A do Campeonato Brasileiro, estimando que Bruno ainda era jovem o bastante pra voltar a jogar.

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Depois de permanecer em relativo silêncio nos anos em que ficou preso, o jogador voltou a se pronunciar sobre o caso. Em entrevista ao G1, Bruno disse que, não importa quanto tempo permanecesse na prisão, "não ia trazer a vítima de volta". Ao R7, ele afirmou que tentará se aproximar do filho que teve com Eliza.

A fim de salientar o quanto a questão da desigualdade de gênero influencia a maneira como a imprensa noticia Bruno, vou usar o caso do esportista nessa matéria como espelho para a repercussão de outro caso famoso de homicídio cometido no Brasil por uma mulher: o assassinato de Marísia e Manfred von Richthofen, premeditado pela filha do casal, Suzane von Richthofen, em 31 de outubro de 2002.

Se a história de Bruno pode ser relacionada à trajetória encontrada em mitos heróicos e narrativas épicas, a de Suzane von Richthofen foi equiparada, em alguns momentos, à típica imagem da "dama e do vagabundo".

Estudante de Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Suzane tinha 19 anos quando participou do assassinato de seus pais, acompanhada do namorado Daniel Cravinhos, à época com 21 anos, e seu irmão Cristian, que tinha 26. O estopim do crime teria sido o namoro de Suzane e Daniel, que não era aprovado pelos Richthofen. O uso de drogas pelo casal e o fato de que a família Cravinhos era menos abastada foram amplamente explorados pela imprensa à época do julgamento, em 2006.

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Foto: Tribunal de Justiça de Minas

A bizarra cobertura no tom de celebridade foi dada a ela assim como a Bruno. Quinze anos depois de seu crime, porém, Suzane ainda não teve o privilégio de ter o assassinato dos pais deixado de lado em matérias de grandes veículos de informação. Tendo rejeitado a progressão para o regime semiaberto quando o direito lhe foi concedido em 2014, por questões de "segurança", ela só pôde sair temporariamente da prisão pela primeira vez em março de 2016. Desde então, teve suas saídas noticiadas e acompanhadas por veículos como o G1, que chegou a registrar fotos de Suzane em atividades cotidianas, como fazendo compras num shopping.

Outro ponto interessante é a imagem que estes veículos apresentam da presa. À época do julgamento, ela teve sua saúde mental questionada diversas vezes por reportagens da Superinteressante, G1 e IstoÉ, chegando a ser alvo de suposições de que fosse psicopata. Os mesmos questionamentos não foram direcionados a Bruno, com exceção de uma nota de 2010 no Jornal do Brasil em que uma psicóloga alertava para a possibilidade.

Em agosto de 2016, a Veja publicou um editorial intitulado "Suzane, 14 anos depois". Logo no primeiro parágrafo, o texto refere-se à beleza da personagem, levanta questões sobre seu bom comportamento na prisão e destaca resultados do teste psicológico realizado por ela ("agressividade camuflada", "manipuladora, insidiosa e narcisista"). A reportagem ainda diz que Suzane "fez outra vítima" ao denunciar o promotor Eliseu José Gonçalves, da Vara do Júri e de Execuções Penais de Ribeirão Preto, por assédio, e que, a fim de viver uma vida normal, ela "terá de torcer para que o mundo esqueça o que um dia foi capaz de fazer uma linda menina de olhar angelical".

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Papéis determinados

No livro Morte em Família (1983), a advogada e ex-professora da Unicamp Mariza Corrêa (1945-2016) discute as representações jurídicas dos papéis sexuais analisando casos de feminicídio e assassinatos de homens entre casais. A autora investiga como, nos julgamentos desses casos, constroem-se personagens e observa-se comportamentos – com base, claro, em papéis de gênero – a fim de aumentar ou diminuir a pena dos réus.

"No tratamento dos réus – seja a mulher como réu, como no caso da Suzane, ou Bruno, que é um homem – essas regras não ditas, esse machismo estrutural, é utilizado para sustentar os argumentos de defesa e acusação. E que são reverberados pela mídia precisamente porque têm lastro social", afirma a advogada, doutoranda em Sociologia Jurídica pela Universidade de São Paulo e cofundadora da Rede Feminista de Juristas Marina Ganzarolli.

O papel esperado da mulher, segundo Mariza define no livro, é o de cuidadora do lar e boa esposa, boa mãe, boa filha. Do homem, ao contrário, é esperado que seja o provedor da família e que "defenda sua honra". Esses papéis se encontram perfeitamente nas representações midiáticas dos casos Eliza Samúdio e Richthofen – e não só neles.

