A Maior Ocupação do Estado de São Paulo Pode Sumir do Mapa
Foto: Lucas Jacinto

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A Maior Ocupação do Estado de São Paulo Pode Sumir do Mapa

Organizados desde 2012, a Vila Soma reúne mais de 10.000 pessoas, formando a maior ocupação urbana do Estado de São Paulo, em Sumaré, município a 115 km da capital.

A Vila Soma abriga hoje mais de 10 mil pessoas. São 2.700 famílias organizadas em 36 ruas formando a maior ocupação urbana do Estado de São Paulo, em Sumaré, município a 115 km da capital. Unidos com o lema "Vila Soma, o formigueiro em ação" desde 2012, eles derrubaram na justiça uma reintegração de posse em 2013, mas agora se aproximam mais uma vez de um momento de resistência.

Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

O clima de tensão pairou dentro das casas da Vila Soma quando, em 23 de outubro, o juiz da 1ª Vara Cível de Sumaré, Gilberto Vasconcelos Pereira Neto, determinou a reintegração de posse imediata da área, atitude preconizada pela emissão de um prazo de saída das famílias, programado para 11 de dezembro. "Estamos com a faca no pescoço. Não queremos derramamento de sangue nem violência. Não podemos presenciar um fim trágico como o do Pinheirinho", lamenta Alexandre Mandi, advogado do grupo, lembrando o caso de desocupação realizado em São José dos Campos, em janeiro de 2012.

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"Em 2013, a ação partiu da massa falida da empresa Soma Equipamentos Industriais, que, há 20 anos, havia encerrado as atividades na área." Mandi explica que o processo pesou no bolso dos empresários. De acordo com a lei, o custo de realocação dos ocupantes – carreto para móveis e fretamento de ônibus — fica por conta do reclamante. "Naquela época, o valor era de R$ 500 mil e eles não continuaram com a ação por não aceitarem pagar."

Alexandre Mandi. Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

Agora, o impasse é mais complexo. "Aproximadamente, a massa falida deve cerca de R$ 40 milhões para o Governo Federal. Para o Estado de São Paulo, a empresa deve R$ 20 milhões, e a dívida com a prefeitura de Sumaré chega a R$ 10 milhões." Semelhante ao caso do Pinheirinho, o governo ainda tenta reaver essas dívidas. "Em vez de continuar cobrando a empresa, o próprio Ministério Público acionou a justiça contra a Vila Soma com a denúncia de que os moradores estão lesando o direito urbanístico, fazendo mau uso do solo. Isso não faz o menor sentido", contesta o advogado.

"Estamos descrentes desse último veredicto. O direito à propriedade privada é assegurado pela constituição, ao passo que o direito à moradia digna também", completa. No entanto, quando a propriedade não cumpre a função social, a reutilização, ainda que de forma irregular, acaba acontecendo. "Antes das primeiras 50 famílias consolidarem oficialmente uma ocupação, o [total de] 1 milhão de metros quadrados do Soma era conhecido como depósito de cadáveres, de lixo e reduto de usuários de drogas."

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Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

Willian Souza, estudante de Direito, é do comitê de moradias de Sumaré e atua junto a liderança da Vila Soma desde 2012, quando viu a ocupação nos noticiários da cidade. "Aquilo me chamou a atenção. Era só o começo e eles estavam todos desorientados. Quando cheguei aqui, eles me perguntavam coisas que iam muito além do meu domínio na época, mas eu tentava ajudar com o que podia." Foi então que ele se envolveu com os moradores. "A partir disso, prometi para mim mesmo que a vida deles seria a minha também, e estamos aqui, cuidando uns dos outros", conta.

Willian Souza. Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

"Mexeu com uma formiga, atiçou o formigueiro todo", ressalta. "Já faz mais de três anos que essas pessoas vivem sem nenhum tipo de auxílio do poder público. Não há esgoto, água encanada nem lixeiro." Ônibus urbano é só da porteira pra fora — alguns caminham quase 2 quilômetros para chegar ao ponto. "A única representação do Estado aqui dentro é a Polícia Militar", aponta Souza. "O Soma, que é fruto do déficit de moradia na região, também sofre pela falta de escolas. Cerca de 700 crianças não estão matriculadas por não haver vagas em Sumaré."

Em contrapartida, o que eles conseguiram construir de forma coletiva impressiona. "Temos uma biblioteca em constante atualização, uma sala de reforço escolar e escolinha de futebol para as crianças. Nos organizamos também para montar um balcão de coordenação, onde realizamos cadastros, arquivamos dados, ouvimos os moradores e tentamos solucionar todos os problemas", conclui o militante.

