Uma história oral de 'Trainspotting' 20 anos depois

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Uma história oral de 'Trainspotting' 20 anos depois

O escritor Irvine Welsh e os atores Ewan McGregor e Kelly MacDonald falam sobre o livro, as filmagens, as repercussões e a sequência desse clássico do cinema.

Robert Carlyle, Jonny Lee Miller, Ewan McGregor e Ewen Bremmer em 'Trainspotting'.

Eu era muito novo para assistir Trainspotting quando o filme saiu. Isso não impediu que aquele universo de euforia e decadência penetrasse na bolha do meu mundo pré-adolescente: foi o primeiro filme que eu e meus amigos discutimos na escola, foi o que mentíamos ter visto até conseguimos assistir de verdade e foi, também, aquele que queríamos comprar os cartazes com os nossos vale-presentes de Natal.

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No final dos anos 90, antes da internet, Trainspotting nos forneceu várias primeiras vezes. Era um portal para o mundo adulto que nunca tínhamos visto antes na vida ou nas telas. Tarantino tinha nos dado um vislumbre do sexo e das drogas, mas sob uma pesada demão de estilo. Trainspotting acrescentou o peso da realidade àquele mundo. Assistir a isso como um moleque de 12 anos nos fazia sentir mais adultos, mais experientes. Pelo menos foi o que senti.

Semana passada foi o 20º aniversário do filme e, para comemorar, conversei com três dos principais envolvidos: Ewan McGregor, que interpretava o Renton, Kelly MacDonald, que fazia a Diane, e o autor do livro original, Irvine Welsh, cujo livro The Blade Artist – que sai em abril – continua a história do Begbie de Trainspotting.

Kelly MacDonald e Ewan McGregor em 'Trainspotting'.

O LIVRO

Kelly MacDonald: Estava no meu radar, mas eu não tinha lido. Comprei o livro depois do meu primeiro teste pro elenco, então eu não tinha muito conhecimento quando entrei.

Ewan MacGregor: Danny Boyle me deu o roteiro para ler, e eu nunca tinha lido nada assim. Quer dizer, era o melhor papel que li na vida. Eu sabia do livro e de toda a crítica positiva que tinha recebido, mas ainda não tinha lido. Fiquei espantado e minha missão se tornou convencer o Danny de que eu era o cara certo para o trabalho. Aí, quando li o livro, adorei. Achei incrivelmente emocionante. Irvine Welsh é um escritor incrível; ele pode te levar das profundezas da imundície e do desespero humano até momentos incrivelmente tocantes num piscar de olhos. Sendo escocês e esse sendo um romance intrinsecamente escocês, me senti muito ligado a isso.

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DO LIVRO AO FILME

Irvine Welsh: Havia muito interesse, todo mundo parecia querer fazer um filme de Trainspotting. Inicialmente, vendi os direitos para a pessoa errada – na época eu era meio que um cara ingênuo que tinha tropeçado nesse vórtex de pessoas interessadas no que eu estava fazendo. Aí recebi uma cópia de Cova Rasa [o filme de estreia] de Danny, mas naquele ponto eu já tinha vendido os direitos para outro produtor. Aí pensei: "Filho da puta, fodi com essa oportunidade de vez" porque o tipo de energia do filme dele com os meus personagens seria uma combinação perfeita. Tive essa sensação ruim de que tinha estragado tudo, mas felizmente conseguímos consertar a situação.

Para mim, se alguém faz um filme baseado no seu livro, é uma situação em que todo mundo ganha. Se o filme é ruim, você se desassocia dele e diz "Eles estragaram tudo". É brilhante. Alguns escritores acham que seus livros estão sendo profanados, mas isso não tem nada a ver – seu livro segue intocado. Ninguém vai sair rasgando páginas e mudando as palavras; o que eles fazem é transferir sua narrativa para um meio diferente. Me perguntaram se eu queria me envolver [como escritor], mas acho que o mais importante para mim era não foder com a energia desses dois caras [Danny Boyle e Andrew Macdonald, o produtor]. Vi o roteiro de Cova Rasa de John Hodges e pensei: "Não tenho nada para ensinar a esses caras". Eu precisava manter distância e deixar as pessoas fazerem o trabalho delas.

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TESTE DE ELENCO

KM: Fiquei sabendo do filme por um panfletinho amarelo; eu trabalhava num restaurante em Glasgow, na Escócia, e me entregaram um desses lá. Eu estava começando a imaginar o que ia fazer da vida e isso despertou meu interesse, já que eu estava pensando secretamente em fazer teatro. Lembro de entrar e fazer contato visual com o Danny, e isso pareceu importante. Não sei por que, pensando agora, mas senti alguma coisa.

Eu era muito nova quando consegui o papel. Eu tinha acabado de fazer 19 e não sabia nada. Eu variava entre a empolgação de estar andando com aqueles caras – que eram tão legais e carismáticos, cheios de história – e ter crises nervosas e me esconder no banheiro.