A questão dos transtornos mentais, por exemplo, também foi cogitada em outros dois casos de assassinatos cometidos por mulheres: o de Elize Matsunaga de seu marido Marcos, pela revista Época e o R7, e o da jovem Vânia Rocha, que matou o ex-namorado, pelo Uol e G1.

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Segundo a psicóloga e professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) Jaqueline Gomes de Jesus, patologizar crimes cometidos por mulheres é uma prática comum justamente porque as infrações representam uma rejeição do papel feminino. "Independentemente da natureza do crime, existe a ideia da mulher como aquela que não tem consciência plena sobre seus atos e que, ou é influenciada, ou tem algum tipo de transtorno que a leva a cometer o delito", conta.

"[O caso de Suzane] é relativo porque [os assassinados] eram os pais dela, o que apela para esse laço familiar negado, da obrigação da mulher de responder primeiro à família", diz Marina. "Mas o caso de Bruno é a mesma coisa, era a mãe do filho dele. É família também. Essa valoração que damos para dois crimes em que o tipo penal é o mesmo não vem à toa."

O mesmo estigma de traidora do ideal de feminino pode recair também sobre a vítima, como foi o caso de Eliza. Nas raras vezes em que sua história foi contada, como numa matéria do jornal Extra publicada na época do julgamento, a (curta) carreira pornográfica e amizade de Eliza com jogadores de futebol eram destacadas. Num documentário produzido pelo canal A&E, Até que a Morte nos Separe, o delegado Edson Moreira, que trabalhou no caso, diz que Eliza era "a famosa maria-chuteira". No mesmo filme, Cláudio Dalledone Júnior, advogado que defendeu Bruno durante o julgamento, fala que a vítima estava "garantindo seu futuro" ao engravidar (segundo ele, propositalmente) do jogador.

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Marina encontra uma razão para esse destrato: "Esses operadores – os jornalistas, os juízes, os promotores – não estão fora do mundo. E no mundo em que a gente vive, no Brasil, existe uma desigualdade de poder muito grande entre homens e mulheres. A violência é a ponta desse iceberg, a expressão máxima dessa desigualdade", conta. "O feminismo vem dizer que as mulheres podem ser o que elas bem entenderem e não vai haver um custo para isso. Mas esse custo existe."

O legado

Apesar da repercussão controversa, segundo Marina, a soltura de Bruno está prevista legalmente. "Independentemente de se ele merece ser solto ou não, é inconcebível levar quase sete anos para se decidir sobre a concessão na revogação de uma prisão preventiva", diz a advogada. Ela afirma que é estranho que um crime de tamanha repercussão tenha demorado tanto pra ser julgado em segunda instância. "Esse é o problema do enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil: a imensa demora da Justiça em responder à altura dos casos."

Com a volta de Bruno aos gramados, surge, além dessa, a preocupação de que o goleiro volte a ser encarado como um herói. "É aquela música do Skank: quem nunca sonhou em ser jogador de futebol? Isso passa por todas as áreas, seja o jornalista (até o mais experiente), seja o torcedor comum. Ele se vê no jogador, faz dele um ídolo muito rapidamente e eleva ele a uma figura de exemplo", conta Carlyle Paes Barreto, colunista de esportes do Jornal do Commercio e dono do blog Planeta Bola.

Para o jornalista, o valor dado ao jogador de futebol no imaginário popular pode ser perigoso em casos como o de Bruno. A imprensa, no entanto, não tem escolha senão noticiar os fatos. "A gente tem que lidar com a realidade", diz. "Um assassino confesso cumpriu parte da pena dele e agora está livre, e é uma nova fase da sua vida. Ele está dentro da lei. Provavelmente não vai tirar essa mancha da vida dele, mas a imprensa tem que acompanhar. Se ele voltar a jogar, aí não é o assassino que está jogando, é o goleiro Bruno."

Para Marina, porém, as consequências do descaso dos grandes veículos são muito maiores. Ela volta à analogia com Suzane: "As mulheres estão sendo julgadas o tempo todo por coisas que os homens não são – nossa roupa, nosso corpo, nosso cabelo. E esse é o discurso utilizado para continuar condenando a Suzane. Não só a Justiça a condenou, mas a sociedade a condenou. Também pelo seu crime, mas principalmente por ser uma mulher que cometeu um crime", diz. "Em alguma medida, todo o julgamento que é colocado sobre a Suzane todas nós já sentimentos na pele. Não por cometermos um crime, mas simplesmente por sermos mulheres no espaço público."

Num país em que "bandido bom é bandido morto", as relativizações sobre o crime de Bruno passam apenas uma mensagem às mulheres: enquanto um homem foi perdoado, reinserido à sociedade e recolocado em sua posição de triunfo no esporte em que ganhou fama após matar uma mulher, elas pagam contínua e compulsoriamente por suas infrações não só perante à Lei, mas perante a sociedade.