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Politică

Por que o racismo se naturalizou nas manchetes midiáticas brasileiras?

O recorte de classe e cor definem o tratamento de suspeitos nos veículos de notícias.
Imagem: meme. 

“A ética é a ciência da moral”. Em quase todo curso de jornalismo, ali pelas primeiras semanas de aula, os estudantes recém-chegados estão animados com o fato de que podem ir ao banheiro sem pedir permissão e beber cerveja depois da aula, o professor proclama essa frase. Dentre vários estudos sobre ética no jornalismo abordados na faculdade, está a maneira como se aborda o discurso jornalístico e a utopia pela objetividade.

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Hoje, no campo midiático, o racismo naturalizado se infiltra a partir de palavras e termos seletos, principalmente nas publicações de editoria policial. E vem causando uma grande insatisfação no público leitor, que além de ser pré-taxado como criminoso, também é prematuramente julgado.

Essa situação pode ser ilustrada a partir da matéria publicada pelo G1 na tarde desta sexta-feira, 28. A notícia é de que uma jovem foi presa em flagrante na Itália por transportar 3,2 quilos de cocaína. Toda a reportagem tem um cuidado além do que estamos acostumados, ao se tratar de uma suspeita que carregava uma grande quantidade de drogas. E os comentários de incômodo com a manchete se manifestaram nas redes.

O incômodo parte de como a mídia aborda outros indivíduos em situações judicialmente similares que se diferem somente da condição social, cor e localidade. Partindo de um preceito de casos ainda em curso na justiça, todos deveriam ser suspeitos, e não bandidos ou traficantes.

Amanda Refatti Viezzer, 19 anos, mora em Florianópolis e foi barrada na imigração na cidade de Roma, Itália, com mais de três quilos de cocaína escondidos no fundo falso de sua bolsa. A matéria leva a fala de seu advogado que afirma que Amanda foi “vítima da situação”. A reportagem também entrevista sua família e contém citações de conhecidos que afirmam o quanto ela é modesta e de boa índole.

Indo um pouco mais a fundo nas manchetes dos portais, podemos perceber um contraste a partir da mesma situação que a suspeita está passando. Hoje, três homens foram presos por suspeita de tráfico de drogas no Distrito Federal. A manchete do jornal Metrópole refere-se a somente um traficante. A linha fina acompanha a frase “outras duas pessoas foram presas”.

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Na foto de destaque aparece Felipe Cezario Nascimento Santos Nunes, homem negro de 29 anos que foi flagrado com 30 porções de crack na cueca. Hugo Rocha de Sousa que foi filmado vendendo drogas não é destaque da matéria nem tratado como traficante. No vídeo, o homem branco é flagrado vendendo maconha para usuários.

Definitivamente não são os crimes que estão em pauta por aqui, e sim a seletividade dos termos linguísticos quando os jornalistas abordam diferentes suspeitos ou criminosos. Na prática, quando o bandido é de classe média, pele clara e cabelo liso raramente é chamado de “bandido” ou “infrator”. Quando se analisa as manchetes nota-se que assim como no caso de Amanda, todas insistem que o indivíduo não tem antecedentes criminais ou má conduta.

Foi o caso de Breno Borges, conhecido e citado como “filho da desembargadora” nas chamadas dos maiores portais do Brasil. O traficante de 37 anos ficou pouco mais de três meses preso numa penitenciária em Três Lagoas, Mato Grosso. Depois desse tempo foi levado para uma clínica psiquiátrica em Campo Grande e atualmente encontra-se detido por tráfico de armas e drogas.

Em abril, ele foi pego com 130 quilos de maconha, centenas de munições, um fuzil e uma pistola. O filho de Tânia Garcia, presidente do Tribunal Regional Eleitoral, ficou dois dias preso na época do crime. Na matéria mais recente, do jornal Folha de S. Paulo, a legenda que leva sua foto é: “O empresário Breno Fernando Solon Borges, 37, filho da presidente do TRE-MS (Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul), a desembargadora Tânia Garcia de Freitas Borges”.

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Em um estudo sobre o racismo na mídia publicado em 2011 por Harrison da Rocha, mestre e doutor em Linguística pela Universidade de Brasília, o autor aborda a seletividade do sistema feita de forma clara e incoerente. “Para os temas negativos dominantes, os protestos ou a delinquência, o papel dessa minoria está muito claro: são agentes ativos e responsáveis e não vítimas “.

Na pesquisa foi detectado que tudo isso surgiu na Europa Ocidental e a falta de representatividade nas redações. “Praticamente todos os jornalistas na Europa Ocidental pertencem à raça branca e não têm relação nem pessoal, nem profissional com as classes minoritárias”. É a partir dessa falta de identificação colocada num texto jornalístico de maneira subjetiva que traz o discurso e observações semânticas que associam grupos étnicos ou raciais a aspectos negativos e o relaciona diretamente à uma lista de adjetivos prontos.

O curso natural é que isso se multiplique a partir do discurso sócio-normativo e estruturalmente racista. Segundo o estudo, a prática social, ou seja, a ideologia, está acima da prática discursiva que provém do texto. “Ao se publicarem as matérias, há todo um crivo ideológico. Os artigos de jornal são produzidos de maneira particular em contextos sociais específicos e de maneira coletiva”, completa.

Diante a tantos anos do histórico racista na mídia, é hora de parar, refletir e revisar os termos não baseados na seletividade, mas em fatos. A ética pregada como lei de política nas empresas podem ser transmitidas de maneira correta no simples fato da reflexão e não seletividade. A regra é simples e padrão: se o indivíduo não foi julgado, é suspeito. Independente da cor da pele, da classe social ou de onde mora, o que não se pode deixar levar são os fatos, e eles estão se perdendo a partir da seletividade de discursos escancarados.

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