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Sacrifício de Sangue em Sumba

Combatentes a cavalo atiram lanças uns aos outros para “fertilizar” o solo com o sangue humano.

VIAGEM

SACRIFÍCIO DE SANGUE EM SUMBA

ONDE XAMÃS E GUERREIROS CULTUAM VERMES MARINHOS SAGRADOS

Por Milene Larsson, Fotos: James Morgan

Guerreiro pasola prestes a atirar sua lança contra um combatente do clã rival. As lanças podem até estar sem pontas nos dias de hoje, no entanto, elas ainda matam participantes e espectadores.

Sumba é uma ilha do tamanho da Jamaica no arquipélago indonésio que ficou tanto tempo apartada do resto do mundo que suas antigas tradições animistas sobrevivem ainda hoje. A ilha é o cenário de uma batalha ritual chamada Pasola, que acontece todo ano entre fevereiro e março. A Pasola é uma luta entre clãs rivais na qual os combatentes, a cavalo, atiram lanças uns aos outros para “fertilizar” o solo com o sangue humano derramado.

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Para se chegar a Sumba de Bali, fizemos um voo de aproximadamente uma hora em um pequeno avião bimotor. A maioria dos passageiros era composta por sumbaneses, mas havia também surfistas musculosos de pele de couro na caça de ondas desertas e empresários ocidentais e indonésios, provavelmente especuladores imobiliários. Agora, há uma demanda por terras em Sumba, já que a ilha, rica em cultura e abençoada com praias perfeitas, está destinada a se tornar um badalado ponto turístico.

Enquanto descíamos sobre arrozais cercados por palmeiras e colinas pontilhadas por cavalos selvagens, passamos por conjuntos de cabanas de bambu com pátios lamacentos onde porcos, galinhas e cães vagavam. Em contraste, o moderno aeroporto Tambolaka, ainda em construção, parece deslocado. Por enquanto, Sumba ainda é muito selvagem para atrair turistas casuais. Os clãs da ilha ainda caçam cabeças, fazem magias e sacrifícios rituais com sangue de acordo com sua religião arcana, o Marapu, e as leis oficiais indonésias muitas vezes dão lugar ao adat – as leis e tradições dos clãs locais.

Viajamos para filmar a batalha Pasola em Wanukaka, um vilarejo no oeste de Sumba, onde membros do clã Praibakul, composto tanto por adolescentes quanto por idosos, preparavam suas lanças e cavalos para a batalha deste ano com o clã vizinho de Waihura. O enfrentamento estava marcado para dali a alguns dias, o que poderia mudar, dependendo do que os ratus — os xamãs locais — lessem na lua.

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O ratu da Pajura, Bapak Kameme Bili, fumando um cigarro antes da luta de boxe que antecede a Pasola.

Antes de dirigir até Wanukaka, paramos em uma barraquinha de beira de estrada para fazer um estoque de nozes de areca psicoativas chamadas pinangue de presente e para comprar cigarros de cravo Gudang Garam para os ratus e guerreiros pasola. Combinamos de ficar na casa de Rudy, descendente da família real Mamodo de Wanukaka. Sua casa, nos limites do vilarejo, era cercada por florestas de palmeiras e arrozais onde fazendeiros puxavam pesados arados de madeira com seus búfalos; parecia uma versão mais bonita da cena de abertura do Apocalypse Now.  Rudy ainda não tinha chegado, então, sua irmã Monica nos serviu chá doce na varanda da frente da casa, decorada com vários maxilares de porco. “Maxilares e caveiras de animais são símbolos de riqueza. Isso mostra que a família tem muitos animais e que pode comer carne”, ela explicou.

Na varanda lateral, o primo de Rudy, Dedi, um feroz guerreiro pasola, polia sua lança com um cigarro pendurado entre os lábios. Perguntamos a ele sobre sua preparação. “Não nos preparamos. Apenas vamos até lá e lutamos porque temos que fazer isso pela colheita”, ele disse. “Se você for atingido por uma lança e começar a sangrar, significa que a colheita será boa.” Dedi luta na Pasola desde os 14 anos e nos mostrou as cicatrizes por todo o corpo. “A dor, quando a lança te atinge é inacreditável, especialmente quando te acerta na cabeça.” Ele se ofereceu para nos levar até uma luta de boxe sem luvas chamada Pajura naquela noite, um evento que acontece tradicionalmente antes da Pasola. Aceitamos, alegremente, antes de sermos avisados que os espectadores são atingidos com frequência pelos socos, e que alguns dos boxeadores enrolam pedras, chifres ou vidro quebrado em seus punhos. Um membro mais velho da família acrescentou que, ultimamente, a Pasola tem sido muito mais sangrenta. “Foi apenas há 40 anos que o governo proibiu as lanças com pontas de metal e os parangs [tipo de fação de lâmina longa que todo homem sumbanês carrega consigo durante a Pasola. Agora, os combatentes usam lanças sem ponta”, disse ele.

