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Este game mente para os jogadores para simular um transtorno mental

Para dar vida a "Hellblade: Senua's Sacrifice", desenvolvedores passaram horas com psicólogos e pacientes psicóticos.

Enquanto atravesso alucinações e avanço contra os lacaios do vil deus-corvo Valravn, ouço um sussurro familiar.

"Quando a escuridão fala, tudo muda: nosso lar vira terra estrangeira e nossos entes queridos, estranhos", diz a voz. "Quando entendemos que nunca tivemos lar, o exílio passa a fazer sentido."

Essas alucinações, murmúrios e epifanias estranhas fazem parte de um jogo chamado Hellblade: Senua's Sacrifice, e a escuridão da qual a voz fala é uma metáfora para transtornos mentais. Digo isso porque é assim que o jogo foi divulgado: a Ninja Theory, desenvolvedora de Hellblade, foi muito franca quanto a seu desejo de usar essa mídia para contar uma história sobre saúde mental.

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Hellblade narra a saga de Senua, uma guerreira que, tal como Orfeu, parte em uma jornada para salvar a alma de seu falecido amado. Para tanto, ela deve atravessar o inferno Viking e enfrentar tanto seus demônios internos quanto os horrores do além-vida. Esses demônios, fruto de uma longa e detalhada pesquisa, são mais assustadores do que qualquer um dos inimigos mais convencionais do jogo.

A temática tem um motivo: Senua sofre de transtorno psicótico. Esse é o termo clínicocomumente empregado no Reino Unido, de onde vem a Ninja Theory — para uma ampla gama de sintomas geralmente reunidos sob o diagnóstico de esquizofrenia. Senua, como outros com o mesmo transtorno, ouve vozes que não existem e vê coisas que não são reais.

Crédito: Ninja Theory

A forma escolhida pela Ninja Theory para representar essas questões é igualmente brilhante e frustrante. Enquanto jogamos, as caixas de som são invadidas e abandonadas por vozes delirantes. Elas narram a história pregressa daquele mundo, nos avisam quando estamos em perigo e nos dão conselhos contraditórios. Durante uma batalha, uma voz pode me aconselhar a agachar e a outra, a bloquear um golpe. Já aconteceu de uma delas me alertar de um perigo iminente só para que eu me virasse, apavorado, e desse de cara com o nada. Mas isso não quer dizer que elas nunca estejam certas, portanto ignorá-las também é uma escolha arriscada.

Outros detalhes aumentam a frustração. O jogo não nos ensina seus mecanismos. Não há nenhum tutorial de combate, nenhuma explicação sobre o sistema que destrói seu save inadvertidamente, nenhuma forma de saber o que é real e o que não é. O jogo me fez duvidar de mim mesmo. Um exemplo: Senua deveria ser capaz de bloquear ataques durante lutas, mas eu nem sempre consigo executar essa ação.

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No início pensei que o botão do meu controle estivesse danificado, mas o problema continuou mesmo depois que passei a jogar com um teclado. Na internet, não encontrei ninguém com o mesmo problema, o que me deixou ainda mais frustrado. Além disso, eu morro demais. O jogo não é particularmente difícil; ele é apenas impiedoso. Nesse aspecto, ele me lembra Dark Souls.

Não morrer é uma parte importante do jogo: cada morte faz com que uma parte de Senua apodreça. "Se a decomposição chegar até a cabeça de Senua, sua jornada chega ao fim", explicam os desenvolvedores. "E todo progresso é deletado."

Resumindo, se você jogar mal, seu save será deletado. Isso, é claro, torna cada morte enervante. No entanto, muitos duvidam da existência desse recurso. Para testar sua veracidade, alguns colunistas do site PCGamesN colocaram Senua frente a frente com um inimigo no maior nível de dificuldade do jogo e deixaram ela morrer repetidas vezes. Após um total de 50 mortes, a equipe do PCGamersN declarou que a ameaça da Ninja Theory não passava de "blefe".

