Não cabe a você dizer aos outros como eles devem se relacionar
The Love of Paris and Helen por Jacques-Louis David. Imagem via Wikimedia Commons.

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Feminisme

Não cabe a você dizer aos outros como eles devem se relacionar

Um apelo sincero neste Dia dos Namorados para vocês pararem de encher as pessoas que optaram pelo relacionamento aberto ou as que são monogâmicas.

Vivendo nesta bolha classe média de São Paulo bem chegada num Parque Augusta que grassa as redes sociais do país acaba sendo fácil perder um pouco o foco das coisas que importam e se perder em polarizações um pouco exageradas. Uma dessas polemicazinhas que curto tocar na ferida é essas cagadas de regra no tipo de relacionamento que os terceiros levam. Se você é do poliamor, se prepare para ser chamado de putanheiro ou de corno gourmet. Agora, se você é monogâmico, aperte os cintos, porque você é considerado conservador e retrógrado. Essa polarização, além de ser um baita saco, mostra que as redes sociais fizeram a gente perder um pouco a noção de espaço pessoal do amiguinho. E também acaba por dificultar um papo legal e reto sobre as relações amorosas modernas.

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Eu sou heterossexual e tenho um relacionamento fechado. Bem conservadora, mas não significa que eu e as outras pessoas que levam relacionamentos monogâmicos não pensem que de certa forma esse modelo é ultrapassado. Inclusive é preciso começar a fomentar a discussão sobre como a monogamia talvez seja uma justificativa para manter uma instituição ainda mais falida, diga-se de passagem, que é o casamento. Pode ter certeza que muita gente se questiona até que ponto precisamos ser monogâmicos, mas nem todo mundo está preparado para isso.

Não é porque você é o grande lindão da sexualidade bem resolvida que pode ficar aí apontando o dedo na cara dos outros ao dizer que monogamia estraga a vida das pessoas ou que os monogâmicos são uns coitados. Na verdade, o coitado é você, que precisa falar para todo mundo como seu relacionamento aberto é tão evoluído, mas OK. A monogamia é bastante hipócrita em vários aspectos. Essa ilusão que ela cria que nós devemos dedicar nossa fidelidade exclusivamente a uma só pessoa. Que nós devemos ser que nem os pinguins que passam metade da vida procurando o seu par para passar a outra metade com o companheiro de reprodução. Baita saco isso, vocês têm razão.

Monogamia é uma coisa que somos educados a acreditar e defender com unhas e dentes. Crescer, conhecer seu par, casar, ter filhos e morrer. É uma construção histórica longa e que ainda rende debate acalorado entre antropólogos, sociólogos, historiadores, biólogos e psicólogos. Acredito que esteja mais que na hora de começar a questionar se realmente devemos ser tão apegados a isso, mas tudo isso, quando vira um papo dito moderno, vira uma chuva de chorume debaixo da qual fulano se acha o maioral porque namora mais de uma pessoa. E sim, não é correto apontar o dedo para quem optou em ter um relacionamento aberto. Chamar essa opção de "putaria" é bem aquele tipo de coisa ridícula que faz as pessoas repelirem relacionamentos tradicionais justamente porque tem um monte de gente hipócrita batendo no peito que seu relacionamento monogâmico é perfeito, mas trata mal e trai a companheira a rodo.

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Já vi várias críticas sobre as relações livres que podem ser um campo minado para as mulheres, assim como a monogamia também pode. Não é por causa do poliamor em si, mas é complicado a gente querer revolucionar a monogamia quando a mulher ainda é o elo mais fraco de vários relacionamentos, poli ou mono. Ser um homem permite que você seja mais livre em suas relações sexuais, inclusive é muito raro você ser um homem solteiro e com vida sexual ativa e ser chamado de promíscuo. Já as mulheres ainda precisam se preocupar com sua reputação e suas inseguranças para transar.

Se nas sociedades ocidentais a mulher deixou de ser "propriedade" da família ou do marido apenas no último século, isso não significa que ela tenha conquistado a liberdade sexual plena. A possibilidade de se ter relacionamentos poliamorosos é um resultado desse processo de emancipação, e não a causa dele, como alguns gostariam de afirmar. Na verdade o machismo é tão entranhado no tecido social que não é incomum se encontrar por aí relacionamentos ditos "poliamorosos" onde a mulher encontra bem menos liberdade sexual que suas contrapartes masculinas. Ao invés de sair por aí prescrevendo a panaceia do poliamor para todos os problemas de relacionamento, os ativistas do poli ganhariam mais em olhar e desvendar processos para se criar mais transparência e mais equidade nas próprias relações não-monogâmicas.

Já os monogâmicos não deveriam nem pensar em abrir os olhos de manhã sem refletirem sobre a natureza complexa da afetividade e da sexualidade humana – e isso vai muito além da mera "exclusividade" ferrenha que precisa ser escancarada como fachada do relacionamento a dois "bem resolvido". Não é só sobre a superação do ciúmes ou sobre assumir seus desejos, mas também sobre o processo inteiro das dinâmicas relacionais, das tarefas domésticas às diferenças de renda entre os gêneros.

Sem contar que esse é um debate muitas vezes extremamente heteronormativo. É interessante notar inclusive que os estereótipos de gênero invadem até as relações homoafetivas, com clichês ridículos como aquele que diz que lésbicas juntam as escovas de dentes e os gatos depois de dois meses de namoro, ou aquele que afirma com que homens gays são mais promíscuos "por natureza". Antes de nos aferrarmos às certezas que temos sobre os nossos relacionamentos, precisamos admitir que ainda estamos num processo de reconstrução ampla do tecido social, e que não é com ouvidos moucos e insensibilidade a respeito da experiência alheia que vamos conseguir um mundo mais livre para todos.

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