Seria este o último Carnaval de rua de SP?

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Seria este o último Carnaval de rua de SP?

O que pensam organizadores de blocos e foliões sobre os últimos decretos do prefeito João Doria que colocam em xeque o futuro da folia na capital paulista.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

O fantasma do túmulo do samba ronda o Carnaval de rua em São Paulo. As medidas proibitivas e limitadoras impostas neste ano pelo recém-empossado prefeito João Doria (PSDB) colocam em risco o futuro da folia na capital paulista. Em debate entre organizadores de blocos e foliões está o uso do espaço público, a treta com moradores, o papel dos poderes municipal e estadual na organização do evento e outras questões que podem colocar em xeque a relevância que a festa ganhou nos últimos anos.

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A Prefeitura de São Paulo decidiu tirar a muvuca de lugares polêmicos, como algumas vias da badalada Vila Madalena, na zona oeste, e acabou com a festa na Praça Roosevelt, na região central. Além disso, delimitou horários de início e fim da festa e taxou blocos de outros estados que quisessem desfilar no pré-carnaval paulistano. E é aí que começa o rolo e as incertezas sobre o futuro do Carnaval de rua na capital.

Vila Madalena, Carnaval de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O decreto que estabelece as novas mudanças foi publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, no dia 7 de fevereiro. Desde a publicação, o secretário municipal da Cultura, André Sturm, fez poucas declarações sobre o assunto. A assessoria da pasta afirmou à VICE, na última quinta-feira (9), que o secretário não irá mais dar entrevistas até a coletiva de imprensa sobre o tema, que deve ocorrer no início da próxima semana. O prefeito João Doria também tem evitado se manifestar sobre as novas diretrizes do Carnaval.

Vila Madalena, carnaval de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Quem está com o pé atrás em relação às mudanças decretadas pelo poder municipal é Rosana Miranda, professora de projetos da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). A arquiteta e urbanista destaca o tom moralista das decisões da prefeitura e contesta o argumento de que as proibições de algumas vias tenham a ver apenas com o apelo feito pelos moradores. Miranda cita como exemplos os lugares vetados para a passagem de blocos ou dispersão dos mesmos, que, na opinião dela, têm condições de receber os foliões.

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"O carnaval pode e deve acontecer em qualquer lugar, basta o poder público organizar e garantir infraestrutura, segurança e limpeza." - Rosana Miranda, arquiteta e urbanista

"Urbanisticamente, avenidas que foram proibidas [para a passagem de blocos], como a Sumaré e a Brasil, são ideais para esses tipos de eventos. São largas, extensas e predominantemente comerciais. Parece que só por serem áreas nobres não podem receber uma festa popular. Em nome de uma ordem, com um espírito de não perturbação, cria-se uma atmosfera careta e antipática, que pode intimidar e afastar a população da rua. O carnaval pode e deve acontecer em qualquer lugar, basta o poder público organizar e garantir infraestrutura, segurança e limpeza."

Bloco Ilú Obá de Min na região da Barra Funda, Carnaval de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Uma das organizadoras do bloco feminino Ilú Obá de Min, Baby Amorim, também faz previsões nada animadoras sobre o futuro do Carnaval de rua na cidade. Para a produtora, as mudanças feitas pela prefeitura podem comprometer a festa, uma vez que não há legislação que garanta as manifestações populares.

"O evento pode ser transferido de lugar, pode haver uma proibição geral, porque tudo está na mão do prefeito. Vejo as proibições como uma forma de atender apenas a um grupo de pessoas. Na administração passada houve diálogo para resolver da melhor maneira o conflito entre moradores e organizadores de blocos. As proibições não são democráticas."

A foliã Mariana Martins, de 33 anos, acredita que é necessário ter alguém que organize o evento, considerando que o espaço público é um direito de todos. "Não há problema em ter limite de horário para não perturbar moradores e quem está passando pela rua ou desviar um trajeto. Isso são regras de convívio, que precisamos ter o tempo inteiro, porque a cidade é de todos. Talvez alguns blocos deixem de existir, mas o Carnaval de rua em São Paulo é muito antigo, os bloquinhos não vão acabar, porque são formas de resistência."

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A proporção e a força que a festa tomou nos últimos anos também têm sido usadas como fontes de esperança para a manutenção da folia, mesmo em meio às alterações que ela possa sofrer nos próximos anos.

