A história de resistência de um quilombo no RJ

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A história de resistência de um quilombo no RJ

Comunidade situada em um dos bairros mais ricos da zona sul da cidade convive com processos judiciais e a animosidade de vizinhos.

De um lado, a vista para o Cristo Redentor; do outro, a convivência com a intolerância. Filhos e netos de pessoas escravizadas resistem como podem no quilombo do Sacopã, um espaço localizado próximo à lagoa Rodrigo de Freitas, na zona Sul do Rio, numa das regiões mais valorizadas da cidade.

E não é de hoje que a comunidade relata ameaças feitas pelos vizinhos. "Após conversar com um morador influente daqui, o clima ficou muito pesado. A pressão foi muito grande. Minha mãe teve que arrumar as malas correndo, com medo de ser despejada. Acabou não aguentando e teve um infarto", conta José Cláudio Torres, de 54 anos.

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José Cláudio, filho de Tia Neném. Foto: Bruna Prado/VICE

Cláudio é filho de Tia Neném, uma das principais lideranças locais, morta em 2006. Nem mesmo após a perda de uma das matriarcas do grupo, as 30 pessoas que vivem no Sacopã tiveram paz para retomar inteiramente as suas tradições.

Os moradores do quilombo Sacopã estão proibidos, desde 2015, de realizar as suas atividades culturais, como rodas de samba e jongo. Embora o quilombo seja certificado pela Fundação Cultural Palmares (FCP) — órgão do Governo Federal responsável por reconhecer e preservar os quilombolas do país —, ações judiciais têm restringido a atuação do grupo que concentrava esforços na preservação dos hábitos dos descendentes de escravos.

A família que vive no local relata que seus ancestrais chegaram à região há mais de cem anos, quando coabitavam o espaço com tribos indígenas. Com o crescimento da zona sul e do bairro carioca, o assédio do mercado imobiliário aumentou progressivamente. Foi assim que a vida rural dos quilombolas começou a ser ameaçada. Outras comunidades próximas, como a favela da Catacumba e a Ilha das Dragas, acabaram sofrendo remoções ao longo das décadas de 1960 e 1970.

Ainda que prevista na Constituição de 1988, a garantia de propriedade aos remanescentes dos quilombos não veio em caráter definitivo para os moradores do Sacopã. Mas é com base no artigo da Constituição que a família luta pela preservação do espaço. A partir daí que teve início a briga judicial no local, atualmente monitorada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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Maria Eduarda, representante da mais nova geração a viver no Sacopã. Foto: Bruna Prado/VICE

Na Justiça, os quilombolas se defendem, desde 1989, de acusações de fazer muito barulho e desrespeitar regras ambientais. "Os conflitos acontecem porque o direito ambiental é pensado de maneira isolada, sem levar em conta o ser humano. Essa ocupação é mais harmoniosa com a natureza do que a construção de edifícios, por exemplo", defende Lívia Casseres, defensora pública e coordenadora do Núcleo de Combate ao Racismo (Nucora). Até hoje, resistem plantações de hortas, árvores frutíferas e uma rotina quase bucólica no terreno.

Os moradores do quilombo Sacopã estão proibidos, desde 2015, de realizar as suas atividades culturais, como rodas de samba e jongo.

Para o professor Luiz Felipe Cunha, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), o que acontece no local é preconceito. "Os pobres desvalorizam o preço do solo urbano. É uma dificuldade ter que conviver com o diferente. Leis até podem ser criadas, mas é uma questão mais subjetiva, ideológica. No entanto, a política institucional não pode se abster do assunto. É preciso coibir essa forma de preconceito", pontua ele.

Apesar do veto em relação às atividades do quilombo, definido em 2015, a defensoria decidiu pública recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e, se necessário, ao Supremo Tribunal Federal (STF), para alcançar a revogação e tornar possível o retorno das atividades, que também incluíam palestras e oficinas sobre escravidão e negritude. "Em um dos casos houve a proibição de um aniversário. É impossível que nos condomínios não aconteçam festas desse tipo. Isso tudo serve de fachada para um desejo profundo de tirar o quilombo dali", acredita a coordenadora do Nucora.