A CENA MAIS MEMORÁVEL QUE FILMEI

KM: A cena no clube, saindo dele. Acho que era meu primeiro dia de filmagem. A filmagem levou um dia e uma noite. Todos os garotos estavam bebendo, então eu também comecei a beber. Foi a Shirley Henderson [que interpreta a Gail] que me disse para não fazer isso. Eu estava no pub há horas, com várias pessoas que não estavam filmando naquele dia, e foi ela que me disse: "Acho que é melhor você parar de beber". Ela estava totalmente certa. Acho que eu estava de ressaca quando filmei a cena. Eu não sabia como ficar parada na marca, andava pra todo lado, eu não sabia como tudo funcionava. A cena do sexo foi muito tensa, óbvio. Eu não tinha muita experiência sexual naquele ponto, então foi meio embaraçoso. Eu era tão inocente que esse foi o dia em que convidei minha mãe e meu irmão para visitar o set.

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EM: São muitas. As cenas eram muito bem escritas e os outros atores eram ótimos. Lembro das sequências embaixo d'água. Adorei fazer isso. Era tudo muito calmo e silencioso, e você trabalha com a câmera de um jeito muito diferente. Adoro aquela sequência – adoro a ideia e a serenidade dela. Adoro todas as cenas com a Kelly. Adoro a cena da balada, quando eles saem de lá e [o Renton] tenta ficar com ela, eles pegam um táxi e tudo mais. Beijar a Kelly MacDonald naquele táxi foi divertido – gostei muito de trabalhar com ela. A Kelly não era atriz ainda naquela época; foi a primeira coisa que ela fez, ela simplesmente apareceu e arrasou em tudo. A cena da abstinência foi incrível também, com a sala se estendendo e Jimmy Cosmo interpretando meu pai. A cena do parque com Jonny Lee Miller, atirando no cachorro – foi muito engraçado. Mas não atiramos no cachorro de verdade, claro.

IW: A cena quando toca "Perfect Day" [de Lou Reed] e ele afunda no chão – achei um jeito incrível de mostrar a overdose, o jeito como você chega perto da morte. A energia era implacável na segunda metade dessa cena e isso se mostra em cada pedaço do set. Isso me chocou, já que eu vi como as pessoas morrem por drogas e não é nem de perto tão dramático. É mais como cair no sono lentamente. A pessoa pode gostar da sensação de estar sendo levada e, às vezes, ela consegue sair dessa e às vezes não. Essa cena resume tanto o horror como o apelo da heroína para mim. É uma carícia mortal. Achei essa cena fantástica. Há poucos diretores visuais melhores que o Danny Boyle; ele sabe como contar uma história em imagens, e ele sabe como dizer algo visualmente com um pedaço do cenário.

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Jonny Lee Miller, Ewan McGregor, Kevin McKidd e Ewen Bremmer no set.

O FILME PRONTO

IW: Eles alugaram uma sala de exibição no Soho, e eu levei algumas pessoas que tinham gostado muito do livro e que seriam bem críticas se o filme não fosse bom. Levei o Bobby Gillespie e o Andrew Innes do Primal Scream; Jeff Barrett da Heavenly Records; basicamente pessoas que eram amigos e que curtiram muito o livro. Pessoas que iam me dizer se isso tivesse ficado uma bosta e não capturasse o espírito do livro. Eu estava prestando mais atenção neles do que na tela, para ser honesto, e no começo eles fizeram alguns comentários como "Esse é pra ser o Begbie? Esse cara é o Sick Boy?" Aí eles pararam. Assim que os personagens se incorporaram na cabeça deles e tomaram conta, eles ficaram paralisados. Eles estavam sem fala no final do filme. Quando eles finalmente falaram no bar depois, foi incrível – eles acharam brilhante pra caralho. Eu sabia que o negócio ia ser gigantesco.

EM: Fiquei sem fala. Fiquei estupefato, sério. Lembro de sair pra rua depois disso e não conseguir pensar direito. Era tudo que eu esperava e cem vezes mais.

KM: O que lembro mais claramente da primeira vez que assisti ao filme foi a reação do Bobby Carlyle porque eu estava sentada do lado dele. Ele quase se encolhia no chão de vergonha. Toda vez que ele aparecia na tela, ele afundava um pouco mais na cadeira, o que achei interessante. Mas eu também estava me sentindo assim. Acho que é algo bem comum. Eu não gostava de me assistir. Ainda não gosto.

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A MÚSICA

IW: Onde acho que ajudei um pouco no filme foi na trilha sonora. Porque eu conhecia vários músicos pessoalmente e pude entrar em contato com eles direto. Assim [os produtores] puderam contornar o processo de ter que pagar muita grana – que eles não tinham – para que a música fosse liberada. Os artistas ficaram tão enamorados com o filme e queriam tanto se envolver que chegaram para suas gravadoras e disseram: "Pode deixar eles usarem [essa música]". Isso nos ajudou a assegurar os direitos a um custo baixo, às vezes sem custo nenhum. Nunca conseguiríamos essa trilha sonora de um jeito normal. Danny tinha trabalhado com a Leftfield em Cova Rasa e acho que ele conhecia o New Order de Manchester. A vibe disso se espalhou para os músicos também. Eles nos deram várias coisas que normalmente custariam uma fortuna.