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Depois de jantar macarrão frito e carne de cachorro, Dedi e seus amigos, animados após beber a caixa de cerveja que trouxemos para eles, decidiram que era hora de ir para a Pajura em Tetena. Pegar carona na garupa da moto de um guerreiro pasola bêbado, atravessar estradas no meio da floresta sem capacete para chegar a uma luta de boxe sem luvas sob o luar pode parecer alarmante, mas o passeio sob as estrelas é incrível. Devemos ter rodado por uns 45 minutos, passando por infinitas palmeiras e cercados por morcegos, quando a estrada chegou a um final abrupto em um campo com vegetação na altura do ombro. Dedi e seus amigos continuaram dirigindo a toda velocidade em meio à grama alta, até chegarmos a um pequeno caminho que dava a uma escadaria de uns cem degraus levando praia abaixo. Chegamos cedo. Poucas pessoas estavam sentadas na areia, fumando Gudang Garam para repelir os enxames de mosquitos.

Dedi nos levou a uma tenda onde alguns homens estavam reunidos ao redor do ratu, sentados com as pernas cruzadas e embrulhado em um impressionante ikat, preparando suas nozes de areca num pilão de madeira. Ele era o ratu da Pajura – naquela noite apenas, o juiz de boxe mais incrível da Terra. Ele explicou as regras da luta por meio de uma antiga lenda no dialeto local. A história envolvia um homem que se perdeu no mar e cuja esposa se casa com outro, o que resultou em uma luta entre clãs e acabou com a troca de nyale sagrado, um verme marinho que aparece uma vez por ano, determinando o dia da Pasola. Mesmo depois de toda a história, ficamos sem saber muito mais sobre os aspectos técnicos da luta. A essa altura, centenas, se não milhares, de pessoas tinham se reunido na praia e mais gente ainda descia pela escada lotada.

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Um ratu tentando pegar os vermes marinhos sagrados, os nyale, que só aparecem na praia uma vez por ano, anunciando o dia da Pasola. Acredita-se que a cor dos nyale prevê a fartura da próxima colheita.

De repente, a multidão abriu um círculo improvisado ao redor de onde uma luta já tinha começado. As lutas aleatórias se iniciavam por todo lado. A única regra perceptível era que, quando um cara do clã Praibakul reconhecia alguém do clã Waihura, eles tinham que lutar. Dedi nos assegurou que o ratu tinha “casca de árvore” para tratar os ferimentos.

Quando nosso cinegrafista foi socado no estômago, e quando políticos locais de cara feia, portando parangs, começaram a puxar briga com as pessoas, sentimos que era hora de ir embora, mas passamos umas duas horas na fila para subir pelos degraus estreitos.

Rudy trabalha como assessor legal para a Fundação Sumba, uma organização sem fins lucrativos que estabeleceu clínicas de malária e escolas na ilha, e que fornece água limpa aos aldeões. Na manhã depois da luta, ele e um de seus colegas, um médico dinamarquês chamado Claus Bogh, que passou boa parte da década na ilha, tomaram chá conosco na varanda de sua casa.

“Em Sumba, sangue representa tudo: comida, guerra, vida”, ele disse. “Na Pasola, enquanto não houver sangue no chão, os ratus não vão parar o jogo. Eles têm que se certificar de que a colheita de arroz do próximo ano será boa. Para isso, precisa haver sangue.”

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Ele nos advertiu. “Um espectador foi morto alguns anos atrás. Uma lança o acertou bem no olho e ele morreu em dez minutos.” Ele nos avisou também que toda a Pasola costuma terminar em caos, em geral, com muitas pedradas. Ele também confirmou os rumores sobre clãs caçadores de cabeça.

O ratu mais famoso de Sumba, Dangu Duka, mascando nozes de areca antes da Pasola.

“Alguns anos atrás, um clã sequestrou uma garota porque ela se recusou a casar com um dos homens deles. Quando o clã dela descobriu, eles foram atrás dela e cortaram a cabeça dos sequestradores, depois mandaram as cabeças de volta para o clã deles. Em 1982, acho, houve uma grande briga entre dois clãs e 200 pessoas tiveram as cabeças cortadas.”

Descobrimos depois que um dia antes de deixarmos a ilha, sete pessoas foram decapitadas numa disputa por terras não muito longe de onde tínhamos ficado.

Depois de falarmos com Claus, Rudy nos levou para conhecer o ratu mais famoso de Sumba, Dangu Duka, um homem cuja metade do rosto se tornou preta misteriosamente. “Os deuses dos céus e do subterrâneo nos dizem quando a Pasola deve acontecer mandando o nyale. Rezamos ao amanhecer e ao pôr do sol aos deuses e medimos os ciclos da lua para prever quando o nyale virá”, ele nos explicou. Além de definir a data da Pasola, o nyale mostra a qualidade da colheita, dependendo de sua cor e forma. “O solo precisa de sangue”, ele disse. “Se alguém é morto na Pasola, o assunto é tratado como uma questão local, isso não tem nada a ver com a lei indonésia.”

