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Sobrevivencialistas

Forte nos Estados Unidos, o movimento sobrevivencialista vem ganhando adeptos no Brasil e, em linhas gerais, consiste em estar preparado para lidar com situações inesperadas e capazes de causar graves danos a você e a sua família. Ou seja, não se trata...

Admito: dentre todas as causas possíveis para o fim do mundo tal qual conhecemos hoje, a única que já me fez parar para pensar sobre o assunto com alguma seriedade é a do apocalipse zumbi. Me incomoda, por exemplo, a facilidade que minha vizinha teria para saltar para a varanda do meu apartamento caso ela se transformasse num desses zumbis raivosos e atléticos dos filmes de hoje. Isso sem falar em seu onipresente namorado, que não perderia a oportunidade de degustar meu cérebro suculento e de quebra se vingar dos comentários pouco respeitosos sobre sua namorada que, por mero descuido da minha parte, ele provavelmente já escutou.

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Enquanto perco meu tempo — mesmo — imaginando esse sinistro cenário, minha cidade volta a conviver com índices de assassinatos compatíveis com o de uma guerra civil e a quantidade de comida que tenho em estoque neste exato momento não deixaria, em uma situação de emergência, meu estômago livre de roncos nem por um dia. Sem falar que, em um país onde apagões não são exatamente uma raridade, tudo o que tenho para driblar o breu total é um punhado de velas e caixas de fósforos que mais parecem um kit-macumba. E o aplicativo mais avançado do meu celular, uma lanterna. O que dizer, então, das minhas habilidades motoras? Seria preferível que, antes de questionar minha capacidade de lutar contra múltiplos zumbis ao mesmo tempo, eu aprendesse a trocar uma lâmpada sem me machucar.

Decidi começar a matéria com meu vergonhoso exemplo pessoal para ilustrar o quanto a grande maioria de nós, em matéria de situações extremas, se preocupa com as coisas erradas ou sequer se preocupa de verdade com a seguinte questão: sou capaz de sobreviver caso uma grande de uma merda aconteça? Por “grande de uma merda” entenda um vasto catálogo que inclui desastres naturais, caos social, guerra nuclear e crise energética. Perder tempo se preparando para situações como essas ainda é, para o senso comum, coisa de gente paranóica, mas talvez você mude de opinião ao conhecer os chamados sobrevivencialistas.

Forte nos Estados Unidos, o movimento sobrevivencialista vem ganhando adeptos no Brasil e, em linhas gerais, consiste em estar preparado para lidar com situações inesperadas e capazes de causar graves danos a você e a sua família. Ou seja, não se trata necessariamente de pessoas que esperam pelo fim do mundo. É claro que, em caso de um evento cataclísmico, os entusiastas do conceito estariam preparados para durar bem mais do que eu ou você, mas, na prática, o que eles fazem é recuperar habilidades e técnicas de sobrevivências ignoradas pela sociedade moderna, acomodada e dependente da alta tecnologia. Conhecimentos que — para ficar num exemplo brasileiro — poderiam ter amenizado as conseqüências dos deslizamentos de terra na região serrana do Rio de Janeiro caso a população estivesse a par deles e não dependesse exclusivamente da Defesa Civil, ou seja, do governo, para se salvar.

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Estocar comida e água, plantar, criar animais, saber fabricar e usar suas próprias armas e utensílios, contar com um aposento de estruturas reforçadas em sua casa ou mesmo com um segundo local preparado para receber você e sua família caso o caos se instale lá fora. Essas são algumas ideias básicas dos sobrevivencialistas, e não parecem tão excêntricas quando você começa a pesquisar sobre elas. Na verdade, elas parecem fazer algum, ou todo sentido, quando você conhece fóruns de debate como o sobrevivencialismo.com, o sobrevivencialsmo.org e o sobrevivencialismourbano.com.

Quem já assistiu “Preparados para o Fim”, programa da National Geographic sobre o tema, provavelmente balançou a cabeça quando insinuei que sobrevivencialistas não são excêntricos. Isso porque, por razões históricas e culturais, os sobrevivencialistas norte-americanos (chamados de preppers, ou “preparados”) mostrados no programa parecem tão obcecados com a ideia de sobreviver a uma megacatástrofe (seja ataque nuclear, colapso do sistema financeiro ou erupções solares que irão paralisar todos nossos aparelhos eletrônicos) que é muito, muito difícil assisti-los sem considerar a hipótese de que ali estão pessoas com sérios transtornos psiquiátricos.

No caso dos brasileiros, é muito improvável que, ao conhecer o Batata, alguém alimente a mesma suspeita a seu respeito. Batata é o apelido do responsável pelo site Sobrevivencialismo Urbano (e seu lindo canal no YouTube). Ele tem 39 anos, mora no interior paulista e mantém também um canal no YouTube, chamado “Guia do Sobrevivente”, com dezenas de vídeos explicativos sobre técnicas de sobrevivencialismo. Didáticos e bem-humorados, os vídeos do canal não mostram um obcecado paranóico, mas um cara bonachão, engraçado e que parece se divertir genuinamente com aquilo que faz. Em suas aparições no “Guia do Sobrevivente”, Batata ensina, entre outras coisas, a fazer estilingues, flechas, arcos e facas caseiros, estocar grãos, desidratar alimentos, montar um kit básico de sobrevivência e até a reforçar as paredes de um ambiente.