Já outros jogadores não têm tanta certeza. Membros do reddit afirmam que o jogo reinicia o processo de decomposição a cada checkpoint. Como existem muitos desses, é quase impossível perder seu save. Não encontrei ninguém que foi obrigado a começar o jogo do zero. A possibilidade de que os desenvolvedores estejam mentindo gera ainda mais estresse e confusão. Frente à ela, passamos a duvidar de tudo que nos dizem — e esse é o objetivo.

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Hellblade não é o primeiro jogo a tematizar transtornos mentais ou a confundir seus jogadores. A batalha contra o Psycho Mantis em Metal Gear Solid, que alterava o funcionamento da TV e lia o cartão de memória do video game, enlouqueceu muitos jogadores. Eternal Darkness, um jogo do Gamecube, fingia deletar saves. Call of Cthulhu: Dark Corners of the Earth, Darkest Dungeon e Bloodborne usavam algum tipo de medidor de sanidade como uma barra de vida secundária.

Crédito: Ninja Theory

Mas a Ninja Theory deu um passo além. A empresa quer colocar os jogadores na pele de alguém que sofre de um transtorno mental. Informações conflitantes sobre as consequências de suas ações, controles bugados e conselhos contraditórios de NPCs fazem parte dessa jornada. O jogo é frustrante, irritante e, por vezes, nada divertido. E tudo isso é proposital.

"A protagonista do jogo sofre de depressão e ansiedade, transtornos que causam eventuais surtos psicóticos. Essa 'viagem ao inferno' é uma manifestação de seu subconsciente", disse Dominic Matthews, diretor de desenvolvimento de produto da Ninja Theory em uma entrevista dada ao Motherboard em 2015. "Colocar os jogadores no lugar de uma personagem com um transtorno mental pode ajudá-los a compreender como é ter esse problema, o que ajuda a desmistificar a questão da saúde mental."

Para dar vida ao jogo, os desenvolvedores passaram muitas horas trabalhando com profissionais de saúde mental e entrevistando pacientes psicóticos. Especialistas e pacientes testaram o jogo e fizeram sugestões, ajudando os profissionais da Ninja Theory a moldar as experiências de Senua com base em seus relatos. Cada cópia de Hellblade possui um documentário de 25 minutos sobre o processo de criação do jogo.

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Minha família tem um histórico de transtornos mentais, em sua maioria casos de depressão e suicídio. Enquanto as vozes contavam a história de Senua e me impeliam a continuar minha aventura, me deparei com muitas frases familiares. Palavras já ditas por membros da minha família. Palavras já ouvidas dentro da minha própria cabeça.

Antes de Senua decidir resgatar a alma de seu amado, ela passa algum tempo na floresta, exilada de sua tribo. "Ela resolveu lutar e matar aquilo que havia se tornado parte dela", explica uma das vozes. Mas lutar não bastava. "Foi tão pueril pensar que ela conseguiria destruir aquilo sozinha".

"Não há vitória possível quando seu inimigo é a escuridão. Parece que ela ainda não quer matá-la… ", diz a voz. Aquilo me remeteu às muitas conversas sobre depressão e sofrimento que ouvi durante ceias de Natal. A sensação de que a depressão é uma força palpável e externa. Uma força que pode decidir te matar a qualquer momento.

"Você acha que pode vencer a escuridão", continua a voz. "Entendê-la. E quando o alívio vem, ela ataca de repente, jogando você de volta no turbilhão. O medo invadindo a mente, cada vez mais e mais, te puxando para profundezas de onde você talvez nunca possa voltar. A cada batalha a escuridão se fortalece. Cada vitória anuncia sua derrota. Injusto, não?"

Sentimos a injustiça na pele. Pessoas com transtornos mentais estão, muitas vezes, em guerra constante contra suas próprias mentes. Uma guerra que pode durar toda uma vida. Uma guerra em que cada vitória é um lembrete das consequências de uma possível derrota. Uma guerra na qual é possível passar anos sem sintomas, até que a música ou a comida errada te jogam de novo numa crise.

De todos os livros, filmes e séries que falam sobre transtornos mentais, nenhum conseguiu recriar esse sentimento tão bem quanto Hellblade: Senua's Sacrifice. Mesmo que ele não seja o jogo mais divertido da história, para mim, isso já faz dele uma conquista.

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