FYI.

This story is over 5 years old.

Música

A Era do Chorume

É gostoso demais xingar muito nas redes sociais, mas será que o textão do Face consegue efetivamente mudar a realidade? Lógico que não.

Na internet, você é o juiz, júri e executor, e pode declarar o seu veredicto com um único clique. Como bem nos lembrou o escândalo da semana passada nas redes sociais envolvendo os comentários idiotas sobre homossexualidade do produtor de house lituano Ten Walls, vivemos na era da cultura da indignação.

Com o tempo de concentração do público cada vez menor na internet, atualmente há menos espaço do que nunca para nuance ou sutileza no ciclo de conteúdo digital. As histórias chegam prontas, fracionadas em pedacinhos polarizados prontos para serem mastigados e cuspidos ao final da leitura. Com isso se cria um padrão perturbador: Ofensa! Indignação! Reação! Vingança! Próximo!

Publicidade

Não há nada de intrinsecamente ruim na indignação. As declarações do Ten Walls foram inegavelmente erradas e ultrajantes, mas o modo como a geração internet circula por esse processo de recriminação eletrônica é uma farsa superficial, puro discurso. De muitas maneiras, é um indicativo tanto da nossa relação superficial com o mundo real quanto do nosso distanciamento do mesmo mundo real.

É assim que você se parece na internet // Foto via Twitter

Na cultura eletrônica, em particular, a indignação pode ter menos a ver com um elevado grau de moralidade e mais com a inclusão do espectador no que é, muitas vezes, uma comunidade virtual. No mais geral dos termos, é uma comunidade cuja adesão é definida por um "nós" e a exclusão involuntária "deles". Quando algo desagradável acontece, o protagonista se torna um judas a ser malhado; são bodes expiatórios para problemas muito maiores, forçados a passar seus dias no cadafalso, não importa quão sinceros sejam seus pedidos de desculpas. Um zeitgeist temporário se forma ao redor da pilha de conteúdo que costumava ser a vida do transgressor.

A cultura dance sempre foi um lugar de forasteiros e, até certo ponto, rituais como esse são como nos protegemos de invasores e definimos quem somos. Em outra época, a cultura eletrônica foi o lugar onde os que estavam à margem encontraram o seu lar, mas seguidamente, em nossos esforços de preservar esse santuário, negligenciamos um dever talvez mais importante: encaminhar algumas poucas almas jovens à iluminação. Memes e tweets muitas vezes não são suficientes para desconstruir os verdadeiros problemas que se escondem sob todos esses cliques frenéticos.

Publicidade

A Caçada aos Cocares

Photo via Foto via EDMSauce.com

Em 2014, o Lightning in a Bottle se tornou o primeiro festival a banir definitivamente os cocares indígenas, uma tendência de moda quase onipresente em festivais de todo o mundo. Alguns meses depois, o Bass Coast Festival seguiu o exemplo. Bastante cafona, a prática não foi embargada em nome do bom senso estético, mas em respeito à subjugação da tradição milenar dos índios norte-americanos aos governos americano e canadense, com a qual esses povos sofrem até hoje.

No caso do LIB, foi um gesto nobre do promoter The Do LaB, um defensor da cultura progressista que mantém laços estreitos com as tribos indígenas das terras onde foram realizados os eventos. Numa onda de virtude, os fãs o apoiaram nas redes sociais e na vida real, usando bordões como "apropriação cultural" e "reforço de estereótipos". Com razão, em 2015, alguém usar um cocar em qualquer grande festival da costa oeste irá provocar a ira de seus pares, ou pelo menos um sermão sobre sensibilidade cultural.

Pegar algo emprestado de outras culturas, quando feito de maneira consciente e respeitosa, pode promover o crescimento cultural.

Ainda assim, se a consideração dos festivais pelas comunidades indígenas fosse realmente verdadeira, haveria mais ações além do banimento dos cocares. Em eventos como o Lightning in a Bottle, há uma série de oficinas inspiradas por e/ou em homenagem a um sentido genérico de espiritualismo indígena. Em um festival maior como o Coachella, entretanto, a maioria das pessoas sabe que é errado usar um cocar porque é "ofensivo", mas raramente se pergunta o porquê disso ou se analisa mais a fundo o que pode ser considerado insensível ou desrespeitoso em relação às pessoas que viviam nesta terra antes dos europeus a reivindicarem.