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Este último tópico mereceu uma sequência especial de vídeos, que Batata chamou de “Jornal do Bunker”, mas que nem por isso tratou de modo sombrio. Ao apresentar o cômodo da casa a ser reformado, por exemplo, Batata não esconde a pilha de revistas pornográficas amontoadas num canto.

Nascido e criado em São Paulo, formado em duas graduações, Batata perdeu a paciência com a cidade grande e, após se casar, mudou para uma cidade pequena no norte do estado. Lá, passou a ter mais tempo e espaço para se dedicar, por exemplo, a cultivar sua própria horta e a outras atividades que depois seriam úteis para seu lado sobrevivencialista. “Mesmo antes de conhecer o conceito de sobrevivencialismo, eu já gostava de plantar, de mexer com ferramentas, de aprender coisas que me tornariam mais autossuficiente”, diz Batata. Escutá-lo falar sobre seus tutoriais no YouTube deixa ainda mais claro que ali não está um cara que pretende incutir o medo do apocalipse entre os brasileiros, mas sim alguém que se diverte com a oportunidade de aprender e ensinar coisas úteis para situações completamente plausíveis.

Batata acredita que nem sua esposa, nem seus vizinhos, temem que, no fundo, ele seja mesmo um lunático paranóico. “Minha esposa acha um barato, ela até curte me ver fazendo as coisas que mostro nos vídeos. E meus vizinhos também já sabem sobre as minhas preparações. Eles respeitam e muitas vezes são curiosos em aprender alguma coisa.”

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Para Batata, esperar uma catástrofe para só então correr ao Walmart e gastar 20 mil reais em provisões não é uma opção. Ele se considera um sobrevivencialista “sustentável”. “Eu prefiro, por exemplo, produzir em casa parte dos alimentos que preciso ter em estoque a sair por aí comprando feito um doido. É viável e bem mais econômico.”

E a filosofia “faça você mesmo” de Batata não se restringe à comida. Suas habilidades em confeccionar estilingues, arcos e flechas vêm, segundo ele, da necessidade de contar com um instrumento para defesa pessoal que não exija toda a gigantesca burocracia para se obter porte de arma de fogo. “O estilingue pode parecer brinquedo de criança. Mas imagine, por exemplo, que você está acampado e passa por uma situação de perigo. Pode ser muito útil. Mas é claro que sei que não preciso de um bunker. Mas acompanhar esse processo de tornar um ambiente mais seguro para situações de emergência foi divertido e instrutivo para mim e para o pessoal que assiste aos meus vídeos.”

Já R, de 36 anos, é médico em uma cidade do norte do Paraná e, diferentemente do midiático Batata, pede que não revelemos sequer seu nome. Sua discrição, no entanto, não vem da necessidade de esconder arsenais ultrassecretos ou outras excentricidades ao estilo “Preparados para o Fim”.  R. não tem dúvidas de que, caso o caos venha de fato, sua escolha é ficar em casa até, quem sabe, a coisa melhorar um pouco. Essa opção também explica sua preferência pelo anonimato. “Imagina todo mundo ficar sabendo que estoco comida em casa. Numa situação de caos, isso aqui ia virar a mercearia da vizinhança”, diz ele. Além disso, R se considera mais um simpatizante do sobrevivencialismo do que um sobrevivencialista de fato. Isso não o impede, porém, de acompanhar os fóruns de discussão sobre o tema e de se preparar para a possibilidade que mais o preocupa: o caos social. Estocar comida, roupas, produtos de higiene e de limpeza fazem parte da sua estratégia. Saber utilizar armas, e defender o direito de portá-las, também. Diferente do que talvez você já esteja pensando, porém, R expõe seus pontos de vista com uma objetividade e serenidade que tornam suas medidas perfeitamente compreensíveis.

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“Não precisamos ir muito longe para imaginarmos situações muito delicadas. Veja o caso da greve da polícia em Salvador, por exemplo. Nem tudo o que aconteceu lá chegou até nós, mas com certeza foi um momento de extremo perigo para todos”, diz R.

Relembro os também recentes e ultraviolentos protestos/rebeliões/arruaça em Londres e pergunto se estes não são eventos que deveriam preocupar moradores de grandes cidades e não quem, como ele, vive em locais que não chegam a ter 100 mil habitantes. “É aí que você se engana”, discorda R, lembrando que sua cidade tem um dos maiores índices de usuários de crack do estado e que, como médico, não são poucas as barbaridades que ele já testemunhou em pronto-socorros da região.

Temendo pela reação de R, mas apostando alto em seu bom-humor apesar da seriedade de seu tom de voz, termino a conversa confessando meu estúpido temor por zumbis. “Mas me diz, o que faz um zumbi? Come outras pessoas, certo? Em uma situação em que as pessoas fiquem sem comida, você acha que seu vizinho não ia te olhar e enxergar um prato de comida?”

Não é que, no final, eu não estava tão errado assim?

O Bruno Gianfaldoni colaborou pra execução dessa matéria.