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Ao mesmo tempo em que falava com a gente, o ratu esmagava suas pinangues e as mascava com pó de giz e uma planta verde mantida em uma pequena bolsa de palha. Experimentamos um pouco. As pinangues têm gosto de grãos de café embebidos em cloro. Seguindo o exemplo dele, cuspimos a copiosa quantidade de saliva vermelha que a noz produz, e aproveitamos a sensação de uma euforia relaxada.

Ao entardecer, fizemos nossa viagem à vila sagrada de Ububewi, onde três ratus estavam prestes a começar o ritual da Pasola. Dedi e seus amigos nos deram uma carona, porém, pararam no meio de uma estrada de terra na floresta, dizendo que teríamos que andar o resto do caminho, pois o barulho das motos atrapalharia a cerimônia sagrada. Quando chegamos ao topo da colina, os ratus estavam relaxando em uma varanda e mascando pinangues. Tínhamos acabado de perder o primeiro ritual, o sacrifício de galinhas para prever o futuro da Pasola em suas entranhas. Enquanto a luz da lua ficava mais forte, depois que os ratus terminaram de vestir seus ikats de padrões intrincados e penas, eles pegaram suas cestas de pinangue e frascos de óleo de coco e se posicionaram em uma enorme plataforma natural de pedra com vista para a floresta e o vale iluminado pela lua. Lá, eles cantaram seus hinos xamânicos, chamando o nyale com zumbidos para a lua. Sem interromper seus encantamentos, eles desceram a colina até a praia onde esperavam os vermes marinhos aparecer.

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Uma lança dilacerou o nariz desse guerreiro pasola. O cara que jogou a lança fez uma volta olímpica enquanto era aplaudido pela multidão. Os sumbaneses acreditam que a colheita de arroz depende do sangue derramado na terra para ser fertilizada.

Seguimos os ratus, tentando, com dificuldade, evitar as grandes fendas no chão, quase invisíveis no escuro. Enquanto isso, cada vez mais aldeões se juntavam à procissão. Finalmente, chegamos à praia nas primeiras horas da manhã e assistimos ao nascer do sol enquanto os ratus andavam pela beira do mar para pegar os nyale que vinham chamando desde a meia-noite. Depois de 20 minutos, eles voltaram para a praia com suas presas. Centenas de pessoas se espremeram para ouvir as previsões para a próxima colheita. Este ano, os vermes marinhos eram verdes e marrons. Verde significa que os arrozais serão infestados por musgo e o marrom era um alerta sobre problemas com insetos. Notícias não muito boas. Por volta das sete da manhã, os guerreiros pasola chegaram montados em seus cavalos decorados. Quando o sol escaldante já estava alto, a primeira luta da Pasola começou. Cada vez mais pessoas chegavam, espremendo-se umas contra as outras para chegar mais perto das lanças que voavam. Depois de uma hora e meia, os guerreiros pasola, agora aquecidos, dirigiram-se para o campo principal do outro lado da vila.

Milhares de pessoas se aglomeraram ali, todas tentando ficar na frente. Algumas subiam nas árvores para ver melhor. Os combatentes, lançando incansavelmente suas lanças uns nos outros, nem pareciam notar o calor e se mostravam completamente destemidos. Eles acreditam que morrer na Pasola é uma honra e que, então, você volta aos seus ancestrais. Sempre que alguém era atingido, o guerreiro que havia atirado a lança jogava as mãos para o alto vitorioso, enquanto seus colegas do clã gritavam em comemoração.

Muitas horas depois, nossos bronzeados estavam próximos de queimaduras de segundo grau. Por volta das três da tarde, sentindo que a luta era interminável, nosso cinegrafista, desesperado por sombra, roubou um guarda-chuva florido para tirar uma soneca debaixo dele. Assim que ele achou uma posição confortável, um membro de um dos clãs, frustrado com a falta de sangue derramado, começou a jogar pedras nos combatentes e na multidão. Nesse ponto, a polícia indonésia, que até então tinha se mantido discreta, começou a disparar suas metralhadoras para o alto, provocando pânico e dispersando a multidão, que incluía os guerreiros e seus cavalos.

Como Claus havia prometido, a Pasola terminou em caos. Dedi, que lutou de maneira impressionante por um longo tempo, fez sua volta da vitória, seus olhos brilhando com orgulho. Depois, ele subiu a colina até sua casa, onde nos juntamos a ele e sua família para o banquete da Pasola. Enquanto cochilávamos na varanda de Dedi, entre uma rodada e outra de arroz, ensopado de cachorro, macarrão frito com nyale e pinangues, me ocorreu que, em vez do banho de sangue que eu havia previsto de início, a Pasola tinha mais a ver com restaurar a paz, dar vazão à violência e resolver disputas entre os clãs. Uma vez que você vence o medo de ser pisoteado ou espetado no olho, o caos é realmente libertador.

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