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Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

O saneamento básico é feito também por eles, como explica o mineiro Ricardo Mendes Tomaz, que mora em Sumaré há 10 anos e está na ocupação desde o início. "Nós mesmos pagamos um caminhão-pipa para abastecer as caixas d'água. Alguns moradores conseguem construir poços, mas a água não é de qualidade. Todas as casas possuem fossa ou partilham com vizinhos", explica. "Energia elétrica é 'gato'."

Mendes, que é mais conhecido na Vila Soma como Professor – por lecionar matemática e química como docente contratado na rede pública de ensino do Estado de São Paulo e como voluntário na comunidade –, revela que, apesar das dificuldades, vários serviços são oferecidos dentro da ocupação. "Ninguém precisa ir até o centro para cortar cabelo, fazer compras no supermercado, no varejão ou na padaria." O Professor conta que alguns comerciantes contratam por salário fixo, empregando uma parcela dos próprios moradores. "Temos moradores empreendedores aqui."

Professor.Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

Além da infraestrutura, Mendes recorda que a Vila Soma está firme desde o início por conta da organização democrática vigente. "Em cada rua, temos um líder. Eu sou o líder da minha. Sou responsável por atender as demandas da vizinhança e levar para a coordenação. Também devemos repassar as decisões do coletivo para a população."

Por meio de assembleias, são votados os líderes de rua e o líder geral, como também os novos rumos da ocupação. "Aqui, todo mundo tem voz, e damos espaço para aqueles que querem se aproximar mais ativamente", frisa.

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Como o principal mecanismo a fim de chamar a atenção do município para a causa da ocupação é a passeata - que chega a levar, na maioria das vezes, mais de um terço dos moradores do Soma para as ruas -, uma cultura de orgulho e de fraternidade emergiu da própria população. "Em dia de manifestação, eu acordo cedo e lavo o rosto, mesmo cansado da noite anterior. Vou pra rua e encontro meus vizinhos, meus amigos, irmãos de resistência", conta Alan Willians, mais conhecido como MC #A.

Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

O funkeiro, que também trabalha como cabeleireiro, além de fazer um bico e outro, vive na Vila Soma desde 2012 e cria por conta própria seus três filhos. "Comecei a cantar funk com 12 anos, no Guarujá. Um dia, bateu um vento forte, e uma frequência de rádio carioca chegou no meu radinho. Tava rolando um Cidinho e Doca. Foi aí que eu comecei a escrever meus funks."

MC #A está sendo reconhecido hoje por uma música que se tornou o hino da ocupação, cantado em coro durante os manifestos dos moradores. "A 'Pássaro Livre' é uma forma de levar o Soma pro mundo. Já cantei funk de tudo, mas, agora, o que liga é o funk consciente, e minha inspiração é o lugar onde eu vivo", explica. A música já ganhou um clipe, filmado dentro da ocupação com dois celulares e uma câmera.

É nesse tom que Willians se posiciona diante da iminente reintegração de posse que pode acontecer semanas antes do Natal. "É aqui que eu quero ficar. Não queremos nada de graça, mas acontece que as casas populares demoram muito pra sair. Se o governo quiser regularizar nossa situação, aceitamos pagar um valor justo para a nossa condição".

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Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

O MC acredita que a Vila Soma incomode porque está localizado em uma área próxima ao centro. "Essa área aqui é muito privilegiada, não é lugar para pobre. Estamos quase no meio da cidade." De acordo com A, a ocupação é uma ferida para a elite. "Se tiver de sair, vou sair. Mas vou ocupar outro lugar, e depois outro, até conseguir uma moradia digna", avisa.

"Talvez eu sinta um impacto menor nessa desocupação, porque tenho uma profissão (cabeleireiro), mas penso nas outras famílias." Ao contrário de Alan Willians, que mora em casa de alvenaria, tem gente que vive no Soma dentro de barracos com apenas um colchão, um fogão e umas latas, onde protegem a comida. "O que será que essas pessoas terão pra levar daqui e usar como proteção no mundão?", indaga o MC.

Dona Neuza. Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

Foi em um desses barracos que Neuza Candido de Macedo passou a morar quando se mudou para a Vila Soma com sua filha adolescente. "No começo, era pequenininho, só tinha um banheiro e um espaço para cama e fogão", lembra. Hoje, seu barraco possui três cômodos, uma garagem e até um jardim charmoso.