Av. da Consolação, Carnaval de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Alberto Pereira Junior, um dos fundadores do bloco Domingo Ela Não Vai é um entusiasta do poder popular diante das adversidades que a festa pode enfrentar. "Existem blocos na cidade com mais de 70 anos, que resistiram a diferentes grupos políticos e à ditadura militar. O Carnaval é uma das manifestações culturais mais características do povo brasileiro. Não se inibe o que é natural de um povo. Novas regras e mudanças pontuais devem vir para ajudar a melhorar a folia, não como uma forma de controlá-la. O Carnaval de São Paulo não é mais a última alternativa. Os foliões não vão desanimar."

Há 12 anos curtindo adoidado a folia no asfalto, Juliana Matheus, de 35 anos, tem receio de que a graça da festa acabe e que o medo se torne uma sensação frequente, caso haja repressão policial. "Restringir, proibir, limitar, obrigar os carros a desligarem o som cedo é abandonar tudo que foi conquistado. E depois que o som acabar? Tenho receio de como será feita essa dispersão pela polícia. Quero ir para a rua com a minha família sem violência e com diálogo", pontua ela que também acha que a pegada "matinê" dos blocos pode afastar as pessoas das ruas, principalmente para turistas quem vem de fora da cidade.

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Região central de São Paulo, Carnaval de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O secretário André Sturm, por sua vez, afirmou à BBC Brasil haver uma "crise do conceito de cidadania", classificando o Carnaval como um exemplo. Em um trecho da conversa, Sturm diz: "Cidadania virou sinônimo de: 'eu tenho direito', quando cidadania é 'eu tenho dever'".

Em outro momento da entrevista concedida à BBC, Sturm fala sua opinião sobre o papel da administração municipal e faz ressalvas sobre a espontaneidade das manifestações: "A prefeitura é agente da maioria da população – precisa estabelecer normas para que a maioria fique satisfeita."

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A taxação dos blocos de outros estados em R$ 240 mil no pré-carnaval se tornou mais um obstáculo a ser superado nessa nova configuração do Carnaval paulistano. Sturm afirmou que o valor arrecadado será usado nas questões operacionais da festa. Mesmo com a justificativa, megablocos, como da cantora baiana Daniela Mercury, titubearam de início e outros não toparam. Preta Gil foi uma das artistas que desistiu do bloco na cidade após as novas exigênciasdo prefeito.

Mas o 7x1 para os blocos de fora de São Paulo não acaba por aí. O projeto de lei 279/16, de autoria do vereador Aurélio Nomura (PSDB), pode jogar mais areia nos olhos de quem faz o Carnaval. O projeto prevê uma espécie de privatização e formalização dos blocos.

Av. da Consolação, Carnaval de 2016. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Porém, a polêmica maior está na emenda proposta pelo vereador Milton Leite (DEM), que obriga que o Carnaval de rua seja organizado em "parceria com as entidades privadas que congregam as agremiações de Carnaval da cidade", tipo a Liga das Escolas de Samba de São Paulo. A ideia é que a grana gerada pela festa paulistana fique nos limites geográficos da capital, o que evitaria, na visão do parlamentar, que empresários de outros estados levassem embora os lucros da folia.

Essas medidas mostram que começa a surgir um conflito de interesses entre os envolvidos no Carnaval tradicional em relação ao destaque que a versão de rua tem ganhado anualmente. O ex-prefeito Fernando Haddad (PT) chegou a dizer que o Sambódromo teve menos retorno financeiro que a folia pelas ruas da capital no ano passado. Com o crescimento e fortalecimento dos blocos, as disputas políticas podem aumentar e ficar ainda mais acirradas nos próximos anos.

Com o decreto assinado às pressas neste ano, a atual gestão dá mais um sinal de restrição do uso coletivo do espaço público para manifestações populares ou culturais. Outro exemplo foi a proposta inicial do prefeito de levar a Virada Cultural para lugares fechados, como o Autódromo de Interlagos. O perfil da gestão do novo prefeito tem trazido a especialistas, produtores de blocos e foliões a dúvida sobre o formato da festa nos próximos anos, que corre o risco de passar a ter uma pegada mais indoor. E, se prepare, tudo indica que não vai adiantar nem o Pierro chorar.

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