Faço referência à maioria dos artistas no livro: Iggy, Lou Reed, Bowie e muita coisa house que eu estava ouvindo na época. Mas o que eu não conhecia era a coisa do Britpop. O Primal Scream e Damon Albarn eram amigos, e eu conhecia o Javis Cocker, mas não estava realmente envolvido. Não percebi como isso poderia funcionar, mas acho que foi o Danny quem decidiu que precisávamos ter algo contemporâneo, o que foi um toque de mestre. O Britpop foi meio que o último suspiro da cultura jovem britânica e ajudou o filme a ser o último da cultura jovem britânica.

Begbie jogando seu copo na multidão.

REAÇÕES AO FILME E AS ACUSAÇÕES DE GLAMORIZAR AS DROGAS

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IW: Bob Dole – candidato a presidente dos EUA – criticou o filme, mas nunca assistiu. O cinema glamoriza inerentemente tudo que faz: há atores, há uma estilização aqui. Uma das coisas que mais gostei na visão de Danny é que isso não é um filme de realismo social pomposo dos anos 70, que pressionaria a burguesia e os legisladores a investirem nas cidades pequenas e toda essa merda. O barco já tinha zarpado e isso nunca ia acontecer. Se você não pode fazer os políticos gastarem recursos, você só consegue fazer os ricos se sentirem bem por não serem pobres. Eu queria capturar a excitação e o entusiasmo de ser jovem num ambiente potencialmente prejudicial, mas ainda com a ideia de que há todo tipo de possibilidade pela frente, mesmo que as circunstâncias atuais não sejam particularmente ideais. Foi o primeiro filme que disse: "As drogas podem ser divertidas, mas também perigosas". Acho que alguém tinha que fazer isso. "Diga não" não funciona; você precisa mostrar as duas coisas, os altos e os baixos. Você precisa mostrar por que as pessoas se envolvem com isso. Para mim, fica evidente por que as pessoas usam drogas.

KM: Voltei para a casa da minha mãe depois do filme por um tempo. Abri a porta um dia e tinha dois jornalistas do Daily Mail ou Daily Record na sala, conversando com a minha mãe, o que foi um pouco estranho. Dei uma entrevista rápida e mandei eles embora. Aí, uns dias depois, vi uma manchete no jornal sobre como uma das estrelas de Trainspotting tinha passado por um pesadelo com drogas. E eu pensei: "Jesus, quem será. Era eu porque eles me perguntaram se eu já tinha usado drogas, e eu era tão ingênua que respondi: "Sim, tomei um iogurte de haxixe uma vez e passei mal".

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Trailer de'Trainspotting 2'.

A SEQUÊNCIA

IW: John [Hodge] entregou um roteiro foda, totalmente fantástico. O texto é baseado em Porno [a sequência de Welsh para Trainspotting], mas também evolui a história. Tivemos que ir além porque os atores eram apenas dez anos mais velhos quando Porno saiu e, agora, eles estão 20 anos mais velhos. Isso tem que levar em conta a realidade. Conta a história de Edimburgo como ela é atualmente. O elemento principal da história é basicamente Renton, Begbie, Sick Boy e Spud juntos de novo. Mostra a histórias deles se envolvendo na indústria o vício de um jeito muito novo.

Acho que os cenários são fantásticos e há muitas oportunidades para os atores arrasarem, então estou bem empolgado. Sei que o Danny vai pensar numa visualização fantástica. Acho que vai ser excelente. O mais interessante vai ser ver como os garotos mais novos vão entender isso agora – isso não vai ser um filme jovem com Trainspotting foi. Isso pode ser como ver seu tio dançar num casamento. Espero que seja divertido e louco o suficiente. Isso tem o potencial para performances incendiárias dos atores.

EM: Vai ser incrível. O roteiro é lindíssimo – e precisava ser; acho que nenhum de nós iria se envolver em algo que não estivesse no mesmo nível do primeiro filme. Esse é o perigo de qualquer sequência, mas especialmente com esse filme e depois de tanto tempo.

KM: Estamos conversando. Li o roteiro. Não sei quanto posso falar sobre isso, pra ser honesta. Seria muito interessante trabalhar com as mesmas pessoas. Todo mundo mudou, mas agora sei como ficar na marca. Trainspotting foi um começo meio esquisito para mim e sou muito grata por isso. Agora faço esse trabalho que amo e não estou mais me escondendo tanto nos banheiros.

Agradecimento especial à VICE Canadá por ajudar nesta matéria.

@DanielDylanWray

Tradução: Marina Schnoor