"Eu morava de favor com familiares. Quando soube da ocupação, eu pedi uma última ajuda." Neuza contou com um de seus irmãos que, junto dela, por um mês, vagou por Sumaré em busca de portas e tábuas de guarda-roupas em lixos e caixas de entulhos. "Quando juntei o que precisava, comecei a montar. Fiz tudo com meus próprios braços", diz a moradora, orgulhosa. "Fui eu quem martelou todos os pregos que sustentam essa casa."

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Levando em consideração que, em 2014, 2.818 casas populares foram sorteadas para famílias de baixa renda em Sumaré — em uma tentativa de solucionar uma pequena fatia do problema habitacional do município — e nenhum morador do Vila Soma foi contemplado, dona Neuza não nega a hipótese de um futuro sombrio para ela e seus vizinhos. "Eu confesso que, nos últimos dias, a preocupação está na minha cabeça. Penso nas crianças, idosos."

Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

A moradora conta que muita gente na ocupação está confiante de que a justiça prevalecerá. "A gente fica nesse vai e não vai." Assim como a maioria dos moradores, ela não terá para onde ir. "Se acontecer mesmo, eu terei de abandonar novamente minha vida e ir para a casa do meu irmão. Tudo o que construí aqui, e até nossas coisas, terão de ficar porque lá não cabe", revela.

A ideia de ter de ficar na rua é assombrosa para eles. Não é por menos que um vizinho desabafou com Neuza: "Ele falou que vai se enforcar num pontilhão lá no centro. Disse que não vai ter onde pôr os filhos, que não suportaria essa vida".

Sobre prováveis ações truculentas da PM, ela se mostra determinada a proteger a todos. "Eu serei a última e, ainda que derrubem todas as casas, vou esperar chegarem na minha pra eu perguntar 'Eu tenho mesmo de sair?'."

Se já não bastassem as dificuldades dentro da ocupação, os moradores enfrentem muitas desavenças e desaforos no centro da cidade – consequência da escolha de morar na Vila Soma. Um caso de preconceito que ficou conhecido a partir de uma matéria da Carta Capital é o da moradora Maria de Fátima da Conceição Santos.

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Maria de Fátima. Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

Trabalhando há cinco meses como doméstica em um apartamento, ela declara que foi demitida porque a patroa era amiga da prefeita de Sumaré, Cristina Carrara, do PSDB. "Quando ela me pediu pra confirmar o bairro onde morava, não pensou duas vezes." De acordo com a mulher, a família da prefeita não podia saber que alguém que mora na Vila Soma trabalhava em sua casa.

A perseguição não parou aí. "Perdi meu 'Uninho' na mão da polícia." Para fazer um dinheiro, Fátima percorria toda a cidade recolhendo recicláveis, porém, um dia, um PM embaçou. "Ele disse que me reconhecia das manifestações." O carro lotado de cacarecos foi a brecha. "Eu disse pra ele olhar, ver se tinha algo ilícito no meu carro, mas avisei que não ia jogar fora o que recolhi." Assim, o guincho levou o carro dela embora, com tudo dentro.

"Como podem dizer que a lei é feita pra nos favorecer, pra nos proteger?" Com um carro no pátio, Fatima descolou um bem velho, que já quebrou. Sem transporte, toda a logística para levar 8 dos seus 10 filhos para a escola foi comprometida. Por serem muito pequenos, nem o ônibus escolar que para na entrada da ocupação pode levá-los.

Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

"Agora mesmo, faz 20 dias que eles não vão pra aula. Aí vem assistente social, conselho tutelar: eles falam como se eu não os quisesse estudando. Se querem ajudar, bota um ônibus aqui dentro. Paga uma van pra levar pra escola essa criançada que mora aqui", questiona.

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Vivendo no momento em uma casa de alvenaria – doada pela coordenação do Soma depois que a chuva destruiu o barraco onde ela morava na ocupação – com oito crianças dentro, ela projeta seus planos, mesmo com uma rotina extremamente delicada. "Não deixo faltar comida pra eles. Às vezes, tomo um café da manhã e fico só com isso o dia todo. Junto garrafa pet, e aí dá pra comprar o leite", conta.

Fátima não desanima. "Eu queria que, antes de ele ser juiz, ele fosse humano. Com essa decisão, eu não acho que ele seja", afirmou. "Quantas pessoas ricas são presas por corrupção? Aqui pode ter gente que fez coisas fora da lei, mas bandido tem em todo lugar. Não dá para julgar todo pobre assim. Uma reintegração de posse aqui seria um ato inescrupuloso", encerra.

Mais fotos da Vila Soma aqui:

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Foto: Lucas Jacinto/SUP Mídia Livre

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