Publicidade

O estilo criativo dos Burners // Foto por Scott London

Outra tendência de moda incontestada nas raves do deserto é melhor descrita como "Beduíno chique", uma adaptação das faixas de tecido pesadas, em cores claras, seguidamente usadas ao redor da cabeça, criadas originalmente para enfrentar o calor e os ambientes ventosos, cheios de areia, habitados pelas tribos nômades dos desertos árabes e norte-africanos. Como talvez saibam alguns americanos, muitos cidadãos da península arábica foram desalojados, ou coisa pior, como resultado direto das políticas externas norte-americanas e europeias no Oriente Médio. Em teoria, pegar emprestado algo de um povo oprimido pelo governo americano poderia cair sob o mesmo escrutínio a que está sujeito o uso do cocar indígena. Ainda assim, como não se iniciou o entrou no ciclo de indignação, o problema sequer foi considerado.

Em última instância, politizar o que é usado nos festivais é uma tarefa superficial. Seríamos mais beneficiados como comunidade se nos engajássemos em uma análise mais profunda do nosso próprio modo de pensar. Pegar algo emprestado de outras culturas, quando feito de maneira consciente e respeitosa, pode promover o crescimento cultural, e isso é uma das bases das identidades americana e canadense. A cultura dos festivais em si tem como premissa a liberdade de expressão irrestrita. Pelo menos concordamos que cocares, mesmo que sejam apropriação cultural, são transgressões nascidas da ignorância, sem intenção de causar danos. Mas e quando a indignação é provocada de uma maneira muito mais agressiva?

Publicidade

Comer,Dormir, Causar Indignação, Repetir

Quando cobria o primeiro final de semana do Coachella, este ano, tuitei a foto de um cara vestindo uma camiseta estampada com o que agora se tornou uma frase infame: "Comer Dormir Estuprar Repetir", uma adaptação grosseira do título de uma música do Fatboy Slim de 2013, "Eat Sleep Rave Repeat" ["Comer Dormir Dançar Repetir"].

A foto da camiseta ofensiva foi imediatamente compartilhada por veículos de comunicação do mundo inteiro, e a avalanche de indignação que ela causou foi rápida e inequívoca. No geral, as reações foram de choque, repulsa e espanto. Ainda assim, uma minoria expressiva sugeriu praticar alguma forma de violência contra o homem que a vestia.

É claro, as pessoas dizem coisas na internet que muitas vezes não são verdade. Ainda assim, se aqueles ofendidos pelo incentivo da camiseta à violência sexual estavam genuinamente interessados em combater a sua mensagem, sugerir que alguém infligisse algum tipo de violência retaliatória em que a vestia é uma reação hipócrita. Mensagens violentas não são resolvidas com atos de violência, físicos, verbais ou digitais.

Enquanto a reação da internet à camiseta e ao homem que a vestia foi veemente, a reação na vida real, no Coachella, foi branda em comparação. Alguém disse a ele que a sua camiseta era ofensiva? Alguém do festival exigiu que ele virasse a camiseta do avesso ou fosse embora? Ele foi interpelado por centenas de pessoas defendendo os direitos das vítimas de violência sexual? Não que saibamos. Em um espaço onde a indignação talvez pudesse ter tido impacto, ela não aconteceu. Em contraste, na internet, a indignação vira pantomima. O THUMP nunca identificou o homem da camiseta, mas outros veículos o identificaram, fazendo-o desaparecer das redes sociais e supostamente se refugiar no anonimato (tanto quanto isso é possível na era digital).

Publicidade

Como parte de um enredo ardiloso, a indignação seguidamente é franca, mal direcionada ou mal informada. Muitos indivíduos (e alguns blogs) identificaram erroneamente o fotógrafo (eu) como o homem que vestia a camiseta. Pessoalmente, sou capaz de aguentar a avalanche de tweets e mensagens de Facebook raivosos, mas se alguém não se dá ao trabalho de saber o contexto, que direito essa pessoa tem de opinar tão agressivamente sobre o assunto? Na internet, nossa causticidade contra alvos humanos (virtuais) é amplificada, mas ninguém é punido por se eximir de fazer julgamentos. As ramificações das ações das pessoas na internet acontecem no mundo real, mas para muitos, essas caças às bruxas virais são como games que jogamos no Facebook e no Twitter, como Angry Birds e Farmville.