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O Sacopã também responde na Justiça sobre supostas construções irregulares na área. A Secretaria Municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação, responsável por acompanhar esse tipo de desvio, passa por reformulações após a posse do novo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, em janeiro deste ano. Por isso, ainda não foi definida nenhuma diretriz do novo comando da pasta para políticas públicas para ocupações desse gênero.

Albertina Martins Pinto, 74, a cozinheira responsável pelas feijoadas. Foto: Bruna Prado/VICE

"Vizinhos relatam que nos fins de semana o som era alto, isso atrapalhava o sossego", afirma Rafael Szabo, presidente da Associação de Moradores da Fonte da Saudade (Amofonte). Apesar de garantir que não tem nada contra a questão quilombola, Szabo manifesta preocupação por conta dos perigos de desmatamento e pelo histórico de acidentes na região, que é muito íngreme. "A lei é para todo mundo", lembra. O presidente da associação ressalta ainda que ação contra o quilombo foi movida por condomínios, e não pela Amofonte.

Na década de 1980, as rodas de samba do Sacopã ficaram famosas a ponto de atrair para o local músicos como Beth Carvalho e João Nogueira, além de intelectuais e jogadores de futebol. As vendas em dia de samba e feijoada ajudavam as finanças e possibilitavam que todos os que moram no Sacopã vivessem somente do setor cultural. "As pessoas vinham almoçar aqui também nos dias de semana. Com a proibição, o movimento teve que parar", lamenta a cozinheira Albertina Martins Pinto, de 74 anos, responsável por fazer a comida no quilombo.

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De acordo com o professor Luiz Felipe Cunha, ao longo das últimas décadas, a cidade foi afetada pelo fenômeno da gentrificação. "O avanço de setores do mercado sobre os territórios não é uma exclusividade do Rio. É uma característica do sistema econômico e acontece ao redor do planeta. Não é que os cariocas sejam mais egoístas ou virulentos", aponta.

Luiz Sacopã, 75, segura a foto da mãe Eva Mauela da Cruz, fundadora do quilombo. Foto: Bruna Prado/VICE

Ex-presidente Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Luiz Sacopã, 75, fala como sente o preconceito. "Convivi nesse bairro desde que nasci. Cresci com pessoas que ainda vivem aqui. Sei detectar o preconceito. Tem gente que me diz: 'Você tem um nariz fino, nem parece negro'. Acham que estão me agradando. Mas eu sou negro. Tenho orgulho disso". Segundo Luiz, cerca de 70% dos quilombos fluminenses enfrentam questões judiciais.

Outros processos para reconhecimento de quilombos seguem em tramitação. Em janeiro, a Fundação Cultural Palmares publicou portarias no Diário Oficial da União (DOU) certificando 29 territórios no país. O registro, que é emitido apenas pela FCP, é só o primeiro passo a ser dado até a regularização completa. Apenas com esse documento é possível dar entrada na titulação definitiva.

"A demora do Executivo coloca essas populações em uma situação de vulnerabilidade muito grande. Ficam sujeitas a abordagens de grileiros, moradores vizinhos e proprietários privados da terra. Os trâmites ficam concentrados no Governo Federal e, na prática, não há a garantia da terra. É reconhecido até pela Organização das Nações Unidas (ONU) que os negros no Brasil convivem com uma desigualdade permanente", coloca Lívia Casseres.

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A assessoria de imprensa da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), do Ministério dos Direitos Humanos, informou que não havia sido registrada nenhuma manifestação a respeito das dificuldades enfrentadas pelas pessoas que vivem no Sacopã.

Um condomínio de prédios foi erguido bem próximo ao terreno do quilombo. Foto: Bruna Prado/VICE

O Ministério da Cultura (MinC), ao qual a FCP está subordinada, informou também que não havia sido notificado sobre os problemas na comunidade carioca. Em nota, disse que a Palmares vai orientar as lideranças comunitárias a formalizar a denúncia para que possa "requerer a remessa dos autos para esfera federal e promover a defesa dos interesses" do grupo.

O MinC declarou ainda que, consciente da importância de levar informações sobre os direitos e políticas públicas que estão sendo implementadas nessas situações, já estava preparando uma cartilha para orientar sobre como agir em casos como o supracitado. O texto reforça que, "por diversos anos, a fundação tem publicado editais, premiações, parcerias com universidades, demais órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos com o objetivo de preservar, promover e fomentar a cultura afro-brasileira". Enquanto isso, o Sacopã resiste.

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