O Frenesi Midiáticoe a Queda do Ten Walls

Não digo nada disso para diminuir a importância dessas questões, mas às vezes, a reação à elas ofusca a própria solução dos problemas. Na quinta-feira, 4 de junho, o site Gay Star News publicou uma matéria sobre um post delirante e cheio de ódio do produtor de house lituano Ten Walls sobre a homossexualidade. O post original, em lituano, não foi notado até alguns dias depois de ser publicado, quando um ativista lituano forneceu uma tradução para o inglês para o site. Mesmo assim, a notícia passou batida para os veículos de música até a noite de domingo e a manhã de segunda — quase uma semana depois da mensagem ofensiva ser publicada.

Publicidade

Uma vez percebida, a notícia correu todos os veículos de música eletrônica da internet quase que instantaneamente. À medida em que ela se espalhava, organizadores de festivais, artistas e promoters agiram o mais rápido possível para cancelar eventos relacionados ao produtor lituano e se distanciar dele antes que apontassem o dedo para eles. Depois de anos de trabalho sólido como produtor e DJ, e apenas um ano depois de lançar o seu primeiro sucesso, "Walking With Elephants", que chegou ao Top 10 na Inglaterra, a carreira de Ten Walls estava acabada em questão de horas.

Certamente, ele não foi o primeiro homofóbico dentro da cultura dance. Embora a cena tenha nascido em clubes gays, desde então ela tem sido capitaneada por pessoas hétero, algumas das quais indiferentes às suas origens. Ten Walls não vai ser o último homofóbico dentro da cultura dance também. Mas a rápida reação aos seus comentários não foi parte de um esforço maior para combater políticas ou sentimentos homofóbicos, mas mais uma demonstração de solidariedade limitada e talvez superficial contra a expressão de uma ideia que é (corretamente) considerada inapropriada pelo público de dance music de hoje, liberal e, ao menos em teoria, inclusivo.

O protesto nas redes sociais não se manifesta no mundo real e o progresso que poderíamos estar alcançando desaparece tão rápido quanto essas notícias do seu feed.

Essa evolução do engajamento social por meio dos ciclos de ódio da internet tem sido simbiótica para veículos de comunicação e público. Assim como as publicações impressas eram motivadas pelos assinantes, os veículos online são motivados por cliques. Cliques mantém as luzes acesas. Dado o apetite pela indignação, denunciar alguém pela sua homofobia pode ser uma boa artimanha para gerar tráfego, amplificando ainda mais os acessos com matérias subsequentes sobre como uma indústria ou comunidade se mobilizou em torno da causa. O imperativo para qualquer veículo é seguir os números. Se as pessoas continuarem clicando, os posts vão continuar vindo.

De modo geral, o banimento dos cocares indígenas não afetou as vidas dos índios norte-americanos. O tsunami de tweets sobre a camiseta daquele cara idiota no Coachella teve pouco impacto na prevalência da cultura do estupro nos Estados Unidos. Ten Walls, como o governo do seu país de origem, a Lituânia, provavelmente ainda é homofóbico (embora talvez tenha se tornado sensato o suficiente para não postar a respeito no Facebook). A cultura de indignação da qual se alimentaram essas notícias é limitada em sua efetividade porque funciona em um vácuo online. O protesto nas redes sociais não se manifesta no mundo real, onde a vida real acontece, e as lições que poderíamos estar aprendendo e o progresso que poderíamos estar alcançando desaparecem tão rapidamente quanto essas notícias do seu feed. É como se o mundo real servisse ao mundo online, não o contrário.

Como podemos transformar a indignação na internet em uma mudança significativa no mundo real? Se você achar algo ofensivo, tenha uma conversa de verdade sobre isso com gente de verdade, ouça a opinião dos outros e entenda as nuances do que é quase sempre uma situação multifacetada. A indignação por si só é um esforço inútil, mas se encaixa bem ao ritmo acelerado da internet e à reduzida capacidade de concentração dos usuários. Se todos nós nos responsabilizássemos pela nossa indignação, talvez pudéssemos usá-la para impactar a sociedade. Gritar para o vácuo junto com uma multidão de estranhos não está funcionando.

Ofendido? Indignado? Fale para o Jemayel Khawaja no Twitter.

Tradução: Fernanda Botta